A Guerra dos Emboabas é um episódio
pouquíssimo analisado na História do Brasil, a qual merecia uma atenção mais detalhada por
parte dos historiadores. Quase contemporaneamente ao conflito, ocorrido nos
primórdios do século XVIII, um outro fato praticamente desconhecido da nossa
historiografia, salvo algumas raras exceções, ocorreu na então Capitania de São Paulo e
Minas do Ouro, envolvendo as cidades de Jacareí, no Vale do Paraíba; Santos e
Itanhaém, no litoral e Salvador, então capital da colônia. O episódio referido
ficou conhecido como “revolta do sal” e foi motivada pelas necessidades básicas
dos colonos contra os abusos e desmandos dos contratadores que praticavam tais
atos, utilizando sempre como argumento que o faziam em nome do rei. Passemos,
então para uma análise para tentarmos compreender o fato e seus desdobramentos
políticos e econômicos.
Durante o período colonial, Portugal
implantou no Brasil um sistema econômico em que a colônia só podia
comercializar com a metrópole. Conhecido como Monopólio Colonial, tal sistema
consistia em adquirir da colônia mercadoria a baixíssimo preço imposto pela
metrópole. Em contrapartida, a colônia era obrigada a adquirir produtos portugueses
a preços elevadíssimos. Apesar da enorme discrepância, alguns autores denominam
essa fase de “Pacto Colonial”, onde a vantagem maior, obviamente ficava com
Portugal, causando descontentamento e motivos de revolta entre a população da
colônia lusitana. Como atividades econômicas monopolizadas pela metrópole
podemos citar a extração do pau-brasil, a cana-de-açúcar, a extração de ouro e
diamantes; esta muito mais controlada com a criação do Distrito Diamantino, e o
comércio do sal, entre outras. Para cada setor econômico em que se aplicava o
monopólio, a Coroa estabelecia contratos de administração a individuais, os
quais eram conhecidos como contratadores e deviam prestar contas da atividade
econômica às autoridades lusas. Como mencionamos anteriormente, muito desses
contratadores cometiam abusos, explorando a miséria da população, em nome do
rei, cobrando preços e impostos extorsivos. Geralmente, a Coroa “fechava” os
olhos para esses abusos, desde que o Erário Real não fosse lesado ou causasse
convulsões sociais. Em casos extremos, os contratadores não só perdiam o cargo,
como poderiam ser presos, processados e ter os bens confiscados, como ocorreu
com João Fernandes de Oliveira, contratador dos diamantes, Senhor do Arraial do
Tijuco (Diamantina). Envolvido com Xica da Silva e fraudando os cofres reais em
prol da ex-escrava, João Fernandes foi removido do cargo por ordem expressa de
Sebastião José de Carvalho e Melo o poderoso Marquês de Pombal, ministro do Rei
Dom José I.
Entretanto, de todos os produtos monopolizados
e vendidos a preços altamente inflacionados, o sal era o que a população e
animais, como o gado bovino, mais necessitavam. O historiador Cláudio Bertolli
Filho ao analisar a miséria e condições de saúde dos paulistas no século XVIII,
afirma que a ausência do cloreto de sódio na alimentação dos colonos causava
uma série de distúrbios fisiológicos. Ora, sabemos que o sal de cozinha atua na
elaboração de ácidos que compõem o suco gástrico no organismo, além de regular
a função osmótica das células e do sangue. A falta de tal elemento causa
fadiga, náuseas e câimbras musculares. Como afirmamos, o sal é imprescindível
para a alimentação do gado, mais precisamente, os bovinos que sentem mais ainda
a falta do elemento. É por isso que nas fazendas pecuaristas existem vários
cochos de sal para o gado lamber periodicamente, suprindo suas necessidades Por
outro lado, os índios que não conheciam o sal, extraíam o cloreto de sódio
mediante a incineração de determinados vegetais halóficos, por sua vez raros na
Capitania e desconhecidos dos colonos.
Entrementes, o sal que
inicialmente era extraído nas margens do Rio São Francisco e do litoral do
Maranhão ao Rio de Janeiro, teve sua atividade proibida para não concorrer com
a indústria salineira da metrópole. A Coroa reservava a si a tarefa de fornecer
sal para a colônia pelo preço por ela taxado. Para a Capitania de São Paulo, o
sal enviado ficava armazenado em um galpão régio na Vila de Santos para daí
abastecer as vilas do litoral, planalto e serra acima, região que compreendia o
Vale do Paraíba. Dependiam do sal estocado em Santos, as Vilas de Jacareí,
Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá, geralmente dispondo de parcos
recursos para a aquisição da preciosa substância. Para termos uma ideia do que
ocorria na Capitania naquela época, lembremos que a Coroa havia taxado o sal em
480 réis o alqueire (antiga medida equivalente a 13, 8 litros), mais 200 réis
de imposto para a Real Fazenda. Em 1710, a Vila de Santos havia sido
transformada por Portugal numa praça forte, dispondo de quatro companhias de infantaria
paga. Governava, então, a praça forte de Santos o mestre de campo José Monteiro
de Matos e para sustentar a tropa, o governo luso elevou o preço do alqueire do
sal pra 1$280, na mão de contratadores reinóis, além de dobrar o valor do
imposto da Real Fazenda. Ora, para os habitantes do planalto e a região do Vale
do Paraíba, os contratadores cobravam a exorbitante quantia de 20$000, causando
miséria e a carestia do produto até mesmo para os fazendeiros mais abastados
que viam o gado padecer lentamente até a morte. O pesquisador e industrial
Roberto Cochrane Simonsen, em obra conceituadíssima, afirma que na região
aurífera o preço do sal, devido à escassez, podia chegar até 500$000. Mas para
o Vale do Paraíba, o preço cobrado pelos contratadores de Santos já era mais do
que insuportável. No mesmo ano de 1710, o bandeirante Bartolomeu Fernandes de
Faria, riquíssimo fazendeiro de Jacareí e possuidor de vastas propriedades em
Mogi das Cruzes e Itanhaém decidiu buscar pessoalmente o sal em Santos. Mesmo
tendo acumulado imensa fortuna na região das minas, o preço cobrado pelo sal
minava as finanças do fazendeiro e de outros potentados da região. Comandando
um pequeno exército de aproximadamente 300 valeparaibanos, Bartolomeu parte de
Jacareí e assalta a praça forte de Santos, obrigando os contratadores e o
Provedor da Real Fazenda a vender o sal pelo preço taxado, além de cobrar o
imposto devido, diante da população boquiaberta. Apesar de pagar pelo produto,
as autoridades coloniais consideraram uma afronta a atitude do bando de
Bartolomeu, que passou a ser perseguido pela infantaria aquartelada em Santos.
Abarrotado de sal, o grupo destruiu pontes e bloqueou trilhas para retardar o
avanço dos soldados e após galgar a Serra do Paranapiacaba atinge o Vale do
Paraíba, chegando a Jacareí, que durante anos repeliu ataques das autoridades,
transformando-se num baluarte inexpugnável.
Todavia, aprisionar o líder da
“revolta do sal”, tornou-se ponto de honra para as autoridades. Em carta datada
de 4 de novembro de 1710, o Desembargador Sindicante Antônio da Cunha Sotto Mayor relata a proeza do régulo de
Jacareí. Na carta régia de 8 de abril de 1712, o rei ordena a prisão do líder
do motim. Em outra carta régia, de 17 de novembro de 1713, D. João V, ordena ao
Desembargador André Leitão de Melo a prisão de Faria, sem sucesso. Em 6 de
agosto de 1718, o governador da praça de Santos informa Sua Majestade que
conseguiu prender o régulo de Jacareí e quatro de seus companheiros na Vila de
Itanhaém, onde Bartolomeu estava em companhia de familiares. Preso o líder da
revolta, foi ele logo remetido para Salvador, onde morreu pouco depois, devido
à idade avançada, doenças e maus tratos na prisão. Em um romance publicado em
1948, Afonso Schmidt retrata o episódio do sal, enaltecendo a figura de Bartolomeu Fernandes de Faria,
como bravo bandeirante e justiceiro popular. Segundo o romancista, o nome de
Faria “foi repetido de boca em boca por toda a Capitania de São Paulo e Minas,
sempre com agrado e simpatia”. A repressão e a consequente prisão do régulo de
Jacareí, embora tardias, motivou os valeparaibanos a encontrarem novas formas
de adquirirem o tão precioso e necessitado produto. A alternativa encontrada
foi se abastecerem no Rio de Janeiro, onde o sal era distribuído sob a
supervisão de representantes do governo luso, numa tentativa de coibir novas
fraudes.
A carência do sal motivou outros
levantes, como o motim do Maneta em 1711 na Bahia, quase simultaneamente com o
ataque a Santos. Pelos mesmos motivos,
descritos anteriormente e a elevação de impostos, a população de Salvador,
juntamente com soldados e marinheiros depredaram casas de portugueses e saquearam
estabelecimentos comerciais, liderados por João Figueiredo Costa, conhecido
como o “Maneta”. Outras regiões como o Pará e o Maranhão, também sofreram com a
falta de sal. Durante todo o século XVIII, a colônia sofreu com a ausência do
produto e os constantes abusos dos contratadores, apesar de algumas tentativas
oficiais de regulamentar a distribuição. Em 1725, D. Rodrigo César de Menezes,
Governador da Capitania de São Paulo reclama contra os contratadores sobre a má
execução dos contratos do sal. Em 1734, o próprio juiz-de-fora em Santos determinou a alguns oficiais de justiça que se
abrisse os depósitos e vendesse sal para a população pelo preço legal.
Curiosamente, dessa vez, a Coroa não reprovou a atitude, como fizera anos antes
com Bartolomeu Fernandes Faria. Para por fim aos desmandos foi proposto que a
Câmara de São Paulo, adquirisse o estoque de sal e o revendesse, para
fiscalizar a distribuição e fiscalização dos contatos do sal. Aos poucos, a
Coroa vai cedendo e autoriza algumas capitanias, como a de Pernambuco e Rio Grande a extrair e
distribuir sal em suas áreas, flexibilizando dessa forma o monopólio real.
Somente com os alvarás régios de 24 de abril de 1801, 7 e 27 de abril de 1802 e
30 de setembro de 1803, o governo
português abole, definitivamente o
monopólio do sal, porque a Coroa considerou-o como vexatório e cruel e, por
configurar como artigo de primeira necessidade. A autoridade lusa levou mais de
150 anos para chegar a tal conclusão. De acordo com Roberto Simonsen, a longa
duração do monopólio e as crises e conflitos
advindos “refletem vários aspectos da evolução econômica da Colônia”. Como
dissemos no início deste artigo, a “revolta do sal”, ou melhor, a carestia do
sal na História do Brasil é rarissimamente estudada e, muitos de nós,
desconhecendo os acontecimentos, nem imaginamos quantos sofrimentos nossos
antepassados passaram pela falta do sal. Hoje, é um artigo comercial,
facilmente encontrado e, apesar de períodos de inflação, seu preço nem se
compara com o de épocas remotas. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para
consulta.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Documentos manuscritos avulsos da
Capitania
de São Paulo. Catálogo 2. Imprensa Oficial/EDUSC/FAPESP.
São
Paulo, 1995.
BERTOLLI FILHO, Cláudio. Vale do Paraíba: Saúde e Sociedade.
UNIVAP.
São José dos Campos, 1999.
SCHMIDT, Afonso. O Assalto. Clube do Livro. São Paulo, 1948.
SIMONSEN, Roberto Cochrane. História Econômica do Brasil. Coleção
Brasliana, Vol. 10. Cia. Editora Nacional.
São Paulo, 1978.
LENCIONI, Célio. Jacareí: Viajantes e Cronistas. Editora Santuário. Aparecida,
1991.
RODRIGUES, José Wasth. Tropas Paulistas de Outrora. Coleção
Paulística,
Vol. X. Governo do Estado de São Paulo.
São Paulo, 1978.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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