FONTE: Fotografia de Alberto Goro Yamamoto.
A culinária brasileira deve muito aos costumes indígenas e africanos. Muitas iguarias ou tipos de alimentação, básica do nosso dia a dia, tem suas origens nos hábitos alimentares dos nossos antepassados. Mesmo com o elemento europeu, no caso o português, foi o dos grupos subjugados, cujas práticas atravessaram o tempo e chegaram até nós. Como exemplo, podemos citar, como a mandioca e o milho, mas também o trato com os peixes e alguns invertebrados, como as formigas aladas, as içás (Atta sexdens). O consumo das içás como alimento vem de longa data, e no Vale do Paraíba, o registro mais antigo de que se tem notícia é de 1717. Naquele ano, viajando pelo Vale, rumo à Vila Rica, onde estabeleceria sua sede de governo, o Conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida e Portugal e Vasconcelos, teve a içá em seu cardápio. O fidalgo português teria se encantado com a novidade, comparando a içá à “manteiga de Flandres”, segundo Thereza Regina de Camargo Maia. Citando o historiador Sérgio Buarque de Holanda, Thereza Maia afirma também que a “içá torrada venceu todas as resistências, urbanizando-se mesmo, quase tão completamente como a mandioca, o feijão, o milho e a pimenta da terra”. Concomitantemente, o escritor Monteiro Lobato considerava a içá como o “caviar da gente de Taubaté”. Chamada também de tanajura, a içá é na realidade a fêmea e a rainha das formigas saúvas. Durante as primeiras chuvas de setembro e outubro, iniciam o período de reprodução, sobrevoando em grande número, as regiões planas e também montanhosas no Vale do Paraíba. Obviamente, é na área rural que encontram o espaço para pôr seus ovos, após descerem ao chão. Com isso perdem as asas e buscam logo formas de penetrar na terra para a desova. Acompanhando a revoada, vêm também os machos, chamados de “bitú” ou “içábitú”, bem menores. É justamente, quando “aterrissam”, que se tornam vulneráveis, sendo facilmente capturadas em grande quantidade pela população ávida em degustá-las. O consumo é feito de várias formas: cru, torrada, com farofa ou paçoca. Devido à enorme quantidade à “disposição”, há os que congelam as içás, consumindo-as ao longo do ano, servindo também de tira-gosto com cachaça, como ocorre nos engenhos de Guaratinguetá. Outros foram mais além e sabendo explorar uma atividade econômica gastronômica atrelada ao turismo, tornaram-se célebres e respeitadas no setor, como Ocílio Ferraz.
Filho, neto e bisneto de tropeiros, Ocílio José Azevedo Ferraz nasceu em Silveiras, no dia 22 de maio de 1938. Os primeiros anos escolares foram em Cachoeira Paulista; em seguida em Lorena. Em 1977 chegou à cidade de São Paulo, onde se estabeleceu. Sociólogo de formação, professor, administrador, etc; Ocílio estudou e trabalhou no mercado de capitais. Casou-se e adquiriu uma propriedade rural em Caçapava, já ensaiando um retorno ao Vale do Paraíba. Segundo o site silveirasemfoto.com, na Fazenda Gramado em Caçapava, Ocílio implantou um “pioneiro núcleo de educação ambiental cultural, rural e gastronômico, com resultados multiplicadores, pela ousadia na percepção de talentos, nos mais singelos ambientes rurais e urbanos daquele município”. Mas foi para a terra natal, Silveiras, que Ocílio dedicou a maior parte de sua vida, nos últimos quarenta anos. O Município de Silveiras quase desapareceu, devido à decadência da atividade rural e início do surto industrial. A cidade ainda é marcada pelos traumas, decorrente de dois conflitos políticos, em menos de um século. Em 1842, foi bombardeada e saqueada pelas forças legalistas durante a Revolução Liberal. Ao menos 52 pessoas foram assassinadas pelas tropas do então Barão de Caxias. Em 1932, foi novamente bombardeada; dessa vez pelas forças leais a Getúlio Vargas, na Revolução Constitucionalista. E é a um ambiente decadente que Ocílio retorna, conforme seu próprio relato, após “anos de efetiva ausência (mais de 20), vi-me ao final de 1978 seguindo por estrada de péssima conservação, em direção à Silveiras (...). No período compreendido entre 1945 e 1956 foi pequeno o convívio com Silveiras, por razões escolares ou mesmo econômicas (...). Revi lugares comuns e a tristeza do lugar. Chocou-me a musicalidade ausente, as ruas desertas, raras crianças, nenhum jovem, as portas fechadas”.
Ocílio afirma que retornava à Silveiras para administrar uma propriedade rural, a fazenda que fora de seus antepassados, mais tarde batizada como Fazenda do Tropeiro. Diante do cenário desolador, é iniciada uma campanha com o objetivo de “ressuscitar” Silveiras, tirando-a do limbo e do esquecimento. Para o sociólogo, o processo de decadência econômica da cidade “iniciado ao final do ciclo do café na região foi constante. A distância da sede do município com relação à Estrada de Ferro Central do Brasil colaborou, e a inauguração da rodovia Presidente Dutra na década de 50 foi outro duro golpe”. Além do mais, a única ligação de Silveiras, com a referida rodovia e, assim com São Paulo e Rio de Janeiro, estava praticamente abandonada pelas autoridades. Inaugurada como Rodovia Presidente Washington Luís em 1927, a Estrada Velha Rio-São Paulo, não atendia às necessidades de Silveiras e das demais cidades do Vale Histórico. Outro silveirense aborda a decadência da cidade. O Prof. Francisco Sodéro afirma que “a Estrada de Ferro, acabou isolando Silveiras, da região do progresso e modernização das outras cidades. Por outro lado, continua o Prof. Sodéro, o desenvolvimento da pecuária, no “início do século XX, não conseguiu manter o ritmo de crescimento do setor rural, verificado nas décadas anteriores. Teve início o êxodo rural. A cidade, despreparada, não conseguiu reter a população que se encaminhou para outras regiões”.
Consequentemente, tendo o apoio de familiares, amigos, entidades culturais e filantrópicas e autoridades políticas, Ocílio prosseguiu em sua campanha para o resgate de Silveiras. Tudo o que se referia à cidade foi enaltecido, como os acontecimentos de 1842, as residências históricas, e populares que permaneceram na cidade, como o tropeiro Josias Mendes, grande amigo de Ocílio. Pela imprensa, passam a ser divulgados os méritos culturais, despertando, além de Silveiras, a atenção de todo o Vale do Paraíba. À esse tempo, Ocílio se desdobrava entre Silveiras e Caçapava, numa constante batalha cheia de dificuldades, Os resultados logo surgem; em fevereiro de 1981 é criada a Silveirarte e, contando com apoio dos amigos Tom Maia e Thereza Maia, é definida como a imagem do silveirense, o tropeiro, que passa a simbolizar o homem valeparaibano. É instituído o Dia do Tropeiro, 30 de agosto de 1981, que coincide com a I Festa do Tropeiro, que logo se alastra pelo Vale, chegando a São José dos Campos. Também em 1981, inserido no contexto do tropeirismo, o Caeser Park Hotel de São Paulo lança o Festival Gastronômico Cultural, tendo como foco a cidade de Silveiras.
O trabalho de Ocílio Ferraz é reconhecido pelo Congresso Nacional que, com a Lei n°2.437/83, institui o Dia Nacional do Tropeiro. Em poucos anos, com o avanço dos projetos culturais e apoio de instituições, surge a Fundação Nacional de Tropeirismo, em 1988, cuja sede é estabelecida em Caçapava, na Fazenda Gramado. E nesse ano também, Ocílio Ferraz se estabelece definitivamente em Silveiras, na Fazenda do Tropeiro, onde estrutura o Restaurante do Ocílio, inicialmente em um casarão histórico no centro da cidade. E foi com as içás que Ocílio conquistou, merecidamente, a fama e o sucesso. Além, da farofa e paçoca de içás, Ocílio desenvolveu diversas receitas com a formiga, além da tradicional comida caipira, feita no fogão à lenha. Membro honorário da Academia Brasileira de Gastronomia, Ocílio ganhou o mundo; viajou várias vezes à Europa, divulgando seu trabalho. Por outro lado, os europeus se dirigiam a Silveiras para apreciar as içás do Ocílio. Por duas vezes se apresentou em um conhecido programa de televisão de uma grande emissora. Ao mesmo tempo, como sociólogo e escritor, prosseguia em suas pesquisas e defesa do patrimônio histórico e cultural do Vale do Paraíba. Atuou também em alguns órgãos governamentais. Recorrendo mais uma vez ao site silveirasemfoto.com, constatamos que já no início da década de 1980, Ocílio fez parte do Conselho Estadual do Meio Ambiente, durante o Governo de Franco Montoro. Com Mário Covas foi membro do Conselho Estadual de Turismo. No governo Alckmin, integrou o Conselho Estadual de Cultura, onde destacou “a importância dos povos indígenas na formação da alma do paulista”. Em 2006 foi Secretário de Cultura do Município de Canas.
Como pesquisador, historiador e escritor, Ocílio Ferraz publicou vários livros e artigos em jornais e revistas. Além das receitas gastronômicas, cujo foco era em geral, a içá, publicou , entre outros títulos, “Viajantes e Tropeiros” e, a obra principal, “Voltando às Origens”, quando de seu retorno à Silveiras. Auxiliou ainda na publicação de uma série de livros, ligados à Fundação Nacional do Tropeirismo, os “Cadernos Culturais do Vale do Paraíba”. Esse projeto teve também a colaboração das Prefeituras de Aparecida, Lorena, São José dos Campos, Taubaté; de algumas entidades ligadas à indústria, e da Universidade de Taubaté, UNITAU. Fez parte, também do IEV, Instituto de Estudos Valeparaibanos, contando sempre com o apoio de Tom e Thereza Maia, José Luiz Pasin, Ruth Guimarães, Nélson Pesciotta, Paulo Pereira dos Reis, Aziz Nacib Ab’Saber, Jairo Ramos, e muitos outros. A atuação de Ocílio Ferraz, foi reconhecida como já mencionada, tornando-se objeto de estudos em cursos técnicos e superior, na região. E foi através do interesse pela História Regional, que tivemos contato com a obra de Ocílio Ferraz, ao adquirir em um sebo de São José dos Campos, o livro “Voltando às Origens” A partir desse livro, fomos nos aprofundando no estudo dos costumes de nossos antepassados valeparaibanos.
O autor deste relato conheceu Ocílio Ferraz pessoalmente no início de 2013. Ocílio fazia seu ingresso na Academia Cachoeirense de Letras e Artes, a ACLA, de Cachoeira Paulista. A posse como Membro Vitalício ocorreu em fins do mesmo ano, e o Mestre passou a ocupar a cadeira de número 39. Em todas as reuniões e eventos da ACLA, Ocilio nos ensinava como resgatar e valorizar nossas origens. Cordialmente cedeu espaço para reuniões da ACLA, na Fazenda do Tropeiro, em meados de 2013, onde em uma delas, acompanhado de um excelente café colonial, nos brindou com uma brilhante apresentação histórica de Silveiras, do Vale, e dos tropeiros. Em 2014, participou como co-autor da II Antologia da ACLA, estando presente ao lançamento em Cachoeira Paulista, assim como foi no ano anterior (lançamento da I Antologia). Em janeiro de 2015, esteve presente à cerimônia de nossa posse como presidente da referida academia. Devido à agenda lotada de seu estabelecimento em Silveiras, Ocílio não pode comparecer ao lançamento de nosso primeiro livro, “Uma Janela no Tempo. Os Godoy Fleming no Embaú”, ocorrido em março de 2015, em Cachoeira Paulista. Fez questão, no entanto, de solicitar um exemplar, o que nos deixou, deveras lisonjeado.
Mestre Ocílio trabalhou incansavelmente; entre o final de 2015 e início de 2016, contudo, começamos a notar sua ausência, inicialmente nas reuniões da ACLA. Soubemos através de um amigo acadêmico, que estava em tratamento de saúde e, por isso decidira se manter recluso em Silveiras. Através das redes sociais percebemos o quão era grave sua enfermidade. Em setembro de 2016, o autor destas linhas, juntamente com dois acadêmicos Roberto Godoy e Jurandir Rodrigues (este acompanhado da esposa), esteve em Silveiras. Muito abatido, Ocilio nos recebeu em seu restaurante e, na ocasião fizemos a oferta de um exemplar do nosso segundo livro, “Sítio Santa Helena. Uma Perspectiva Histórica”. O livro foi lançado em julho de 2016, em São José dos Campos, no qual Ocílio também não pode comparecer. Durante nosso encontro, em nenhum momento demonstrou tristeza ou desânimo. Na despedida, antes de retornar a Cachoeira Paulista, o último abraço fraterno. A ACLA soube reconhecer em vida o valor de Ocílio Ferraz. Através de nossa iniciativa e do acadêmico Roberto Godoy, nossa academia aprovou e encomendou uma placa em homenagem ao Mestre. Em novembro, uma comissão da ACLA, integrada pelos acadêmicos, Prof. José Maurício, Roberto Mendes e Izabel Fortes, se dirigiu à Silveiras para a entrega da honraria a Ocílio Ferraz. O autor do presente artigo não pode, dessa vez, comparecer.
Contudo, quis o destino que iríamos encontrar Ocílio mais uma vez e de forma dolorosa. Na noite de 18 de dezembro de 2016, após uma cirurgia, os olhos de Mestre Ocílio se fecham para sempre. Ainda como Presidente da ACLA e, representando também o IEV, comparecemos ao velório e sepultamento em Caçapava, embora seu desejo fosse em Silveiras; algo que não iremos entrar em detalhes. Assim o Vale do Paraíba perde mais um de seus ícones culturais, como ocorrera com Paulo Pereira dos Reis, José Geraldo Evangelista, Agostinho Ramos, José Luiz Pasin, Ruth Guimarães, etc. Na cerimônia de posse da nova Diretoria da ACLA, tanto este que escreve este relato, como o novo Presidente, o acadêmico Osvaldo Luiz, citamos a importância ao trabalho cultural, além, obviamente do legado deixado pelo Senhor das Içás. Ocílio deixou a esposa Helenita, os filhos Fábio e Paula Ferraz, e quatro netos. Mas todos ficamos órfãos com a irreparável perda e, cabe a todos nós, amigos, discípulos, confrades e familiares, perpetuarem a memória de Ocílio Ferraz. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
GUIMARÃES, Ruth. Crônicas Valeparaibanas. Centro Educacional Objetivo/CERED. Caçapava, 1991.
FERRAZ, Ocílio José Azevedo. Voltando às Origens. CESP. São Paulo, 1984.
MAIA, Thereza Regina de Camargo. Guaratinguetá Ontem e Hoje. Noovha América. São Paulo, 2010.
TOLEDO, Francisco Sodéro. Em Busca das Raízes. Editora Santuário. Aparecida, 1988.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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