O espírito religioso católico sempre esteve presente desde os primórdios da colonização lusa com a chegada de Cabral em 1500. Durante a organização político-administrativa, iniciando com as Capitanias Hereditárias, a Igreja, como religião oficial do Império Ultramarino de Portugal, desempenhou um papel relevante de conversão, catequização e educação dos povos indígenas e escravos africanos. A Companhia de Jesus monopolizou a ação evangelizadora no Brasil até 1580. Com o advento da União Ibérica – período em que Brasil e Portugal foram anexados à Espanha (1580-1640) – outras ordens religiosas desembarcaram nos trópicos, tais como franciscanos, beneditinos e carmelitas para suprir as necessidades religiosas de colonos e autoridades da colônia. A vinda dessas instituições proporcionou o início da urbanização com a construção de conventos para os seus membros. A atuação da Igreja tinha também a função de legitimar o poder colonial português, dando-lhe suporte religioso e ideológico e, com a redução dos índios, garantir a submissão e lealdade ao rei e ao papa.
Na realidade, acompanhando e apoiando o processo colonizador ibérico na América, a Igreja buscava recuperar o espaço geográfico, humano e espiritual que havia perdido na Europa com a eclosão da Reforma Religiosa iniciada por Lutero e apoiada pela burguesia e príncipes contrários à autoridade de Roma. Apesar de tudo, a Igreja se viu envolvida por diversas vezes nos conflitos internos da colônia, entre colonos e indígenas, colonos e quilombolas e, até mesmo entre seus próprios membros. Segundo a análise da historiadora Mary Del Priore, em diversas ocasiões, franciscanos e jesuítas estiveram, em lados opostos, sendo que os primeiros acompanharam “as bandeiras e outras expedições para apresamento de índios e várias vezes ajudaram os colonos em guerras contra os nativos, que eram apoiados pelos jesuítas”. Como exemplo, a autora menciona a campanha punitiva contra os potiguares em 1585 na Paraíba. Podemos mencionar também o desastre do M’bororé, quando os guaranis liderados pelos jesuítas desbarataram a bandeira de Jerônimo de Barros em 11 de março de 1641. Dissensões à parte, o fato é que com o avanço e expansão do sistema colonial, a Igreja consolidou-se como a religião oficial e predominante, ainda que grupos nativos ou cativos praticassem o sincretismo religioso no dia-a-dia na então colônia portuguesa do ultramar.
Sendo assim, praticando a preagem dos índios Puris no Vale do Paraíba e depois com a descoberta do ouro no sertão dos Cataguases, os bandeirantes vão fixando núcleos de povoamento que mais tarde tornaram-se as cidades valeparaibanas e mineiras atuais. E é assim que, com destino à garganta do Embaú, na Serra da Mantiqueira, bandeirantes e exploradores partindo da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga, fundam em 1611 Mogi das Cruzes (antiga Boigy de Brás Cubas); em 1645, a Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté; Santo Antônio de Guaratinguetá em 1651; Nossa Senhora da Conceição de Jacareí em 1653, etc. Notemos a predominância da invocação religiosa no nome das vilas fundadas o que reflete a influência do catolicismo e a religiosidade marcante da população colonial no período em questão. Todavia, focalizemos nossa análise em Guaratinguetá, pois foi nessa vila que ocorreu um episódio no início do século XVIII que iria marcar profundamente o sentimento religioso brasileiro, expandindo-se ao longo dos tempos, até tornar-se referência em todo o território nacional.
Após a Guerra dos Emboabas (1707-1709), a Coroa Portuguesa criou a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, com sede em Vila Rica em detritemento da Vila de São Paulo, outrora sede da Capitania de São Vicente, no ano de 1710. No dia 22 de dezembro de 1716, o rei português Dom João V nomeia como terceiro governador da nova capitania Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos, o Conde de Assumar. Em julho de 1717 chega ao Rio de Janeiro, seguindo para São Paulo por mar, onde toma posse, seguindo por terra a partir de 26 de setembro pelo interior da capitania numa longa viagem até Vila Rica onde fixa residência e a sede do governo. O Conde de Assumar realiza o seu périplo pelo mesmo caminho que os primeiros bandeirantes haviam aberto. Tal caminho corresponde exatamente à atual Estrada Velha Rio -São Paulo até o trecho de Cachoeira Paulista. No período da viagem encetada pelo fidalgo português, de Guaratinguetá em diante, passando pelo Embaú, o caminho percorrido foi o da Estrada Real, que foi mapeada recentemente para fins turísticos. O saudoso mestre e historiador José Luiz Pasin analisou o Diário da jornada do Conde de Assumar, onde consta que o referido nobre lusitano chegou à Vila de Guaratinguetá no dia 17 de outubro de 1717, permanecendo no local até o dia 30, aguardando bagagens que ficaram em Paraty. De acordo com a anotação do mencionado diário, após assistir a uma missa celebrada em um sítio - atualmente Roseira Velha - a comitiva “chegou a vila de Guaringuita, onde foi recebido com duas companhias de Infantaria, uma de filhos da terra e outra dos do Reino”. Durante sua permanência em Guaratinguetá, o Conde de Assumar julgou e condenou à forca um mestiço que havia assassinado uma mulher grávida de oito meses, conforme citado no Diário da Jornada. Diante da visita do representante do rei, a Câmara Municipal da Vila de Guaratinguetá ordenou que se realizassem pescarias no Rio Paraíba para as refeições enquanto o Conde estivesse hospedado e, talvez até mesmo para salgar para a continuação da viagem até a região das minas. E é assim que, como já foi narrado em vários meios de comunicação, sendo do conhecimento geral católico, cumprindo as determinações da Câmara, Domingos Alves Garcia, João Alves e Felipe Pedroso pegam em suas redes uma imagem de barro sem cabeça e em seguida a própria cabeça, no porto do Itaguaçú. Como logo em seguida houve, segundo a tradição, uma pesca milagrosa, o fato foi atribuído a santa “aparecida”. A imagem ficou aos cuidados de Silvana da Rocha, esposa de Domingos, irmã de Felipe e mãe de João, cuja casa foi o primeiro oratório até 1726. Como estava praticamente no fundo do rio, a imagem estava escurecida pelo barro, e foi identificada como uma santa negra, simbolizando a escravidão dos negros africanos. Dessa forma, tanto aos cativos quanto os “brancos” oprimidos pelo poder colonial viram na santa “aparecida” a esperança para alívio de suas condições de vida. Iniciou-se, então um culto à imagem da santa que foi atraindo numerosos devotos, despertando a ira das autoridades coloniais, pelo fato de se tratar de uma santa negra. Apesar de tudo, o Padre José Alves Vilela, vigário da Paróquia, resolve construir uma capela no Morro dos Coqueiros, concluída em 1745. Em torno da capela começou uma aglutinação de casebres, dando origem à futura cidade de Aparecida. Ao longo dos anos a capela da santa Aparecida ficou sendo conhecida pelo número de devotos sempre aumentando e também através do relato de diversos viajantes que por lá passaram desde o início do século XIX, dando destaque às crescentes romarias de fiéis, que depois propagavam os milagres que teriam recebidos. O Professor Oswaldo Carvalho Freitas faz uma citação em sua obra sobre Aparecida, de dois naturalistas alemães que visitaram a capela em 1817. Johann Baptist Von Spix e Karl Friedrich Philipp Von Martius em “Viagem Pelo Brasil” afirmam que a “milagrosa imagem de Nossa Senhora atrai muitos peregrinos de toda a província e de Minas Gerais. Dessas romarias encontramos diversas, quando na véspera de Natal, seguimos viagem”. No mesmo ano passam também pelo povoado os pintores Jean-Baptiste Debret e Thomas Ender. Em março de 1822 é a vez do botânico francês Auguste François César Provençal de Saint- Hilaire passar em Aparecida. No seu diário, o viajante afirma que a uma légua de Guaratinguetá, “passamos em frente à capela de N.S.da Aparecida. A imagem que ali se adora, passa por milagrosa e goza de grande reputação, não só na região como nas partes mais longínquas do Brasil. Aqui vem ter gente, dizem,de Minas, Goiás e Bahia, cumprir promessas feitas a N. Senhora da Aparecida”. Em 1860, outro viajante passa por Aparecida, deixando registrado em livro publicado, assim como seus antecessores, a impressão que teve do local. Esse é o português Augusto Emílio Zaluar que, conhecendo a capela afirma que a “fama da milagrosa Virgem espalhou-se por tal forma, e chegou a tão longínquas paragens, que dos sertões de Minas, dos confins de Cuiabá e do extremo Rio-Grande, vêm todos os anos piedosas romarias cumprir as religiosas promessas que nas suas enfermidades ou desgraças fizeram àquela senhora”. É importante frisar que já no século XIX, o povoado, a capela e a devoção à Nossa Senhora da Aparecida já haviam ultrapassado os limites nacionais, devido à publicação na Europa dos relatos e trabalhos científicos dos viajantes alemães, franceses, ingleses e portugueses que peregrinavam não só pelo Vale do Paraíba, mas por todo o Brasil. A partir de 1845, a capela começou a passar por reformas que acabou transformando-a em uma nova igreja, inaugurada em 1888. Trata-se da Basílica Velha, bem conhecida dos fiéis e romeiros mais antigos e dos cartões postais e revistas religiosas, referentes ao culto mariano de Aparecida.
Entretanto, se a evolução espiritual e religiosa foi bem sucedida, a evolução política foi bem instável no povoado. Em 4 de março de 1842, foi criada a Freguesia de Aparecida, extinta dois anos após em 15 de março de 1844. Praticamente 36 anos depois é novamente criada em 25 de abril de 1880 e, de novo, extinta em 15 de fevereiro de 1882. Com a República, restaura-se o status com a criação do Distrito em 4 de abril de 1891 e, finalmente, apesar da resistência e protesto de Guaratinguetá, a Lei 2312 cria o Município de Aparecida em 17 de dezembro de 1928. Tal instabilidade existiu apesar da importância que o povoado representava no último quartel do século XIX no cenário nacional. A inauguração da estação “Aparecida” da Estrada de Ferro São Paulo – Rio em 13 de maio de 1877 é um reflexo dessa importância, mesmo sendo um arraial como definiu Azevedo Marques no seu “Apontamentos”. Nessa obra, de 1876, o autor afirma que na “povoação há duas cadeiras de instrução primária para ambos os sexos”.. Além do mais, o sempre crescente número de romeiros e peregrinos justificava a instalação de uma estação ferroviária no local, além da de Guaratinguetá, sede do Município.
Consequentemente, com a expansão do culto e devoção à Santa Aparecida, o Papa Pio XI proclamou-a Rainha e Padroeira do Brasil em 16 de julho de 1930. No dia 31 de maio de 1931, a imagem da santa foi recebida no Rio de Janeiro em meio à grande festividade que reuniu aproximadamente um milhão de pessoas, incluindo o então Presidente da República Getúlio Vargas. Sendo assim, em 1946 é lançada a pedra fundamental da nova Basílica no Morro das Pitas, cujas obras iniciam-se em 1952. A devoção católica à Nossa Senhora Aparecida e os milagres a ela atribuídos proporcionaram um alto grau de importância diante do Vaticano. Aparecida como mera paróquia foi elevada diretamente à condição de Arquidiocese, através da bula Sacrorum Antistitum, do Papa Pio XII em 1958, sendo nomeado como arcebispo o Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota. Um fato interessante é que quando foi criado a Arquidiocese de São Paulo, em 1908 e as dioceses sufragâneas como Taubaté, Aparecida mesmo situada no espaço geográfico da última, continuou a pertencer a São Paulo. Depois da bula papal, Taubaté e Lorena passam a ser sufragâneas, por sua vez, de Aparecida. E no ano de 1967, Aparecida recebe a Rosa de Ouro do Papa Paulo VI. Um outro fato que merece atenção é sobre o nome da cidade. Durante longo tempo foi chamada de “Aparecida do Norte”, figurando em livretos, lembranças, calendários, etc. No século XVIII, o Morgado de Mateus, Governador da Capitania de São Paulo dividiu a mesma administrativamente em “Marinha” (litoral) e “Serra Acima”. Em cada uma dessas houve uma subdivisão em Vilas do Norte e Vilas do Sul. Assim as Vilas do Sul de “Serra Acima” englobavam São Paulo, Itú, Sorocaba, Jundiaí e Parnaíba e as Vilas do Norte agrupavam Mogi das Cruzes, Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. Como o pequeno arraial da santa ficava na Vila de Guaratinguetá, os romeiros e viajantes denominaram “Aparecida do Norte”, embora atualmente o nome oficial é Aparecida. A Capital da Fé, Capital Mariana do Brasil, Capital Espiritual, juntamente com o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida receberia a visita de dois papas refletindo, reafirmando, a importância que o culto mariano representa para a Igreja Católica. Em 1980, o Papa João Paulo II visitou o Brasil e Aparecida, voltando mais duas vezes e em 2007 foi a vez do Papa Bento XVI. Ambos deram o seu apoio e legitimação à fé tradicional do povo brasileiro e à despeito do avanço de outros segmentos religiosos, o Santuário Nacional, bem como a pequena Aparecida seguem hegemônicos no espírito religioso nacional. Um grande abraço e até a próxima.
Eddy Carlos
Dicas para consulta.
FREITAS, Oswaldo Carvalho. Aparecida. Capital Mariana do Brasil. Ed. Santuário.
Aparecida, 1978.
MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos e Geográficos da
Província de São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista. Vol. I.. Martins Editora. São Paulo,
1976.
PASIN, José Luiz. Vale do Paraíba. A Estrada Real. Caminhos e Roteiros. Ed. Santuário.
Aparecida, 2004.
PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. História em movimento. Ed.
Ática. São Paulo, 1997.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista.
Vol.VI. Martins Editora. São Paulo, 1976.
ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Biblioteca
Histórica Paulista. Vol. II. São Paulo, 1976.
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