terça-feira, 1 de agosto de 2023

O Preço da Liberdade.


                      Feitor açoitando cativo em alguma fazenda, em tela de Jean-Baptiste Debret.

                                              FONTE: www.aventurasnahistoria.com


      Bem sabemos que durante mais de três séculos, o Brasil, desde o domínio português, dependeu economicamente da mão-de-obra escrava de origem africana. Após a independência em 1822, a estrutura escravista foi mantida com todos os seus abusos e contradições por parte dos senhores e autoridades imperiais. O escravizado era nada mais que um capital investido que deveria render para seu senhor lucros cada vez mais altos e que a única diferença com os animais é que “conseguia falar”. Assim sendo, o direito do proprietário era inquestionável, estando o cativo a mercê de seu “dono” que o explorava e o castigava quando bem julgasse. Há inclusive relatos de inúmeras torturas e mutilações sofridas pelos cativos que para se livrarem de tais tormentos haviam duas alternativas: a fuga ou o suicídio. Quando optava pela primeira e era recapturado, na maioria das vezes após o castigo no tronco, era marcado a ferro com letra “F”, de “Fujão”, ou lhe aplicavam a gargalheira e demais artefatos que facilitasse a recaptura. Quando, no entanto, tentava por fim à vida e era mal sucedido corria o risco de ser processado pelo Estado, pois estaria atentando contra a propriedade de seu amo. Com a Lei Eusébio de Queirós de 1850, que proibiu o tráfico negreiro sob a imposição da Inglaterra, a situação só piorou para os cativos.

                  Todavia, quando o Senhor estava à beira da morte e temendo que sua alma fosse para o inferno, concedia-se a liberdade para alguns (ou às vezes todos) de seus escravos, através da carta de Alforria. Ocorria também, o fato de o escravo obter a alforria por lealdade e bons serviço (quando escravo doméstico, dentro da casa-grande) ou, muito raramente, através da bondade do proprietário. Entretanto, o Império, através da Lei nº. 2040 de 20 de setembro de 1870 instituiu outra forma para o escravizado alcançar sua liberdade, além da alforria. Tratando em assegurar os direitos dos escravistas, o Governo Imperial criou a indenização arbitrada no valor 600$000 (seiscentos mil réis) que o escravizado deveria amealhar para comprar a própria liberdade. Constituía-se assim um pecúlio que o cativo, através de doações, ganhos extras com trabalho nos poucos momentos de folga e, até mesmo da prostituição no caso das mulheres, utilizava para livrar-se do cativeiro. Só não era permitido, quando oriundo de furto ou roubo. Apesar do valor altíssimo para o escravizado, o governo dava as garantias, mas mesmo assim, por diversos motivos, alguns senhores recusavam-se a conceder a liberdade para aqueles que conseguissem completar a soma exigida. Temos um exemplo de tal procedimento, ocorrido em 1873, no então recém-criado Município de Cruzeiro, ou seja, no Embaú.

                  A Fazenda Boa Vista, integrava a referida Vila, quando esta se emancipou de Lorena; seu primeiro dono foi Antônio Dias Telles de Castro, casado com Fortunata Joaquina do Nascimento que, após enviuvar contrai novo matrimônio com Manoel de Freitas Novaes. Uma das escravas da Fazenda Boa Vista, de nome Rita teve um filho liberto cujo nome era Elizeo Telles de Castro, que, considerando a condição do jovem liberto, seria filho de Antônio Dias Telles de Castro com a referida escravizada. Como Fortunata, como já dissemos, contraiu núpcias com Manoel de Freitas Novaes, ambos passaram a ser proprietários da cativa, após a morte de Antônio. Mas em 1873, Elizeo, com o valor exigido pela lei de indenização, apresenta-se ao já nomeado Major Novaes e pede a liberdade de sua mãe, então com 40 anos de idade. Com a negativa de Major, Elizeo doa à mãe o valor necessário para ela mesma comprar sua liberdade, sem sucesso. Alegando possuir direitos intocáveis, além de não só cumprir o que a lei determinava, o referido Major Novaes passa a manter a cativa Rita acorrentada e sem alimentação, segundo a análise de Carlos Borromeu de Andrade.

                 Consequentemente, Elizeo Telles de Castro, devido a intransigência do Major Novaes, e auxiliado pelo advogado Manoel Thomaz Pinto Pacca, dá entrada na Ação de Liberdade no dia 02 de agosto de 1873, no cartório de João de Oliveira Évora, em Lorena. Ainda assim, o proprietário da Fazenda Boa Vista não cede e de acordo com o processo judicial, além de recusar qualquer tipo de acordo, passa a armar capangas para se “defender”. Porém, o referido processo é rápido e após alguns protestos e alegação da parte do réu, além da ameaça de invasão e ocupação da fazenda pela Milícia Provincial, para resgatar Rita, o Major Novaes somente recua por dois motivos. Logo após receber a patente de Major da Guarda Nacional, Manoel de Freitas Novaes, além de concorrer ao cargo de vereador para a Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro, almejava também o titulo de Barão. Embora aconselhado por amigos e correligionários, demorou em perceber que sua imagem fora seriamente abalada pelo episódio, o que pode ter prejudicado a candidatura, pois não foi eleito. Coincidência ou não, o Império não lhe concedeu o titulo apesar da devoção do Major para com a monarquia. Entretanto, depois de nomeado como depositário da escrava Rita, o Sr. Joaquim Pinto Roza em 11 de agosto de 1873, o processo chega ao fim com sentença favorável para a cativa e seu filho Elizeo, no dia 27 de agosto de 1873. Analisemos na íntegra a referida da sentença: “julgo por sentença livre a liberdade da preta Rita, e mando incontinente se lhe passe a respectiva carta de Alforria, de conformidade com o disposto no parágrafo 2º. etc, etc., Ressalvo ao seu Senhor o direito de requerer em juízo competente o levantamento da quantia, porque foi a mesma depositada na collectoria de  rendas desta cidade de Lorena”. Infelizmente, não foi possível identificar o nome do Juiz que proferiu tal sentença, mas podemos notar que o mesmo garante, apesar de tudo, os direitos indenizatórios ao Major Novaes. A libertação total dos escravizados viria, afinal, em 1888 com a Lei Áurea. 

                                                                                    Eddy Carlos.      

 

 

Dicas para consulta. 

ANDRADE, Carlos Barromeu de. Os Pioneiros da História de Cruzeiro. Cadernos Culturais do Vale do Paraíba. CERED, São José dos Campos, 1994. 

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão do Brasil Meridional. DIFEL. São Paulo, 1962. 

COMARCA de Lorena. Ação de Liberdade da Escrava Rita. Lorena, 1873. Acervo do Museu Histórico e Pedagógico Major Novaes. Cruzeiro-SP.   

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. Coleção Ensaios. Ática. São Paulo, 1992. 

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982. 

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. O Mandonismo Político em Cruzeiro. Atuação Política do Major Novaes (1873-1898). Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil Republicano pela UNITAU. Taubaté, 2004.


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