Imagem extraída da internet. Berfares na Câmara Municipal de São José dos Campos.
Nas últimas campanhas eleitorais,
temos verificado um verdadeiro descalabro em termos de campanha política, troca
de ofensas e insultos entre os candidatos e, assim como em outras ocasiões,
novamente, o voto de “protesto”. Em uma dessas campanhas, o eleitorado elege um
humorista conhecido na mídia televisiva, que transmutado em palhaço, consegue o
seu intento. Ao conseguir a vitória nas urnas, acaba fazendo os seus eleitores,
de palhaços. Por outro lado, tal voto de protesto acaba favorecendo “velhas raposas”
da política nacional, que “pegando” carona neste tipo de manifestação acabam se
perpetuando no poder e fazendo a farra com o erário. Mas, no Brasil, já houve
épocas em que o voto de protesto era exercido de forma inteligente e
consciente, como ocorrido em São José dos Campos na década de 1960,
durante os anos de chumbo. Antes, porém, torna-se imperativo uma análise
minuciosa sobre a estrutura político-administrativa no Brasil desde os tempos
coloniais.
Com a
fundação de São Vicente, por Martim Afonso de Sousa em 1532, Portugal inicia de
fato a colonização de Pindorama. O modelo administrativo é trazido do Reino e
implantado na colônia ultramarina. Conhecido pelo nome oficial de Vila, o
Município tinha a sua autoridade e governo exercido pela Câmara Municipal,
composta pelos vereadores, escolhidos ou indicados pelos, assim chamados,
“homens bons”. De acordo com Pedro Brasil Bandecchi, as Ordenações Manuelinas
determinavam que os Conselhos Municipais (Câmara) realizassem eleições para a
escolha dos vereadores. A de São Vicente foi questionada por Francisco Adolpho
de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Alegava que a mesma não teve
eleições, sendo assim um simulacro de Câmara. Discordando de Varnhagen,
Bandecchi afirma que Martim Afonso lançou as bases estruturais do governo local
para “dar início à Colonização regular do Brasil, com os elementos que trazia.
Não trazia (...) uma Câmara, prémontada (sic.), mas a estrutura legal traçada
nas Ordenações e o poder para resolver os casos conforme a situação, poder este
que lhe facilitava, inclusive a nomeação dos principais oficiais da Câmara de
São Vicente”. A partir de então, as futuras casas legislativa deveriam realizar
eleições, fosse para renovar a edilidade ou para a criação de novas Vilas. Porém,
as eleições eram “diferentes”; não eram diretas e só podiam votar os “homens
bons”, como afirmado. Tais homens eram os proprietários agrícolas e
escravistas, ou seja, a elite colonial. Por outro lado, as Câmaras no período
colonial gozavam de considerável autonomia, podendo inclusive escrever
diretamente ao Rei denunciando abusos de outros funcionários e representantes,
como governadores. A liberdade de expressar-se dessa forma era a pedido do
próprio Rei, e os edis o faziam com plena convicção, que solicitavam até a
remoção de altos funcionários envolvidos em irregularidades, como o crime de
lesa majestade (eram outros tempos). Segundo Brasil Bandecchi, essa liberdade
de denunciar remontava à Idade Média lusitana. Por isso, a “oposição das
Câmaras Municipais aos atos irregulares dos governadores fez-se sentir desde o
início, ou seja, desde o tempo do primeiro Governador-Geral”. Outro fato
peculiar das Câmaras Municipais é que os vereadores não recebiam proventos,
isto é sua função não era remunerada.
Entretanto, após a descoberta de metais preciosos no Sertão dos Cataguases
(Minas Gerais), a administração colonial passou ao rígido controle da Coroa.
Com um governo centralizado e um rigoroso controle (até militarizado nas zonas
auríferas) as Câmaras Municipais foram enfraquecidas, tornando-se meras
retificadoras das ordens reais. Na Capitania de São Paulo, o exemplo máximo
desse período é o governo do Capitão-General Dom Luiz Antônio de Souza Botelho
Mourão, o Morgado de Mateus Porém, durante o período imperial ocorre algumas
modificações. As Câmaras retomam sua autonomia, mas sua legislação deveria
estar atrelada à Constituição Imperial, promulgada em 1824. As eleições eram
realizadas nas igrejas e continuaram indiretas, com certas diferenças. A
população escolhia entre os mais abastados, os eleitores e estes elegiam os
edis. Eleita a Câmara tornava-se Presidente o edil mais votado. Cabia à Câmara
também o papel de polícia. Por isso que, geralmente a Cadeia funcionava ao lado
ou no mesmo prédio, no pavimento inferior.
Com a
Proclamação da República, todas as Câmaras foram dissolvidas e foram criados os
Conselhos de Intendência, cujo Presidente figurava como o Prefeito nos dias de
hoje. Antes a função da Câmara era de legislar a executar as leis; com a
Intendência houve uma separação de funções, criando-se o Poder Executivo local.
Ao longo da República Velha, as Câmaras tiveram novamente certa autonomia,
embora restrita, para serem novamente dissolvidas, junto com Assembleias Legislativas
Estaduais e o Congresso Nacional, fechados durante o Estado novo. Findo o
período Varguista novos ares democráticos, com a atuação de vários partidos
políticos e mais uma vez as Câmaras sofrem intervenção direta ou são fechadas,
ou ainda, funcionam vigiadas durante o Governo Militar (1964-1985). Uma das
medidas dos dirigentes de quepe foi a extinção do multipartidarismo. Apenas
dois partidos teriam autorização dos militares para funcionar: a Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), situação, e o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), oposição consentida, porém vigiada. A ARENA agrupava os políticos que
apoiavam ou simpatizavam com o Governo Militar e o MDB integrava partidos
esquerdistas e outros que não eram da esquerda, mas apoiavam ou faziam parte do
governo deposto em 31 de março de 1964. Contanto com o apoio por sua vez do
Executivo, composto majoritariamente pela ala militar que derrubou João
Goulart, a ARENA era maioria nas duas casas do Congresso, reaberto após o AI-5.
As eleições tinham novo caráter: acabaram a de Presidente e governadores dos
Estados e Municípios considerados áreas de Segurança Nacional. Mas para o
Legislativo ainda havia eleições, mesmo nos municípios em que o Prefeito era
nomeado pelas autoridades superiores. È o caso de São José dos Campos, que
passamos a analisar a partir de agora.
Nesse
cenário a cidade de, São José dos Campos foi considerada área de Segurança
Nacional e de 1968 a 1976 a eleição para Prefeito estava
proibida. Eleito em 1966, o Prefeito Elmano Ferreira Veloso concluiu o seu
mandato até 1970. Nesse ano, o Governo Militar nomeia o Brigadeiro Sérgio
Sobral de Oliveira que permanece até 1975, quando é nomeado o engenheiro
Ednardo José de Paula Santos. Dessa forma, eram as eleições para o legislativo que
canalizavam as disputas políticas. Em 1968 as lideranças estavam distribuídas
da seguinte forma: além do próprio Prefeito Elmano Veloso, integravam a ARENA,
Nadim Rahal, José de Castro Coimbra, Mário de Paula e o Deputado Estadual
Benedito Matarazzo; no lado oposto estavam agrupados no MDB, Argemiro
Parizzoto, Luiz Paulo Costa e o Deputado Estadual José Marcondes Pereira. Assim
como no âmbito nacional, o MDB, permitido pelos militares, tornara-se, segundo
a análise de Carlos Alberto Fernandes Pinto, “um grande guarda-chuva que abriga
sindicalistas, empresários, comunistas, estudantes”, etc... Apesar de tudo é
contraditório que o Estado de exceção, instituído em 1964, proibisse eleições
diretas para cargos do Executivo, aparentemente dava ampla liberdade ao cidadão
de se candidatar e votar em pessoas consideradas “pitorescas”. É nesse ambiente
político que surge o carroceiro Berfares Souza de Oliveira.
Nascido em uma área rural, próximo do Bairro de Santana, Berfares era o caçula
de oito filhos do casal Antônio Souza de Oliveira e Elisa Isaura da Conceição.
Na referida área, conhecida como Fazenda Jataí, Berfares e os irmãos Benedita,
Deomar, João, Laudelino, Marcilio, Marquinha e Durvalina passaram a maior parte
de suas vidas. Assim como o pai, Berfares exerceu inicialmente a atividade da
pesca, sendo portanto piraquara, pois era do Rio Paraíba que tirava o sustento
para a família. Na década de 1960, Berfares após morar em diversos bairros,
fixa residência na Vila Cristina, à margem do mesmo rio, continuando a viver
como piraquara; utilizava também uma carroça para pequenas atividades na zona
norte de São José dos Campos. Em 1963, tenta uma vaga na Câmara pelo PTN
(Partido Trabalhista Nacional). Segundo o jornalista Carlos Alberto Fernandes,
devido à origem humilde do candidato, o presidente do partido Tavares Neto,
além de não levar a sério, não registrou a candidatura e Berfares perdeu todos
os votos que teve, pois foram anulados. Em 1967, incentivado por amigos e
conhecidos Berfares procura o Deputado Estadual Marcondes Pereira, líder do
MDB, para se filiar e se lançar como candidato ao Legislativo Municipal.
Novamente o estigma de piraquara fala mais alto, pois Marcondes exige que
Berfares apresentasse um abaixo assinado em apoio à candidatura e o título
eleitoral. A intenção era desestimular a iniciativa, uma vez que Berfares
estacionara sua carroça diante do escritório político do deputado, localizado
na Rua Dr. Rubião Jr. Quinze dias mais tarde, Berfares estaciona novamente seu
“veiculo” e apresenta a lista com duas mil assinaturas, além do titulo.
Conforme a análise de Luiz Paulo Costa, diante da “situação, apanhado de
surpresa, Marcondes (...) não teve outra alternativa senão concordar (...). O
carroceiro estava em condições de pleitear sua candidatura pelo MDB”. Na
realidade, Marcondes percebera que seria o voto do protesto, pois em 1966 os
paulistanos votaram no rinoceronte “Cacareco” e os cariocas no macaco “Tião”.
Com Berfares, este podia assumir o cargo.
O
lançamento de Berfares convulsionou a disputa política na cidade. Na ARENA, os
Vereadores Getúlio Orlando Veneziani e Sebastião Teodoro de Azevedo disputavam
quem teria mais votos. Mas ambos se uniram quando viram o seu reduto eleitoral
ameaçado, como os bairros de Santana e Alto da Ponte. Por outro lado, a classe
estudantil via nos políticos da ARENA, os “capachos e lambe-botas da ditadura”
e deram apoio maciço ao candidato Berfares. Na realidade, segundo Luiz Paulo
Costa, os estudantes do Colégio Estadual Profª. Maria Luiza Guimarães Medeiros,
de Santana, “onde também estudavam alunos da Vila Cristina (local onde residia
Berfares) e do Alto da Ponte, tomaram aquilo como um desafio”, daí o apoio
intensivo e participação constante nos comícios. Outro grupo que apoiou
Berfares era o dos “gozadores”, conforme afirmado por Carlos Alberto. Assim que
a candidatura foi anunciada, e querendo provocar os políticos da ARENA, alguns
“fizeram cartazes ligando Jeca Tatu a Berfares. Dessa forma, todo mundo ficou
sabendo que a novidade era um humilde, mas abusado carroceiro querendo ser
“autoridade”. Levando na ironia e no deboche, os candidatos “oficiais” do
governo, Getúlio Veneziani e Sebastião Teodoro, além de fazer campanhas
dispendiosas atacavam o adversário, cuja campanha era “movida” pelos estudantes
e o povo simples que distribuía “santinhos”. Além do mais, como não acreditavam
em Berfares, tanto Getúlio como Teodoro, prometeram que caso o carroceiro
vencesse, o primeiro o carregaria nas costas e o segundo mudaria de bairro.
Luiz Paulo Costa vai além, ao mencionar um boato que logo se espalhou: que
Getúlio deixaria que lhe colocassem um arreio de montaria, para Berfares
montá-lo se fosse eleito. Verídico ou não os climas se acirraram após o
resultado do pleito, realizado em 15 de novembro de 1967.
A
apuração dos votos confirmou a superioridade de Berfares e em meio aos
festejos, a população, principalmente os estudantes, levou Berfares nos braços
até a casa de Getúlio Veneziani, para que o mesmo cumprisse sua promessa. Ao
tomar conhecimento que a multidão seguia para o Alto da Ponte carregando
Berfares, Getúlio não esperou e fugiu para sua propriedade rural, a Fazenda
Santo Agostinho; mas já acionara a polícia para proteger sua residência urbana.
Um que “cumpriu” a promessa foi Sebastião Teodoro que se mudou para a região
central de São José dos Campos. Na região norte da cidade, Berfares liderou a
apuração conseguindo 1.242 votos, á frente de Coimbra, o próprio Getúlio e
Sebastião Teodoro. Porém, mesmo no MDB, o nome de Berfares incomodava, como é o
caso de Joaquim Vilaça, favorito do partido antes do carroceiro e que não se
elege; por isso queixa-se ao compadre Marcondes Pereira. Sendo assim, embora no
geral, a ARENA mantivesse a vantagem numérica, o MDB consegue sete cadeiras na
Câmara Municipal. Carlos Alberto afirma ainda que a votação “do carroceiro foi
tão boa que ajudou a eleger um jovem estudante. Robson Marinho (...). Robson
ficou com a última vaga nesta eleição (32 votos a mais que o suplente).” Mesmo
com esse desempenho nas urnas, o MDB tentou articular para que Berfares não
assumisse a mandato para beneficiar Benedito Marcondes, irmão do presidente da
sigla que havia ficado como suplente. Denunciado o fato na imprensa, apesar de
negado pelo partido, iniciou-se uma campanha pela posse do carroceiro.
Ao
assumir o cargo, Berfares Souza tornou-se a voz dos piraquaras e pessoas
humildes da zona norte de São José dos Campos. Contudo, enfrentou dificuldades,
dentro e fora do círculo político. Internamente, além de ser ridicularizado
pelos colegas tanto da situação como da própria oposição, teve que trabalhar de
graça. Em março de 1969 o Governo Militar cortou os salários dos vereadores em
todo o país, o que valeu até 1972. Recém-casado e com a prole aumentando, os
colegas chegaram a fazer “vaquinha” para Berfares, que contava também com a
ajuda da população de Santana e Alto da Ponte. Apesar de tudo, a atuação de
Berfares como vereador foi exemplar e acima da média dos demais edis. Em
fevereiro de 1970, Berfares se envolve em uma polêmica ao ser acusado pelo
Presidente da Câmara, Vereador Nadim Rahal de ter pedido dinheiro para votar no
candidato da ARENA para a presidência da casa. Entre debates e discussões
acaloradas, com a votação “trancada” por Nadim, Berfares é defendido,
ironicamente, por Sebastião Teodoro, vereador da situação. Os próprios
vereadores da ARENA pressionam Nadim Rahal e a eleição se realiza, sendo
escolhido José de Castro Coimbra para a presidência. Mesmo não se provando nada
contra Berfares, ele e outros vereadores foram levados ao DOPS em São Paulo
para esclarecimentos. Como era de se esperar o caso acaba sendo arquivado.
Em
1972, Berfares concorre novamente e tem votação expressiva. Ao assumir o
segundo mandato, as coisas mudam, os subsídios voltam a ser pagos para os
vereadores. Porém, mesmo com a vitória, Berfares agora não representava mais o
voto de protesto. Segundo Luis Paulo Costa, naquele início da década de 1970,
“o eleitorado já estava consciente de que votar no MDB era votar contra a
ditadura”. Ainda assim, Berfares era o único que atendia aos anseios dos
piraquaras. Novamente sua atuação é exemplar, mas nas eleições de 1976, ainda
pelo MDB, fica na suplência, com 1.082 votos. Em 1982, concorre pelo PDS
influenciado por Joaquim Bevilácqua, mas tem baixa votação. Em 1988 Berfares
tenta pela última vez, agora pelo PTB (também influenciado pelo mesmo
Bevilácqua) e não consegue se eleger, conseguindo somente 113 votos. Uma das
explicações para a derrocada do carroceiro foi a crescente profissionalização
das campanhas políticas dotadas de alto investimento financeiro. Outra diz
respeito à concorrência direta dentro do MDB e da base eleitoral de Berfares,
representada pela ascensão de Raimundo Romancini e de Miranda Ueb, ambos considerados
como ‘lideranças mineiras”, conforme Carlos Alberto Fernandes Pinto. Nas duas
vezes em que exerceu a vereança Berfares conseguiu a aprovação de uma única lei
de sua autoria. Chamada de Lei Berfares aprovada em 03 de novembro de 1976,
dava preferência aos produtores rurais joseenses nas feiras livres. Após deixar
a Câmara, Berfares consegue emprego na Prefeitura Municipal, onde trabalha por
16 anos até se aposentar. Até o falecimento ocorrido entre 2008 e 2010, era
comerciante na Vila Cristina. Assim como mencionamos no início do presente
artigo, o voto de protesto em São José dos Campos na época dos anos
de chumbo representou a indignação contra as autoridades militares e coroou com
êxito a livre escolha, pelo menos no legislativo, em candidatos considerados
inertes e sem expressão política. Lamentavelmente não é o que ocorre nos dias
atuais. A eleição de um “palhaço”, que faz os eleitores de palhaços é
diametralmente oposta à que elegeu o edil da carroça. Até a próxima.
Eddy Carlos
Dicas para consultas.
BANDECCHI, Brasil. O Município no Brasil e sua função política. Editora
Pannartz. São Paulo, 1983.
BONDESAN, Altino. São José de Ontem e de Hoje. JAC
Editora. São José dos Campos, 1996.
COSTA, Luiz Paulo. História e Estórias de São José dos Campos. JAC
Editora. São José dos Campos, 2005.
PINTO, Carlos Alberto Fernandes. Berfares, um Carroceiro na
Câmara de São José. Gráfica Ypiranga. São José dos Campos, 2003
VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil. Cia.
Melhoramentos. São Paulo, 1926.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário