terça-feira, 24 de junho de 2014

A Secessão de Aparecida.



             A colonização lusitana nos trópicos transplantou da Península Ibérica toda uma estrutura de governo e poder cujas bases eram as Câmaras Municipais, onde eram eleitos e exerciam a autoridade  os chamados “homens bons”. Tais pessoas eram fazendeiros, senhores de escravos, ligados, na maioria das vezes à nobreza do Reino e exerciam autoridade e poder também nos membros de sua família, entre esposa, filhos (as), genros, noras, netos, sobrinhos, etc.; incluindo agregados e escravos, esses no último degrau da hierarquia. Porém, viera junto com os colonizadores o estilo patriarcal familial, que já estava em decadência em Portugal, durante o reinado de Dom Manuel, o Venturoso, revigorando e perdurando no Brasil Colonial, após encontrar terreno fértil para sustentar suas principais características: o latifúndio e a escravidão. Consolidando seu poder, essas condições tornavam, segundo a análise de Maria Isaura Pereira de Queiroz:  “ o chefe da família senhor sobre grande extensão de terra mal policiada e sobre grande quantidade de gente”. A rede de controle e dominação acabava por ampliar-se devido aos casamentos endogâmicos , envolvendo membros de uma mesma ou de outra família que possuíssem laços de parentescos, formando verdadeiros clãs poderosos. Isso garantia a dominação política atrelada à econômica, visando à conquista e manutenção permanente de prestígio e status. Sendo assim, o latifúndio, possuindo auto-suficiência, seguida da autonomia e a liderança do senhor, chefe de família, “ desenvolveram o espírito local; e a política municipal girava, toda ela, em torno desses interesses locais de vários municípios”. Isso era resultante do controle das Câmaras Municipais, por fazendeiros, senhores de engenho, etc, chegando a desafiar as leis do Reino, culminando até mesmo com ofensas e maus tratos contra representantes régios na colônia.
          Todavia, quando um ou outro chefe de família também quisesse exercer autoridade e poder em zonas de influência de um já mandatário, eram inevitáveis os choques, originando verdadeiras guerras entre famílias pela posse de um município ou região. Ainda de acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, na realidade estavam em jogo interesses particulares, as quais estavam confundidas com interesses públicos. A prova disso é a “forma que tomavam tais conflitos: rivalidades entre duas Câmaras; brigas que resultavam na fundação de novo município dentro do território do antigo; lutas pelo domínio de uma Câmara”. Como exemplo de conflito entre duas Câmaras, citamos a rivalidade entre as da Vila de São Paulo e a de Taubaté, reflexo da rivalidade entre as famílias Pinheiro e Ramalho no século XVIII, somente superada durante a Guerra dos Emboabas. Outra disputa famosa foi entre os Pires e Camargos em São Paulo pela posse da Câmara, respingando também em Taubaté, então posto avançado da colonização portuguesa no sertão valeparaibano. Ao longo do período colonial, passando pelo imperial, as rivalidades político-familiares foram rotina na História do Brasil, principalmente com a prática do clientelismo, durante o Imperio, onde uma facção ou outra cerravam fileiras juntos aos partidos políticos vigentes, o Conservador e o Liberal. O ápice da disputa entre ambos e, envolvendo grupos familiares, além de padres, foi a Revolução Liberal de 1842, onde o Partido Conservador, então no poder, reprimiu violentamente a oposição, tendo seu epílogo com o cerco e o “banho” de sangue em Silveiras. Com a anistia aos liberais e a ascensão destes, inaugura-se o Gabinete da Conciliação, onde tanto situação e oposição revezam-se no poder, usufruindo do prestígio e favores imperiais, que por sua vez garantem os interesses de diversos chefes políticos locais e suas famílias.
            Entretanto, com a queda da Monarquia e o advento da República, a relação de poder se cristaliza com o surgimento do coronelismo, quando, sempre, os proprietários rurais, chefes de família, usam e abusam da estrutura do Estado em benefício próprio. Como em geral, comandavam, de acordo com seus interesses, batalhões e destacamentos da Guarda Nacional, ostentavam patentes militares, como a de Tenente, Major e,  a mais importante e almejada, a de Coronel, derivando daí o termo “coronelismo”. Fraudando eleições, empossando ou destituindo governantes  o coronelismo só foi contido com a Revolução de 1930, a qual levou Getúlio Vargas ao Catete, liquidando a Primeira República. Para exemplificar o coronelismo, citemos Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, do Rio Grande do Sul, além do deputado Floro Bartolomeu e o Padre Cícero Romão Batista, no Ceará; esses últimos não hesitaram em convocar o bando de Lampião para defendê-los, quando sentiram-se ameaçados pelo avanço da Coluna Prestes em 1926. Como o famoso cangaceiro descobriu que os coronéis, inclusive o de batina, pretendiam eliminá-lo após a conclusão do “serviço”, desistiu do confronto com a Coluna e prosseguiu com suas tropelias pelo sertão nordestino. Também, os clãs familiares que se apoderaram do controle do Estado como os Aciolly, no mesmo  Ceará, ou influenciaram os governantes inertes como os Prado em São Paulo.
             Concomitantemente, o Vale do Paraíba, por sua proximidade com a capital do país, teve exemplos, tanto de clientelismo como de coronelismo, este como já dissemos, muito mais arraigado ao poder, durante a República Velha. Sempre tendo seus antagonismos gravitando em torno dos partidos políticos, observamos que um exemplo clássico, foi o da disputa entre o Major Novaes e o Major  Chrispim Bastos no último quartel do século XIX, na Vila do Cruzeiro, então sediada no Embaú. Majores da Guarda Nacional, os oponentes disputavam a influência e o poder político, sendo que o primeiro, proprietário da Fazenda Boa Vista, pertencia ao Partido Conservador e o segundo, dono da Fazenda Rio Branco, cerrava fileiras no Partido Liberal. Ambos foram vereadores e cafeicultores escravistas no município citado e defendiam seus interesses privados no âmbito da Câmara Municipal, trocando, até, insultos nas sessões realizadas. Outro oponente do Major Novaes era o vereador Costa Júnior. Com a proclamação republicana, o Major Novaes, sendo monarquista leva ao extremo seus ideais políticos, contrários à nova ordem, com a criação da efêmera Vila Novaes, em 1892. Extinta essa, tanto ele como seus correligionários levantam bandeiras para a transferência da sede municipal, a qual ocorre em 1901, após a morte do líder em 1898. Atrelada às questões de ordem econômica, principalmente, essa disputa política deu origem ao atual município de Cruzeiro.
            Mas o caso mais notório e emblemático foi o ocorrido em Guaratinguetá, entre duas correntes políticas, representando duas famílias, que, apesar de opostas, uma a outra, possuíram laços de parentesco, estando relacionado com a cidade de Aparecida. Como já mencionado, as lideranças políticas, em geral, os fazendeiros de café consideravam o município, onde ditavam suas leis, como um feudo político, uma propriedade de sua família, sendo por isso transmissível para os sucessores através de herança, como se transmitisse a posse de uma fazenda, com casas, gado, escravos, etc. De acordo com a análise de Lucila Herrmann, no cenário nacional da República Velha, “Guaratinguetá atinge seu período de maior representação. Seus valores ultrapassam o município, dominam o Estado e a Nação. Esses valores estão, entretanto, quase totalmente concentrados em mãos de uma família, à qual se ligam outras da elite agrária”. O nível de mando e desmando faz surgir um princípio de oposição, reforçada com a atuação de bacharéis pela imprensa, propiciando assim uma verdadeira contestação política à ordem vigente. Recorrendo mais uma vez a Maria Isaura Pereira de Queiroz, vemos, no entanto, que a oposição estava numa sinuca “de bico”, pois “os mandões locais continuavam, nos municípios, dominando a administração, poder judiciário, a Câmara Municipal. A oposição nem sequer podia votar porque o processo eleitoral, estando nas mãos da Câmara e do judiciário, era o mesmo que estar nas mãos do coronel”. A oposição em Guaratinguetá ao partir para a contestação aberta  estruturou-se nos mesmos moldes da situação, ou seja, a família como essência de atuação política. As hostes beligerantes ficaram conhecidas, segundo a análise de Thereza e Tom Maia como alvistas e camarguistas. O primeiro tinha como líder Antônio de Paula Rodrigues Alves, Comendador do Império, assim como o Irmão Francisco de Paula Rodrigues Alves, Conselheiro do Império e duas vezes eleito Presidente da República. Tal grupo herdou as convicções políticas de Francisco de Assis e Oliveira Borges, o Visconde de Guaratinguetá, chefe do Partido Conservador na era imperial. O segundo grupo era coordenado por Eduardo Augusto Nogueira de Camargo, Deputado Estadual, sendo substituído logo após pelo filho, João Baptista Rangel de Camargo;  esse grupo professava os ideais políticos do “Capitão João Baptista Rangel, fazendeiro, tropeiro e comerciante, que pertencia ao Partido Liberal”, conforme a interpretação dos autores guaratinguetaenses  já citados, Thereza e Tom Maia. Como afirmamos acima, as duas famílias, apesar de estarem em posições antagônicas, possuíam um elo de parentesco muito próximo, o Comendador Antônio de Paula Rodrigues Alves consorciou-se matrimonialmente com Maria Francisca Galvão de França, irmã de Thereza Galvão de França, conhecida pela alcunha de Nhá Thereza. Essa por sua vez, era mãe de Maria Thereza de França Rangel de Camargo, a Ninica, esposa de Eduardo Augusto Nogueira de Camargo, rival político do Comendador.
            Entrementes, no ano de 1924, os Alves são alijados, temporariamente, do poder, devido a alguns atritos com Washington Luís, Presidente de São Paulo, o qual destituiu o Comendador do Diretório  Municipal do PRP, favorecendo a ascensão dos seus opositores. Porém, ainda em 1924, quando Carlos de Campos passa a ocupar a Presidência do Estado de São Paulo, o alvismo retorna ao cenário político de forma violenta, com intimidações, assassinatos, e empastelamentos de jornais oposicionistas,  como o “O Pharol”, “ A Voz do Povo”, “A Gazetinha”, etc. O ápice dessa disputa ocorreu quando entra em cena a questão da emancipação política de Aparecida. De acordo com os renomados e já citados autores Tom e Thereza Maia, as lutas “pela imprensa, e até mesmo confrontos físicos, tornam-se ainda mais acirrados quando o camarguismo levanta a bandeira da independência de Aparecida, que, juntamente com Roseira, era distrito de Guaratinguetá”. Em 1927 falece o Comendador Antônio de Paula Rodrigues Alves e a corrente alvista é chefiada a partir de então, por seu filho José Rodrigues Alves Sobrinho, conhecido como Juca; assume também as hostilidades políticas contra o camarguismo, liderado por João Baptista Rangel de Camargo, como já mencionado. Apesar do voto de “cabresto”, Rangel de Camargo que, também era advogado, consegue ser eleito  pela oposição sendo Vereador em Guaratinguetá por duas vezes, e outras duas como Deputado Estadual, sendo que, na sua atuação na Assembleia Estadual, foi definido a situação do Distrito de Aparecida. Porém, para melhor compreendermos o episódio que ficou na memória popular como “ A Libertação de Aparecida”, torna-se imperativo, analisarmos a evolução político administrativa desse núcleo religioso, surgido no ´seculo XVIII em terras da Vila de Guaratinguetá.
             Em artigo anterior, de nossa autoria, publicado por este periódico, analisamos o aspecto político e econômico de Aparecida, focalizando, porém, a questão da aura de religiosidade emanada de tal cidade. Tendo sua origem relacionada com a visita, prepararda pela Câmara de Guaratinguetá, de Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos, o Conde de Assumar em 1717, a então capela de Aparecida foi se destacando na região valeparaibana, ganhando evidências, inclusive no cenário nacional, devido aos milagres atribuídos à “santa aparecida” no Rio Paraíba. Ao longo de sua existência, Aparecida transformou-se num centro de peregrinação religiosa, cuja influência alcançou os mais inóspitos sertões brasileiros. Também suas paisagens ganharam notoriedade quando da visita de Johann Baptist Von Spix e Karl Friedrich Philip Von Martius e Thomas Ender em 1717; Auguste François Cesar Provençal de Saint-Hilaire em 1822, e outros em épocas diferentes como Jean Baptiste Debret , Miguel Benício Dutra e Augusto Emílio Zaluar, este em 1860. Mas, havíamos afirmado também, no citado artigo, que a evolução política de Aparecida seguiu caminhos tortuosos, ora avançando, ora recuando, de acordo com o jogo político, desde o período imperial. Como em qualquer povoação, Aparecida foi elevada à condição de Freguesia no dia 4 de março de 1842, perdendo o status dois anos depois em 15 de março de 1844. Segundo a análise do Profº. Oswaldo Carvalho Freitas, essa “instabilidade político administrativa foi no tempo do Império. Com o advento da República teve sorte: em 4-4- 1891foi restaurado o distrito em caráter definitivo, e quatro anos depois, a paróquia.”
           Nesse ínterim, especificamente a partir da última década do século XIX, fervilhava a disputa entre os Alves e Camargos, como já nos referimos anteriormente. Nessa disputa, Aparecida tornou-se um foco de atenção e tensão entre as duas correntes políticas. Já há algum tempo, a população de Aparecida ansiava pela emancipação, pois tendo inclusive, uma estação da E.F. D.Pedro II, mais tarde Central do Brasil, o Distrito de Aparecida recebia numerosas expedições de romeiros, mas permanecia sujeito ao Município de Guaratinguetá. Segundo Thereza e Tom Maia, as “manobras do alvismo procrastinaram por longo tempo o processo. Não raro ocorriam até confrontos físicos, que algumas vezes se transformavam em acirrados combates”, entre “alvistas” e “camarguistas”, estes partidários da emancipação do distrito aparecidense. O nível de tensão eleva-se, quando na Assembléia Estadual, o Deputado João Baptista Rangel de Camargo, apresenta o projeto de lei que criava o Município de Aparecida. Os debates em torno de tal projeto foram violentos, frutos da oposição que fazia o também Deputado José Rodrigues Alves Sobrinho. Liderando a corrente alvista, esse deputado representava a voz do mandonismo em Guaratinguetá, cujos integrantes não queriam abrir mão, com a aprovação do projeto de emancipação, de uma importantíssima zona eleitoral.
         Consequentemente, em que pese o fato das negativas opiniões a respeito da emancipação o grupo alvista acabou entendendo que a mesma era irreversível. Temendo ficar  com a imagem “arranhada” e o prestígio político abalado por irem na contramão dos anseios da população de Aparecida e da bandeira levantada por Rangel de Camargo, os políticos alvistas renderam-se, sendo o projeto aprovado, sem mais incidentes ou empecilhos, no dia 17 de dezembro de 1928. A ação do Deputado Rangel de Camargo, tanto na Assembléia Legislativa, como em Guaratinguetá e no, então distrito, ganhou notoriedade, durante o episódio denominado, “ A Libertação de Aparecida”. Com a emancipação consolidada, a padroeira da cidade Nossa Senhora Aparecida é proclamada Rainha e Padroeira do Brasil em 1930. No ano seguinte, a imagem da santa é recepcionada no Rio de Janeiro, pelo Presidente Getúlio Vargas. Atualmente, a cidade de Aparecida, apesar de ser o centro de peregrinação mais antiga, divide o status com Guaratinguetá e Cachoeira Paulista, no chamado “Roteiro da Fé”, ou “Circuito Religioso”. Ainda assim, Aparecida é a mais procurada e visitada pelos fiéis, principalmente nas festividades do dia 12 de outubro, feriado nacional. Até a próxima. Eddy Carlos.

                 


Dicas para consulta

CHALITA Gabriel (coordenador). Vale do Paraíba. Política e Sociedade. Vale Livros / Editora Santuário.  Aparecida, 1993.

FREITAS, Oswaldo Carvalho. Aparecida. Capital Mariana do Brasil. Editora Santuário.  Aparecida, 1978.

HERRMANN, Lucila. Evolução da Estrutura Social de Guaratinguetá num Período de Trezentos Anos. Instituto  de Pesquisas Econômicas / USP. São Paulo, 1986.

MAIA e MAIA, Thereza Regina de Camargo e Tom. Uma Casa Paulista. Editora Noovha América. São Paulo, 2007.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo na Vida Política Brasileira. Instituto de Estudos Brasileiros,  USP. São Paulo, 1969.

E-mail: eddycarlos@ymail.com

















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