A colonização lusitana nos trópicos
transplantou da Península Ibérica toda uma estrutura de governo e poder cujas
bases eram as Câmaras Municipais, onde eram eleitos e exerciam a autoridade os chamados “homens bons”. Tais pessoas eram
fazendeiros, senhores de escravos, ligados, na maioria das vezes à nobreza do
Reino e exerciam autoridade e poder também nos membros de sua família, entre
esposa, filhos (as), genros, noras, netos, sobrinhos, etc.; incluindo agregados
e escravos, esses no último degrau da hierarquia. Porém, viera junto com os
colonizadores o estilo patriarcal familial, que já estava em decadência em
Portugal, durante o reinado de Dom Manuel, o Venturoso, revigorando e
perdurando no Brasil Colonial, após encontrar terreno fértil para sustentar
suas principais características: o latifúndio e a escravidão. Consolidando seu
poder, essas condições tornavam, segundo a análise de Maria Isaura Pereira de
Queiroz: “ o chefe da família senhor
sobre grande extensão de terra mal policiada e sobre grande quantidade de
gente”. A rede de controle e dominação acabava por ampliar-se devido aos
casamentos endogâmicos , envolvendo membros de uma mesma ou de outra família
que possuíssem laços de parentescos, formando verdadeiros clãs poderosos. Isso
garantia a dominação política atrelada à econômica, visando à conquista e
manutenção permanente de prestígio e status. Sendo assim, o latifúndio, possuindo
auto-suficiência, seguida da autonomia e a liderança do senhor, chefe de
família, “ desenvolveram o espírito local; e a política municipal girava, toda
ela, em torno desses interesses locais de vários municípios”. Isso era
resultante do controle das Câmaras Municipais, por fazendeiros, senhores de
engenho, etc, chegando a desafiar as leis do Reino, culminando até mesmo com
ofensas e maus tratos contra representantes régios na colônia.
Todavia, quando um ou outro chefe de
família também quisesse exercer autoridade e poder em zonas de influência de um
já mandatário, eram inevitáveis os choques, originando verdadeiras guerras
entre famílias pela posse de um município ou região. Ainda de acordo com Maria
Isaura Pereira de Queiroz, na realidade estavam em jogo interesses particulares,
as quais estavam confundidas com interesses públicos. A prova disso é a “forma
que tomavam tais conflitos: rivalidades entre duas Câmaras; brigas que
resultavam na fundação de novo município dentro do território do antigo; lutas
pelo domínio de uma Câmara”. Como exemplo de conflito entre duas Câmaras,
citamos a rivalidade entre as da Vila de São Paulo e a de Taubaté, reflexo da
rivalidade entre as famílias Pinheiro e Ramalho no século XVIII, somente
superada durante a Guerra dos Emboabas. Outra disputa famosa foi entre os Pires
e Camargos em São Paulo pela posse da Câmara, respingando também em Taubaté,
então posto avançado da colonização portuguesa no sertão valeparaibano. Ao
longo do período colonial, passando pelo imperial, as rivalidades
político-familiares foram rotina na História do Brasil, principalmente com a
prática do clientelismo, durante o Imperio, onde uma facção ou outra cerravam
fileiras juntos aos partidos políticos vigentes, o Conservador e o Liberal. O
ápice da disputa entre ambos e, envolvendo grupos familiares, além de padres,
foi a Revolução Liberal de 1842, onde o Partido Conservador, então no poder,
reprimiu violentamente a oposição, tendo seu epílogo com o cerco e o “banho” de
sangue em Silveiras. Com a anistia aos liberais e a ascensão destes,
inaugura-se o Gabinete da Conciliação, onde tanto situação e oposição
revezam-se no poder, usufruindo do prestígio e favores imperiais, que por sua
vez garantem os interesses de diversos chefes políticos locais e suas famílias.
Entretanto, com a queda da Monarquia e
o advento da República, a relação de poder se cristaliza com o surgimento do
coronelismo, quando, sempre, os proprietários rurais, chefes de família, usam e
abusam da estrutura do Estado em benefício próprio. Como em geral, comandavam,
de acordo com seus interesses, batalhões e destacamentos da Guarda Nacional,
ostentavam patentes militares, como a de Tenente, Major e, a mais importante e almejada, a de Coronel,
derivando daí o termo “coronelismo”. Fraudando eleições, empossando ou
destituindo governantes o coronelismo só
foi contido com a Revolução de 1930, a qual levou Getúlio Vargas ao Catete,
liquidando a Primeira República. Para exemplificar o coronelismo, citemos Júlio
de Castilhos e Borges de Medeiros, do Rio Grande do Sul, além do deputado Floro
Bartolomeu e o Padre Cícero Romão Batista, no Ceará; esses últimos não
hesitaram em convocar o bando de Lampião para defendê-los, quando sentiram-se
ameaçados pelo avanço da Coluna Prestes em 1926. Como o famoso cangaceiro descobriu
que os coronéis, inclusive o de batina, pretendiam eliminá-lo após a conclusão
do “serviço”, desistiu do confronto com a Coluna e prosseguiu com suas
tropelias pelo sertão nordestino. Também, os clãs familiares que se apoderaram
do controle do Estado como os Aciolly, no mesmo
Ceará, ou influenciaram os governantes inertes como os Prado em São
Paulo.
Concomitantemente, o Vale do Paraíba,
por sua proximidade com a capital do país, teve exemplos, tanto de clientelismo
como de coronelismo, este como já dissemos, muito mais arraigado ao poder,
durante a República Velha. Sempre tendo seus antagonismos gravitando em torno
dos partidos políticos, observamos que um exemplo clássico, foi o da disputa
entre o Major Novaes e o Major Chrispim
Bastos no último quartel do século XIX, na Vila do Cruzeiro, então sediada no
Embaú. Majores da Guarda Nacional, os oponentes disputavam a influência e o
poder político, sendo que o primeiro, proprietário da Fazenda Boa Vista,
pertencia ao Partido Conservador e o segundo, dono da Fazenda Rio Branco,
cerrava fileiras no Partido Liberal. Ambos foram vereadores e cafeicultores
escravistas no município citado e defendiam seus interesses privados no âmbito
da Câmara Municipal, trocando, até, insultos nas sessões realizadas. Outro
oponente do Major Novaes era o vereador Costa Júnior. Com a proclamação
republicana, o Major Novaes, sendo monarquista leva ao extremo seus ideais
políticos, contrários à nova ordem, com a criação da efêmera Vila Novaes, em
1892. Extinta essa, tanto ele como seus correligionários levantam bandeiras
para a transferência da sede municipal, a qual ocorre em 1901, após a morte do líder
em 1898. Atrelada às questões de ordem econômica, principalmente, essa disputa
política deu origem ao atual município de Cruzeiro.
Mas o caso mais notório e emblemático
foi o ocorrido em Guaratinguetá, entre duas correntes políticas, representando
duas famílias, que, apesar de opostas, uma a outra, possuíram laços de
parentesco, estando relacionado com a cidade de Aparecida. Como já mencionado,
as lideranças políticas, em geral, os fazendeiros de café consideravam o
município, onde ditavam suas leis, como um feudo político, uma propriedade de
sua família, sendo por isso transmissível para os sucessores através de herança,
como se transmitisse a posse de uma fazenda, com casas, gado, escravos, etc. De
acordo com a análise de Lucila Herrmann, no cenário nacional da República
Velha, “Guaratinguetá atinge seu período de maior representação. Seus valores ultrapassam
o município, dominam o Estado e a Nação. Esses valores estão, entretanto, quase
totalmente concentrados em mãos de uma família, à qual se ligam outras da elite
agrária”. O nível de mando e desmando faz surgir um princípio de oposição,
reforçada com a atuação de bacharéis pela imprensa, propiciando assim uma
verdadeira contestação política à ordem vigente. Recorrendo mais uma vez a
Maria Isaura Pereira de Queiroz, vemos, no entanto, que a oposição estava numa
sinuca “de bico”, pois “os mandões locais continuavam, nos municípios,
dominando a administração, poder judiciário, a Câmara Municipal. A oposição nem
sequer podia votar porque o processo eleitoral, estando nas mãos da Câmara e do
judiciário, era o mesmo que estar nas mãos do coronel”. A oposição em Guaratinguetá
ao partir para a contestação aberta
estruturou-se nos mesmos moldes da situação, ou seja, a família como
essência de atuação política. As hostes beligerantes ficaram conhecidas,
segundo a análise de Thereza e Tom Maia como alvistas e camarguistas. O
primeiro tinha como líder Antônio de Paula Rodrigues Alves, Comendador do
Império, assim como o Irmão Francisco de Paula Rodrigues Alves, Conselheiro do
Império e duas vezes eleito Presidente da República. Tal grupo herdou as
convicções políticas de Francisco de Assis e Oliveira Borges, o Visconde de
Guaratinguetá, chefe do Partido Conservador na era imperial. O segundo grupo
era coordenado por Eduardo Augusto Nogueira de Camargo, Deputado Estadual,
sendo substituído logo após pelo filho, João Baptista Rangel de Camargo; esse grupo professava os ideais políticos do
“Capitão João Baptista Rangel, fazendeiro, tropeiro e comerciante, que
pertencia ao Partido Liberal”, conforme a interpretação dos autores
guaratinguetaenses já citados, Thereza e
Tom Maia. Como afirmamos acima, as duas famílias, apesar de estarem em posições
antagônicas, possuíam um elo de parentesco muito próximo, o Comendador Antônio
de Paula Rodrigues Alves consorciou-se matrimonialmente com Maria Francisca
Galvão de França, irmã de Thereza Galvão de França, conhecida pela alcunha de
Nhá Thereza. Essa por sua vez, era mãe de Maria Thereza de França Rangel de
Camargo, a Ninica, esposa de Eduardo Augusto Nogueira de Camargo, rival
político do Comendador.
Entrementes, no ano de 1924, os Alves
são alijados, temporariamente, do poder, devido a alguns atritos com Washington
Luís, Presidente de São Paulo, o qual destituiu o Comendador do Diretório Municipal do PRP, favorecendo a ascensão dos
seus opositores. Porém, ainda em 1924, quando Carlos de Campos passa a ocupar a
Presidência do Estado de São Paulo, o alvismo retorna ao cenário político de
forma violenta, com intimidações, assassinatos, e empastelamentos de jornais
oposicionistas, como o “O Pharol”, “ A
Voz do Povo”, “A Gazetinha”, etc. O ápice dessa disputa ocorreu quando entra em
cena a questão da emancipação política de Aparecida. De acordo com os renomados
e já citados autores Tom e Thereza Maia, as lutas “pela imprensa, e até mesmo
confrontos físicos, tornam-se ainda mais acirrados quando o camarguismo levanta
a bandeira da independência de Aparecida, que, juntamente com Roseira, era
distrito de Guaratinguetá”. Em 1927 falece o Comendador Antônio de Paula
Rodrigues Alves e a corrente alvista é chefiada a partir de então, por seu
filho José Rodrigues Alves Sobrinho, conhecido como Juca; assume também as
hostilidades políticas contra o camarguismo, liderado por João Baptista Rangel
de Camargo, como já mencionado. Apesar do voto de “cabresto”, Rangel de Camargo
que, também era advogado, consegue ser eleito pela oposição sendo Vereador em Guaratinguetá
por duas vezes, e outras duas como Deputado Estadual, sendo que, na sua atuação
na Assembleia Estadual, foi definido a situação do Distrito de Aparecida.
Porém, para melhor compreendermos o episódio que ficou na memória popular como “
A Libertação de Aparecida”, torna-se imperativo, analisarmos a evolução
político administrativa desse núcleo religioso, surgido no ´seculo XVIII em
terras da Vila de Guaratinguetá.
Em artigo anterior, de nossa
autoria, publicado por este periódico, analisamos o aspecto político e
econômico de Aparecida, focalizando, porém, a questão da aura de religiosidade
emanada de tal cidade. Tendo sua origem relacionada com a visita, prepararda pela
Câmara de Guaratinguetá, de Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e
Vasconcellos, o Conde de Assumar em 1717, a então capela de Aparecida foi se
destacando na região valeparaibana, ganhando evidências, inclusive no cenário
nacional, devido aos milagres atribuídos à “santa aparecida” no Rio Paraíba. Ao
longo de sua existência, Aparecida transformou-se num centro de peregrinação
religiosa, cuja influência alcançou os mais inóspitos sertões brasileiros.
Também suas paisagens ganharam notoriedade quando da visita de Johann Baptist
Von Spix e Karl Friedrich Philip Von Martius e Thomas Ender em 1717; Auguste
François Cesar Provençal de Saint-Hilaire em 1822, e outros em épocas
diferentes como Jean Baptiste Debret , Miguel Benício Dutra e Augusto Emílio
Zaluar, este em 1860. Mas, havíamos afirmado também, no citado artigo, que a
evolução política de Aparecida seguiu caminhos tortuosos, ora avançando, ora
recuando, de acordo com o jogo político, desde o período imperial. Como em
qualquer povoação, Aparecida foi elevada à condição de Freguesia no dia 4 de
março de 1842, perdendo o status dois anos depois em 15 de março de 1844.
Segundo a análise do Profº. Oswaldo Carvalho Freitas, essa “instabilidade
político administrativa foi no tempo do Império. Com o advento da República
teve sorte: em 4-4- 1891foi restaurado o distrito em caráter definitivo, e
quatro anos depois, a paróquia.”
Nesse ínterim, especificamente a partir da
última década do século XIX, fervilhava a disputa entre os Alves e Camargos,
como já nos referimos anteriormente. Nessa disputa, Aparecida tornou-se um foco
de atenção e tensão entre as duas correntes políticas. Já há algum tempo, a
população de Aparecida ansiava pela emancipação, pois tendo inclusive, uma
estação da E.F. D.Pedro II, mais tarde Central do Brasil, o Distrito de
Aparecida recebia numerosas expedições de romeiros, mas permanecia sujeito ao
Município de Guaratinguetá. Segundo Thereza e Tom Maia, as “manobras do alvismo
procrastinaram por longo tempo o processo. Não raro ocorriam até confrontos
físicos, que algumas vezes se transformavam em acirrados combates”, entre
“alvistas” e “camarguistas”, estes partidários da emancipação do distrito
aparecidense. O nível de tensão eleva-se, quando na Assembléia Estadual, o
Deputado João Baptista Rangel de Camargo, apresenta o projeto de lei que criava
o Município de Aparecida. Os debates em torno de tal projeto foram violentos,
frutos da oposição que fazia o também Deputado José Rodrigues Alves Sobrinho.
Liderando a corrente alvista, esse deputado representava a voz do mandonismo em
Guaratinguetá, cujos integrantes não queriam abrir mão, com a aprovação do
projeto de emancipação, de uma importantíssima zona eleitoral.
Consequentemente, em que pese
o fato das negativas opiniões a respeito da emancipação o grupo alvista acabou
entendendo que a mesma era irreversível. Temendo ficar com a imagem “arranhada” e o prestígio
político abalado por irem na contramão dos anseios da população de Aparecida e
da bandeira levantada por Rangel de Camargo, os políticos alvistas renderam-se,
sendo o projeto aprovado, sem mais incidentes ou empecilhos, no dia 17 de
dezembro de 1928. A ação do Deputado Rangel de Camargo, tanto na Assembléia
Legislativa, como em Guaratinguetá e no, então distrito, ganhou notoriedade,
durante o episódio denominado, “ A Libertação de Aparecida”. Com a emancipação
consolidada, a padroeira da cidade Nossa Senhora Aparecida é proclamada Rainha
e Padroeira do Brasil em 1930. No ano seguinte, a imagem da santa é
recepcionada no Rio de Janeiro, pelo Presidente Getúlio Vargas. Atualmente, a
cidade de Aparecida, apesar de ser o centro de peregrinação mais antiga, divide
o status com Guaratinguetá e Cachoeira Paulista, no chamado “Roteiro da Fé”, ou
“Circuito Religioso”. Ainda assim, Aparecida é a mais procurada e visitada
pelos fiéis, principalmente nas festividades do dia 12 de outubro, feriado
nacional. Até a próxima. Eddy Carlos.
Dicas para consulta
CHALITA Gabriel (coordenador). Vale do Paraíba. Política e Sociedade. Vale Livros / Editora
Santuário. Aparecida, 1993.
FREITAS, Oswaldo Carvalho. Aparecida. Capital Mariana do Brasil. Editora Santuário. Aparecida, 1978.
HERRMANN, Lucila. Evolução
da Estrutura Social de Guaratinguetá num Período de Trezentos Anos. Instituto
de Pesquisas Econômicas / USP. São
Paulo, 1986.
MAIA e MAIA, Thereza Regina de Camargo e Tom. Uma Casa Paulista. Editora Noovha
América. São Paulo, 2007.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo na Vida Política Brasileira. Instituto de Estudos
Brasileiros, USP. São Paulo, 1969.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
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