FONTE: www.malbatahan.com.br
De acordo com a narrativa bíblica, o patriarca
Abraão, impaciente pela esterilidade da esposa Sara, teve a permissão de Deus
para se unir com sua escrava, a egípcia Agar, resultando daí o filho Ismael.
Alguns anos mais tarde, Sara alcança a graça divina, e consegue engravidar de
Abraão, dando à luz Isaac. Tanto Agar como Ismael, passaram para segundo plano
e, por interferência de Sara , Abraão
expulsa mãe e filho do seu convívio; o garoto, então adolescente, com
aproximadamente 12 anos de idade. Assim ambos se estabelecem inicialmente no
Deserto de Parã, ao Norte da Península do Sinai. Isaac acabou sucedendo o pai e
dele descenderam outros povos como edomitas e hebreus; destes mais tarde
restaram os judeus. A Bíblia não menciona, mas sabemos que a descendência de
Ismael propagou-se pela península arábica, vivendo como nômades nos desertos e
oásis, apascentando seus rebanhos de ovelhas ou conduzindo caravanas comerciais
com camelos; outros atuavam como salteadores do deserto. Em alguns trechos do
Velho Testamento, os filhos de Ismael são citados como amistosos ou belicosos.
Por exemplo, o sacerdote Jetro, sogro de Moisés, que habitava o Sinai, chefiava
uma tribo de madianitas, descendentes de Ismael. Outro exemplo: durante o
avanço pela região, rumo à Terra Prometida, os hebreus liderados por Moisés são
atacados por amalequitas, também descendentes de Ismael.
Entretanto, no século VI d. C., um líder de caravanas se insurgiu contra
seus superiores e, perseguido fugiu da cidade de Meca para Medina. Liderando um
exército invade Meca conquistando-a, unificando as tribos nômades do deserto. O
ano é 630 d.C. e após abolir o culto politeísta, mas mantendo a Kaaba, no
centro de Meca, o Profeta Mohamed (Maomé), funda uma nova religião , o Islã e
prega a guerra santa, a jihad, contra os povos infiéis. Em 638 conquistam
Jerusalém e expandem seu domínio no Oriente Médio e Norte da África, chegando à
Europa em 711, através das Colunas de Hércules. O líder árabe Tarik derrota o
rei visigodo Rodrigo, e conquista a Espanha. Em sua homenagem o local passa a ser
chamado de Djebel al Tarik (Monte de Tarik), ou Estreito de Gibraltar. Após
dominar toda a península ibérica, os árabes avançam sobre os Pirineus, sendo
barrados na Batalha de Poitiers em 732 por Carlos Martel. Mesmo com essa
derrota nascia o Império Árabe. Porém, a unidade dura pouco e após a morte de
Mohamed surge divisões internas que fragmentam o imenso império, facilitando a
ascensão dos turcos otomanos, também adeptos do islamismo. O Império Otomano
conquista aos poucos os antigos territórios, que outrora pertencera ao Império
Bizantino, como a Palestina, Transjordânia, Mesopotâmia, Egito, Síria, Líbano e
o Norte da Arábia. Mesmo dominando os árabes, os turcos assimilam sua cultura e
sua religião, propagando-a pelo imenso território. Durante a I Guerra Mundial,
França e Inglaterra insuflam a insurgência de árabes e judeus contra os turcos,
missão levada a cabo por Edward Thomas Lawrence, diplomata inglês. Para cooptar
as lideranças locais e garantir o apoio, os líderes ocidentais passaram a
exaltar e “valorizar” a cultura e os costumes árabes. Em outra frente, a política,
os Aliados prometiam para os árabes, a criação de um Estado soberano, a “Grande
Arábia”, incluindo a Palestina, livre do domínio turco; no caso da Palestina,
prometeram também para os judeus. Com o fim da guerra e a derrota turca, as
promessas são deixadas de lado e os vencedores criam ao invés de um Estado,
vários protetorados, sujeitos à administração ocidental, como já estava
estabelecido no então acordo secreto Syckes-Picot, assinado entre Inglaterra e
França e que seria a base do Tratado de Sévres, imposto à Turquia. A França
passa a controlar a Síria e o Líbano e a Inglaterra assume o controle da
Mesopotâmia (Iraque), Transjordânia e a Palestina. Apenas a Arábia é
transformada em Estado, mas subserviente aos interesses europeus, sendo entregue
ao clã saudi, surgindo a Arábia Saudita. Esse jogo político representa uma das
causas do conflito árabe-israelense que eclodiu em 1947, com a criação do
Estado de Israel pela ONU, sem consultar a população palestina.
Todavia, a missão do diplomata britânico na região foi cultuada até em
Hollywood, com o filme “Lawrence da Arábia”. O mundo ocidental passa então, a
apreciar a cultura, história, conhecimentos científicos e a culinária árabe,
desprezando, porém sua religião, considerando-a maléfica e inspiradora do
terrorismo. Ainda assim, muitos filmes, livros e peças teatrais, além de
desenhos animados foram criados representando o ambiente islâmico e muçulmano.
Podemos citar, por exemplo, “Ali Babá e os 40 Ladrões”; “O Ladrão de Bagdá”; “Simbad,
o Marujo”; “O Sheik de Agadir”; “Alladim”; “As Mil e Uma Noites”, etc. Mas nas
obras literárias e, principalmente nos filmes produzidos no Ocidente, o árabe
ou muçulmano, é retratado como sendo inferior ou submisso o que acaba
reforçando a discriminação e o preconceito religioso contra os filhos de Alá.
Mesmo sendo dessa forma, a divulgação do estilo de vida árabe e as aventuras no
deserto chegaram ao Brasil, influenciando até mesmo alguns intelectuais, como é
o caso de Júlio César de Mello e Souza.
Segundo a
análise do Prof. Moysés Gonçalves Siqueira Filho, o casal João de Deus Mello e
Souza e Carolina Carlos de Mello e Souza tiveram nove filhos: Maria Antonieta,
Laura, João Batista, Júlio César, Julieta Carmem, Nélson, Rúbens, José Carlos e
Olga. O casal era proprietário do Colégio João de Deus, na cidade valeparaibana
de Queluz, sendo aplicadas as aulas por Carolina. A Profª Sônia Gabriel afirma
que a vida familiar, embora próspera, “vai encontrar desafios com o declino
econômico das fazendas de café do hoje Vale Histórico, sem alunos a contento, o
casal Mello e Souza precisou fechar as portas de seu colégio e buscar
oportunidades no Rio de Janeiro onde João de Deus teria possibilidade de
trabalho no Ministério da Justiça”. É nesse período que nasce Júlio César, na
capital da República, no dia 6 de maio de 1895. Mas lá também, as dificuldades
continuam, sendo necessário o retorno da mãe e dos filhos para Queluz, enquanto
o pai permanecia no Rio de Janeiro, visitando-os nos feriados e folgas. Com o
retorno a escola é reaberta e Carolina, conhecida como Sinhá, volta a lecionar
para as crianças de Queluz, incluindo os seus filhos. E assim Júlio César passa
a infância nessa cidade, cortada pelo Rio Paraíba do Sul.
Entre
os anos de 1906 e 1907 Júlio César permanece no Colégio Militar na capital,
tendo como colega de turma Oswaldo Aranha. Nessa fase, além dos deveres
escolares, começa a publicar um pequeno jornal, denominado ERRE, com contos,
como “O Esqueleto” e “O Medo”. Transferido para o Colégio Pedro II, concluiu os
estudos em 1911 e em 1913 ingressa no Curso de Engenharia na Escola Politécnica
da Universidade do Brasil. Em 1925 casa-se com Nair de Mello e Souza, cuja
união resultam três filhos e, conforme o Prof. Moysés, consegue, além de
desempenhar as funções de professor, solidificar “a sua carreira como escritor,
por meio de sua colaboração em diversos jornais e da publicação de seus
primeiros livros, inicialmente de ficção e, posteriormente, de Matemática”. A
carreira como professor envolveu os ensinos de História, Geografia, Física e,
principalmente, de Matemática, disciplina à qual sempre se dedicou. Mesmo
atuando como catedrático no Colégio Pedro II, Júlio César abominava a didática
da época, a qual, segundo ele mesmo, resumia-se a cansativas aulas expositivas.
Defendendo o uso de jogos nas aulas de Matemática e a instalação de
laboratórios em todas as escolas, suas ideias representavam um avanço no seu
tempo.
Paralelamente
à docência, o Prof. Júlio César buscava se aprimorar como escritor. Colaborando
com o jornal “O Imparcial”, propõe ao Diretor Leônidas Resende, a publicação de
seus contos. Ignorado pelo chefe Júlio retira seus escritos secretamente e os
entrega novamente, mas assinado como R. S. Slade, nome fictício de um autor
norte-americano, que ele teria traduzido. O editor publica então o conto “A
Vingança do Judeu”, que teve ampla aceitação, assim como outros que foram
publicados. Diante da excelente repercussão, o Prof. Júlio César resolveu criar
um “autor” estrangeiro, que escrevia contos ambientados no Oriente Médio.
Consciente do contexto editorial da época, e do fascínio que o universo árabe
exercia no Ocidente, incluindo o Brasil, Júlio César procura o diretor do
jornal mais lido então, “A Noite”, o jornalista Irineu Marinho, o qual acolheu
com interesse a proposta do professor de Queluz. Conforme a análise de Moysés
Gonçalves, a proposta de Mello e Souza era “surpreender o Brasil com uma
mistificação literária, inventando um escritor árabe que escreveria contos
orientais educativos”. Para tanto, o Prof. Mello e Souza havia “mergulhado” nos
estudos sobre a História e a Cultura dos descendentes de Ismael e, sem ter
posto os pés no Oriente Médio, Júlio César criou Malba Tahan. Ao ler os contos,
o Diretor Irineu ordenou ao Secretário Euricles de Matos, a publicação na
primeira página do jornal, incluindo uma biografia do suposto autor. O objetivo
era justamente preservar a identidade do autor verdadeiro. Assim, sob o título
de “Contos das Mil e Uma Noites”, os leitores não saberiam que Malba Tahan era
apenas um pseudônimo.
Em 1925
é lançado o primeiro livro “Contos de Malba Tahan” e, com o enorme sucesso
outros títulos vão surgindo. Em 1927 foi lançado “Céu de Allah”; em 1929 “Amor
de Beduíno” e “Lendas do Deserto”. No ano de 1931 foi lançado “Mil Histórias
Sem Fim”; em 1933 “Lendas do Céu e da Terra” e “Lendas do Oásis”; em 1935 foi
lançado “Makutb”; em 1936, “Alma do Oriente” e “A Pequenina Luz Azul”. Em 1937
publicou “Novas Lendas do Deserto”; em 1938 foi lançada a obra máxima de Malba
Tahan, “O Homem que Calculava”. Após uma temporada escrevendo contos infantis,
Malba Tahan retorna em 1943 com o livro “Lendas do Povo de Deus” e “O Livro de
Aladim”. Já em 1930, a Academia Brasileira
de Letras condecora o autor pelo livro “Céu de Allah” e, em 1939 pelo “O Homem
que Calculava”. Entre 1933 e 1939, foram publicados e reeditados
aproximadamente 15 obras de Malba Tahan e outras 29 didáticas para o ensino da
Matemática, assinados como Júlio César de Mello e Souza. Ou seja, ao mesmo
tempo em que escrevia como árabe Júlio César escrevia também como professor. Segundo
o Prof. Moysés, havia uma intenção proposital, em certo momento, dois autores:
“um que escrevia para alunos e professores e outro que divulgava uma Matemática
repleta de curiosidades e de aspectos históricos.”
Contudo,
a verdadeira identidade do escritor “árabe” foi descoberta já em 1933, pela
poetisa Rosalina Coelho Lisboa. A partir de então, o Prof. Júlio César
incorporou de vez o personagem Malba Tahan, passando a escrever publicamente
como os “dois autores”. Com o sucesso, aulas lançamentos de livros,
conferências, nas quais se apresentava trajado como árabe Malba Tahan passa a
trabalhar como Diretor na Revista Al-Karizmi em 1946, que publicava diversos
assuntos, como história, recreações matemáticas, curiosidades, etc. Como Malba Tahan, o Prof. Júlio César, estabeleceu uma
didática própria, que buscava transformar a matemática em uma disciplina
divertida. Investia em diferentes formas de ensino, fugindo do tradicional
modelo que utiliza fórmulas já determinadas. O autor colocava desafios
matemáticos nos livros, aguçando a criatividade e incentivando a descoberta. Isso
é mais perceptível ainda no livro “O Homem que Calculava”, utilizado até hoje
por muitos professores de Matemática e reeditado várias vezes. Júlio César ou
Malba Tahan atuou também como apresentador de programa nas rádios Mayrink Veiga
e Nacional, além das antigas TV Tupi e Canal 2. O site citado afirma ainda que,
devido à fama e ao sucesso de suas obras e palestras proferidas no Brasil e no
exterior, o Prof. Júlio César obteve do Presidente Getúlio Vargas em 1954, a
permissão de assinar oficialmente como Malba Tahan, através de um decreto
especial do Ministério da Justiça. Ao longo de sua vida Júlio César-Malba Tahan
produziu 69 livros de contos e 51 de Matemática, além de duas mil palestras a
ele atribuídas. Mas a sua principal obra
que o consagrou, “O Homem que Calculava”, foi traduzida para 12 idiomas, sendo
até hoje, como já mencionado a mais indicada e procurada por professores e intelectuais
diversos.
No
entanto, um fato curioso chamou nossa a atenção. Após a criação do personagem
“árabe”, os livros lançados como “Prof. Mello e Souza”, aparecem com as duas
assinaturas, sendo o “Malba Tahan” destacado, sobrepondo-se à outra assinatura.
Na realidade, o autor fictício “superara” o original, pois tornara-se mais
famoso. Já os livros assinados somente com “Malba Tahan”, não mencionam em
parte alguma o nome “Prof. Mello e Souza”. Deduzimos e constatamos que o Prof. Júlio César deixou-se incorporar de vez por Malba Tahan e o seu mundo exótico
do Oriente. Principalmente após a revelação da identidade do escritor
“estrangeiro” em 1933 e, sendo este mais famoso que seu criador, o personagem
acabou por “roubar” a cena, deixando o ser original em segundo plano. O Prof.
Moysés Gonçalves supõe que talvez para Júlio César, “inventar Malba Tahan, sua
máquina de produção, sua mistificação literária que com seus ‘contos árabes’
deleitava o público leitor de jornais, tenha sido a ‘válvula de escape’ de um
mundo sombrio, um descanso na loucura das exigências de um mundo moderno e
capitalista”. No dia 18 de junho de 1974, quando ministrava os cursos “A Arte
de Contar Histórias” e “Jogos e Recreações”, no Colégio Soares Dutra, em
Recife, o Prof. Mello e Souza sofreu um ataque cardíaco, vindo a falecer, sendo
sepultado no Rio de Janeiro, cidade em que nascera. Com a morte de Júlio César
de Mello e Souza morre também, segundo Moysés Gonçalves, Ali Iezzid Izz-Edin
Ibn Salim Hanh Malba Tahan, “um escritor árabe, descendente de uma tradicional
família muçulmana, nascido a seis de maio de 1885, na aldeia de Mazalit, nas
proximidades de Meca, trouxe em seu nome um pequeno oásis localizado na Arábia
(Malba) e um moleiro que prepara o trigo (Tahan).”
Na casa em que residira em
Queluz, hoje restaurada, funcionou durante algum tempo o Museu Malba Tahan, mas
devido ao descaso das autoridades, uma filha de Júlio César retirou todo o
acervo, levando-o para o Rio de Janeiro. Com isso a cidade de Queluz perdeu a
oportunidade de continuar preservando a memória de seu ilustre professor e
escritor “árabe”. Embora restaurada, a antiga casa de Malba Tahan quase se
perdeu e hoje é a única testemunha de que existiu um professor que ao
reinventar-se proporcionou aos seus alunos e outros que vieram uma nova forma
de aprendizado escolar. O autor deste relato chegou a visitar o Museu Malba
Tahan e lamenta o destino que o mesmo teve. Em julho de 2013, ao visitar a
cidade mineira de Cristina, em companhia do amigo de infância do Embaú e
atualmente compadre José Flávio de Ávila, fomos surpreendidos por uma
apresentação teatral em uma escola rural do Bairro Vargem Alegre. Naquela
escola, em um bairro rural de Cristina, os professores ensinam Matemática,
utilizando o livro “O Homem que Calculava”, e os alunos encenavam uma peça
sobre a vida e a obra do Prof. Júlio César-Malba Tahan, o “árabe” de Queluz.
Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
ARRUDA e PILETTI, José Jobson de Andrade e Nelson. Toda a História. Editora Ática. São
Paulo, 1995.
BARBOSA, Alexandre Marcos Lourenço (Org.). Grandes Escritores do Vale do Paraíba.
Editora O Lince. Aparecida, 2012.
RHYMER, Joseph. Os
Povos da Bíblia. Ed. Melhoramentos. São Paulo, 1990.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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