segunda-feira, 9 de junho de 2014

Clareira na Mata.



          Como é de nosso conhecimento, a expansão colonial portuguesa nos trópicos, impulsionou a conquista de vastos territórios em detrimento da população nativa de Pindorama. Obtendo suporte ideológico da Igreja e da Coroa Portuguesa, diversos bandos de aventureiros, partindo da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga, desbravaram os “sertões inóspitos”, além da linha de Tordesilhas, deixando um rastro sangrento de morte, destruição e aprisionamento dos autóctones, tornando-os meros escravos. Como em suas expedições tais aventureiros levavam uma bandeira como estandarte, seus integrantes ficaram conhecidos pelo epíteto de “bandeirantes”. Conhecidos e temidos ao longo dos registros históricos, onde eram relatados como “bandidos, assassinos vis, filhos do diabo, etc.”, os bandeirantes, apesar de ampliarem, à custa da Espanha, o tamanho da colônia portuguesa, tiveram de ser contidos pelas armas reais, após desafiarem as autoridades coloniais lusas. O fato ocorreu em fins da Guerra dos Emboabas (1707-1709), encerrando-se o chamado “ciclo das bandeiras” e a pseudoautonomia da Capitania de São Paulo, extinta em 1748 e restaurada em 1765 sob severo controle da Coroa.
        A historiografia oficial, principalmente paulista, transformou os salteadores e assassinos em heróis, após a Revolução Constitucionalista com a criação do mito do bandeirante. Dessa forma passou a ser divulgada nos meios escolares a epopéia bandeirante, onde os mesmos foram retratados como baluartes da civilização e do progresso, enfrentando diversos perigos para fazerem a grandeza do Brasil, tendo como base e referência a terra e o povo paulista. Bem sabemos que a história oficial omite os massacres realizados pelos “desbravadores” e “heróis” paulistas. Porém, tanto na fase de preagem do indígena como na da extração aurífera, os paulistas fundaram povoados que tornar-se-iam grandes cidades, triunfantes sobre as pobres aldeias nativas. As bandeiras seguiam os cursos de rios como o Tietê, chamado pelos índios de Anhembi, com destino as aldeias do Guaira – atualmente Paraguai, partes de Mato Grosso do Sul e do Paraná.
        Todavia, alguns grupos seguem um sentido oposto, através do curso do Rio Paraíba do Sul, no encalço dos Puris, empurrando-os para a Serra da Mantiqueira e transpondo-a na Garganta do Embaú. Percorrendo o território valeparaibano, os bandeirantes fundam os núcleos de futuras cidades como Taubaté, Guaratinguetá, Jacareí, Pindamonhangaba, Lorena e outras. Tais núcleos foram instalados na margem direita do Paraíba, junto à trilha utilizada por índios e bandeirantes que, mais tarde foi usada por D.Pedro I na viagem ao Ipiranga, ficando depois conhecida pelo nome de Estrada Geral. Atualmente é a Estrada Velha Rio - São Paulo . Porém, alguns povoados surgiram fora desse roteiro, através da ocupação e concessão de sesmarias ou por iniciativa oficial de cunho militarista, como é o caso de São Luiz do Paraitinga, incentivada pelo Capitão–General da Capitania de São Paulo, Dom Luis Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, na segunda metade do século XVIII. Em decorrência da intensificação do processo colonizador, surge, ainda que um pouco distante da rota obrigatória do Sertão dos Cataguases (Minas Gerais), um novo núcleo de povoação em terras taubateanas ao longo de um caminho que abria uma clareira na mata, a que os indígenas chamavam de caá-sapab, que na língua tupi significa a própria clareira. Nos antigos documentos oficiais, o pequeno arraial, pertencente à Vila de Taubaté foi grafado como Cassapaba, Caassapaba e Cassapava e foi a célula-máter do atual Município de Caçapava. Há divergências entre os historiadores quanto ao fundador de Caçapava. Em “A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas”, os autores Ênio Squeff e Helder Peri Ferreira  afirmam que o arraial de Caçapava surgiu em terras do bandeirante Jorge Dias Velho, opinião partilhada por Nice Lecocq Müller, apesar de admitir a possibilidade de o fundador ter sido o sertanista Thomé Portes Del Rey. Essa segunda hipótese é defendida por Basílio de Magalhães e Azevedo Marques, este último autor da conceituadíssima obra intitulada “Apontamentos Históricos e Geográficos da Província de São Paulo”.
        Porém, independente de quem tenha sido o real fundador do novo povoado ou proprietário das terras, o fato é que o arraial, iniciado em 1705 ao redor da capela de Nossa Senhora da Ajuda, dotada de patrimônio em 1706, já contava com 177 fogos em 1724. Em documentos antigos é conhecido como “arraial de Cassapaba”, bairro da Vila de Taubaté. Ao longo de todo o restante do século XVIII, o pequeno povoado de Cassapaba mantém-se estagnado e sem maiores projeções políticas ou econômicas. Permanecendo sob a órbita de Taubaté, o arraial sobrevive praticando uma economia de subsistência. Somente em 1813, é que seria criada a Freguesia de Nossa Senhora da Ajuda de Caçapava, através do Alvará Régio de 18 de março do mesmo ano, cuja paróquia é desmembrada da de Taubaté. No entanto, como já foi mencionado, o arraial, agora elevado à freguesia situava-se distante da Estrada Geral, o que poderia impactar negativamente no seu desenvolvimento. Em decorrência desse fato, no dia 31 de março de 1850, através  de lei provincial, a sede da freguesia é removida para a capela de São João Batista, dentro dos seus limites , ainda parte integrante da Vila de Taubaté, ficando o antigo arraial entregue ao seu destino. E é nesse novo local, às margens da Estrada Geral, que é criada a Vila de Caçapava, através de outra lei provincial, de 14 de julho de 1855, dando origem à atual cidade de Caçapava. Quanto ao velho povoado, tornou-se bairro do novo município com o nome de Caçapava Velha, o que se mantém até os dias atuais.
          Nesse ínterim, a base da economia valeparaibana era a produção cafeeira realizada pela mão-de-obra escrava.  Dentre algumas fazendas de café de Caçapava, destacamos a Fazenda do Tanque, localizada no bairro da Terra e a Fazenda Bom Retiro, no bairro do Guamirim. Em 1860, a Vila de Caçapava produzia aproximadamente duzentas mil arrobas de café, além de cultivar cana-de-açúcar, fumo e gêneros alimentícios. A informação é do viajante português Augusto Emílio Zaluar que passou por Caçapava durante o seu périplo pela Província de São Paulo, entre 1860 e 1861. Zaluar cita também grandes criações de porcos, vendidos para Taubaté e vilas vizinhas. No relato do viajante está registrado que “Caçapava é uma vila de aspecto triste, cujas casas ficam de uma e outra margem da estrada (...). Os moradores do lugar queixam-se da falta de uma cadeia e de não terem uma casa da câmara, pois se vêem  obrigados a reunir a municipalidade em casa de um particular”. Ou seja, Caçapava era um município emancipado, mas não possuía sequer estrutura político-administrativa e judicial para a edilidade desenvolver o seu papel legislativo, de forma eficiente. Com o advento da ferrovia, a situação tende a se modificar, pois o novo sistema de transporte, propicia um escoamento da produção em menor tempo, além de proporcionar viagens tranquilas para os passageiros entre Rio e São Paulo. Partindo da capital da Província, os trilhos da Estrada de Ferro São Paulo - Rio de Janeiro chegam a Caçapava no dia 1° de outubro de 1876, quando é inaugurada a estação ferroviária.
          Entrementes, a população de Caçapava quando da chegada do trem, somava 8.970 almas, incluindo 1.602 escravos e 272 fogos, segundo Azevedo Marques. O município possuía 16 eleitores e “duas  cadeiras de instrução pública primária para ambos os sexos.” Em Caçapava Velha, o antigo arraial , teria sido criado também duas cadeiras de ensino primário, masculina e feminina, apesar de o local estar relegado à segundos planos, com já citado anteriormente. Porém, no último quartel do século XIX, Caçapava passa a se destacar no ensino de música, contando com o trabalho dos professores Luiz Leme do Prado, Bento Amaro de Souza Pinto e Rosa Ramos Pinto, esta exímia pianista. No ano de 1889, por iniciativa da Câmara Municipal é organizada uma escola de música, além de uma banda municipal, dirigida nos primórdios do século XX por Cândido Marcondes e Maria do Carmo de Siqueira, tendo como regente o Maestro Antônio Egídio dos Santos, mais tarde substituído por Henrique Escudero. Em 1903, Caçapava já possuía duas bandas ( a Municipal e a 9 de julho). No ano de 1912, surge a banda Santa Cecília,e em 1917, a Dr. Pereira de Matos, regida por Dimas Ortiz de Carvalho. Também no crepúsculo do século XIX, Caçapava conheceu as artes cênicas, com a instalação do  teatro, localizado ao longo da Rua Municipal, na esquina do largo São Benedito. O prédio foi construído por Francisco Ferreira Pinto e um grupo de amigos, e mobiliado em 1898, para receber os artistas famosos da época como Ismênia Santos, Luzia Leonardo e Nina Sanzi, que representou em Caçapava a peça “Dama das Camélias”. Algum tempo depois o teatro transformou-se no primeiro cinema de Caçapava, o “Elgê”, cujo proprietário era o Coronel João Dias Pereira.
         No decorrer do século XX, a cidade de Caçapava conhece um processo de crescimento,  econômico, industrial e populacional. De acordo com a análise de Nice Lecocq Müller, o município continha uma população urbana que totalizava 6.264 pessoas em 1934. Em 1964, esse número era de 18.745. A população rural em 1934 era de 17.555, caindo para 7.670 em 1960. A autora classificou Caçapava como pequeno centro industrial em que prevalecia a mono-indústria, fator existente também em Pindamonhangaba, Lorena e Aparecida, segundo dados do IBGE  de 1969. A cidade atuava no ramo têxtil, contando com 4 instalações fabris, datadas de meados da década de 1930. Fora desse contexto e, representando uma industrialização moderna, é inaugurada em 1953 a Mafersa, atuando no setor de material ferroviário; a Providro, instalada em 1963 e uma usina da Vigor, iniciando as atividades no setor de laticínios em 1964. Atualmente, a cidade de Caçapava tenta conciliar o desenvolvimento econômico e tecnológico com a preservação da memória histórica e tradicional da cultura de sua população. Eventos como a celebração do dia de Corpus Christi, com as ruas enfeitadas, o desfile dos saudosos carros-de-boi com seu ruído característico, são manifestações culturais que resistem à passagem do tempo. Podemos destacar também a famosa talhada, uma receita tradicional cujos ingredientes são o gengibre, a farinha de mandioca e o melado de cana. A talhada é popular não só em Caçapava, mas em todo o Vale do Paraíba e sua importância tradicional e cultural equipara-se , por exemplo, à paçoca de içá feita na histórica cidade de Silveiras.  Outro produto típico de Caçapava, só superado pelo que é produzido em São José do Barreiro, é a cachaça. As mais importantes são a da Cabocla, do Antenor, do Aparício e a do Jannuzzi, esta desde 1919.
          Contudo, devemos nos ater a um detalhe despercebido. O local em que, atualmente se assenta o  Município de Caçapava foi uma segunda opção para os dirigentes políticos do período imperial. Como em 1850 a região já havia sido parcialmente desmatada e já existisse a Estrada Geral, seria errôneo em falar de “Clareira na mata”, ou “Cassapaba”, ou ainda “caá-sapab”. Tal denominação deve ser atribuída, única e exclusivamente ao antigo arraial de Caçapava Velha, origem do município; hoje servindo de mero bairro da cidade que o abandonou á própria sorte. Local bucólico e parado no tempo, mas sem, no entanto, aquele corre-corre do dia-a-dia com trânsitos infernais. Pensando bem, a população de Caçapava Velha deve ser mais feliz do que a do centro urbano. Até a próxima.
                                                                                                                                             Eddy Carlos.


Dicas para consulta.

DOMENICO, Hugo Di. Estudos de Tupi. Apontamentos de linguística indígena como contribuição ao conhecimento do tupi. Gráfica Ativa. Taubaté, 1998.


MAIA e MAIA, Tom e Thereza Regina de Camargo. Vale do Paraíba. Vida Cultural. Fundação Nacional do Tropeirismo. CERED.Caçapava, 1988.


______________________________________. O Vale Paulista do Rio Paraíba. Guia Cultural. Editora Santuário. Aparecida, 2000.


MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos e Geográficos da Província de São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista. Vol.I. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.

MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba. São Paulo. Fundação IBGE. Rio de Janeiro,  1969.

SQUEFF e FERREIRA, Ênio e Hélder Perri.  A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas. Imprensa Oficial /CEPAM. São Paulo, 2003.


ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Biblioteca Histórica Paulista. Vol . II. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.


E-mail: eddycarlos@ymail.com

3 comentários:

  1. Parecidíssima com a Histórica de Caçapava do Sul, RS. Aqui a clareira era habitada pelos índios Charruas. Estive aí em Caçapava, SP e achei a cidade também muito parecida com Caçapava do Sul.

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  2. Tenho o lindíssimo livro do Tom Maia,a bico de pena.
    Sou de Caçapava-São Paulo.
    Residi muito tempo em São Paulo e agora em São José dos Cambos.
    Parabéns,professor, pela publicação!!

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