domingo, 5 de novembro de 2023

A Querela da Água.




 O solar de Francisco de Godoy Fleming em 2002; fotografia de autoria de Eddy Carlos.

                Temos visto e acompanhado pelos meios de comunicação a falta de água histórica, que se abateu na região do Amazonas, com o Rio Negro, por exemplo, tendo abaixado seu nível em 13 metros. O cenário tende a se tornar igual ao do Nordeste, no chamado “polígono das secas”, em claro processo de desertificação, ambos causados pela ação antrópica. Entre 2014 e 2015 foi a região Sudeste que havia passado pela chamada crise hídrica. Devido a diversos fatores como desperdícios, alta no consumo e às chuvas escassas daquela época, os níveis dos reservatórios foram baixando cada vez mais, o que aumentou a possibilidade de um racionamento de água ocorrer, principalmente na cidade de São Paulo. Tal não ocorreu, mas os órgãos “competentes” chegaram a lançar mão de recursos como a utilização do “volume morto” de um grande reservatório. Houve ainda a intenção de transposição das águas do Rio Paraíba do Sul, para atender a imensa metrópole, ideia rechaçada de imediato pelos governos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A partir de 2016, no entanto, com novas e fortes chuvas, a situação no Sudeste teve uma melhora significativa. Mas o caso do Amazonas, citado no início do presente artigo é ainda mais preocupante, pois trata-se de um rio que é um dos principais afluentes do Rio Amazonas, e não de um mero reservatório.

                A questão é delicada, pois sabemos que a água é a maior riqueza de que dispõe a humanidade. Apesar de o planeta Terra ser composto de ¾ de água, a imensa parcela desse total é de água salgada. E é justamente a ínfima parcela de água doce e potável que está se escasseando. a pequena oferta ou a falta de água, acaba sendo motivo de disputas políticas que, não raro, chega a causar conflitos armados. Na África, na região do Saara, a água possui mais valor do que ouro e pedras preciosas. Caravanas de beduínos, camelos e dromedários, percorrem om imenso deserto, desde o oeste do Egito até o Marrocos, tendo o cuidado de não desperdiçar o precioso líquido. Outras regiões desérticas, desprovidas de água, são os desertos, do Arizona nos EUA, de Góbi, na China, além dos da Austrália e do Oriente Médio. E, justamente, nessa região, em 1952, o governo de Israel decidiu utilizar as águas do Rio Jordão, seviando seu curso, para a irrigação de suas lavouras, provocando atritos com os árabes, aumentando a tensão existente  desde 1948. Com a vitória na Guerra dos Seis Dias, Israel ocupa as colinas de Golán, território sírio. Nestas, se destaca o Monte Hermon, onde está localizada a nascente do mesmo Jordão.

                Apesar de termos citado o Brasil, no início deste relato, situado em uma região tropical, sempre houve abundância de água no território. Além do Amazonas, rios bastante volumosos, como o São Francisco, Tocantins, Araguaia, Madeira, Paraná, Guaíba e o próprio Paraíba do Sul, garantiram a sobrevivência e o sustento de inúmeras comunidades e, também, para as rotas comerciais. Por isso, desconhecemos, pelo menos até então, conflitos armados envolvendo posse e controle de rios e lagos. Isso não quer dizer que não tenha havido atritos; pequenas disputas entre particulares são comuns e, em alguns casos, quando são solucionados pacificamente, a “lei do mais forte” prevalece, ou são resolvidos na esfera jurídica. Há quase vinte anos, por volta de 2004, quando o autor destas linhas realizava pesquisas para um determinado estudo, tivemos acesso a um livreto, publicado em 1922, referente  a uma disputa judicial pelo uso das águas de um córrego no Embaú, então Distrito do Município de Cruzeiro (SP). O referido processo leva o nome de “Acção Negatória (Servidão de tomada d’água)” e tramitou na Comarca de Cachoeira (hoje Cachoeira Paulista), visto que, juridicamente, Cruzeiro estava subordinado à mesma. O cenário da “briga” estava composto do citado córrego, denominado ”Rio Branco”, e as terras que outrora faziam parte da Fazenda Rio Branco, então propriedade do Major Chrispim Bastos. Os autores do mencionado processo foram Francisco de Godoy Fleming e sua esposa, Minervina de Castro Fleming. Os réus foram José Lombardi e sua esposa, cujo nome não é citado. Mas antes de prosseguirmos, analisemos detalhadamente o ambiente dessa disputa.

                A região do Embaú é servida, de dois córregos, pequenos fluxos e vertentes de água, além do próprio Rio Embaú, que desde 1934 divide os municípios de Cruzeiro e Cachoeira Paulista. Erroneamente chamado de “Rio Piquete”, o mencionado rio se forma, na verdade, na junção dos ribeirões Piquete e Jaracatiá. Com o nome de Rio Embaú se junta ao Rio Passa-Vinte, no ponto em que é “barrado”, seguindo seu curso daí em diante até a foz no Rio Paraíba. Os dois principais córregos do Embaú são o já citado, Rio Branco e o Juqueta. Este possui um curso pequeno, tendo sua nascente no morro do mesmo nome, onde atualmente está instalada uma subestação das Furnas, atravessando os antigos terrenos da Fazenda Godoy, e fazendo a sua junção com o primeiro nas dependências do Recanto da Glória, de propriedade dos familiares do autor deste relato. O Rio Branco, por sua vez, é bem mais extenso, tendo sua nascente no Município de Lorena. Atravessando áreas de várzeas entre esta cidade e Cachoeira Paulista, o Rio Branco “passa” próximo antiga sede da fazenda do mesmo nome (hoje demolida) e da antiga casa-sede de Francisco de Godoy Fleming (esta reformada). Em seguida, acompanha o espaço urbano do Embaú para entrar novamente em zona de várzea e, após se unir ao “Juqueta”, desemboca no Rio Embaú, cerca de um quilômetro adiante. A despeito da presença de uma estação de tratamento de esgotos no bairro, as águas do Rio Branco estão poluídas, lamentavelmente.  

                A sede da Fazenda Rio Branco estava situada a, aproximadamente, seis quilômetros do centro do Embaú (antigo Largo). Desconhecemos o ano de sua construção, mas sabemos que datava do século XIX, no período em que o Embaú era sede de município. Seu primeiro proprietário, como já mencionado, foi o Major Chrispim Bastos, líder político local e um dos primeiros dirigentes do atual Município de Cruzeiro. O solar de Francisco de Godoy Fleming também características do século XIX e pode ser observada a partir da Rodovia Christiano Alves da Rosa, que liga Cachoeira a Piquete. Assim como o cunhado Chrispim, Francisco também teve atuação política no Embaú, nos tempos da monarquia e nos primórdios da fase republicana. No início da década de 1920, Francisco ainda tinha influência no então Distrito do Embaú e foi nesse período que se envolveu na disputa judicial, cujo desfecho “arranhou” seu prestígio.

                Por volta de 1893, Jordão Pinto de Castilho vendeu a Francisco José Gomes Serapião, conhecido pela alcunha de “Velho Crispim”, uma área rural, denominada de “Chácara do Embahú”. Logo em seguida, o novo proprietário instalou uma bomba hidráulica, conhecida como “carneiro”, em um tanque construído para captar água, provavelmente, de uma mina. Essa instalação foi necessária para bombear água para a casa em questão, utilizando-se ainda um sistema de encanamento para o fluxo. De acordo com o advogado dos réus, Dr. Manoel Ferraz de Camargo Júnior, ao instalar o sistema hidráulico, Francisco Serapíão (Velho Crispim) estabeleceu a serventia, que não mais se extinguiria, uma vez que a bomba funcionou plenamente durante todo o tempo de vida do proprietário. Havia ainda um engenho com construções rústicas, próximo da bomba, para uso da família de Francisco Serapião, que falece no dia 22 de setembro de 1915. Com a morte do proprietário a Chácara do Embahu foi dividida, cabendo à viúva, Firmina Rosa Serapião, o terreno que continha a casa-sede, que passa a ter a companhia do filho, Joaquim Serapião. Já a parte que continha o engenho coube á herdeira Cândida Bastos, conhecida no Embaú como “Candola” (ou “Nhá Candola”), casada, por sua vez, com o Major Chrispim Bastos. Como já eram proprietários da Fazenda Rio Branco, o Chrispim e Candola vendem, em meados de 1917, o terreno do engenho para Francisco de Godoy Fleming e a esposa Minervina de Castro.  

                No dia 03 de maio de 1919, Firmina Rosa Serapíão vende o terreno da Chácara do Embahú, contendo a antiga casa-sede e todas as benfeitorias, incluindo a velha bomba hidráulica, para o Corintho Chrispim de Souza. Este permanece por pouco tempo como proprietário da referida chácara e faz uma permuta, entregando o imóvel como recebera, com o Capitão Avelino Bastos. Em tese, a antiga propriedade do Velho Serapião, ainda que dividida, ficaria por breve tempo em mãos de uma mesma família, pois Chrispim Bastos e Avelino Bastos eram irmãos de Minervina de Castro Fleming. Avelino residia na parte urbana do Embaú e tinha consciência da antiga servidão. Conforme o Dr. Camargo, ele “não mexeu na installação e encanamentos que levavam água a essa propriedade; no entretanto, como precisasse d’água em sua casa da Villa do Embahú, assentou uma outra bomba próximo do local da antiga e collocou outro encanamento para conduzir agua á sua residência da Villa”. As novas instalações foram provisórias e não sofreram oposição de ninguém; não interferindo nas antigas que haviam estabelecido a serventia. mais tarde, segundo os autos do processo, a nova bomba foi removida por Manoel bastos, filho de Avelino, que seguiu determinação do pai; mantendo intactas as antigas instalações.

                Em 19 de março de 1921, Avelino Bastos vende a Chácara, com todas as benfeitorias, para José Lombardi. Este deixou um filho residindo no local e reinstalou a bomba para impulsionar água. As únicas alterações realizadas foram a substituição de um cano enferrujado e uma estrutura de alvenaria, de pequeno porte, no exato local do antigo tanque, construído pelo Velho Serapião, quase trinta anos antes. Após um mês de funcionamento, segundo os autos do processo, Francisco de Godoy e Minervina tentam impedir José Lombardi de usufruir da serventia. Inicialmente, Francisco de Godoy envia ao vizinho “a absurda e deshumana proposta, (...), em a qual queria que Lombardi só tivesse agua em horas em que elle Autor entendesse, ou então ficasse Lombardi obrigado a usar agua polluida do córrego denominado Rio Branco, cujas aguas recebem os exgottos da fazenda, que lhe fica à montante, inclusive o despejo do watter closet dessa mesma fazenda”. Diante da recusa de tal proposta, Francisco de Godoy entra com o processo da Acção Negatória contra a família de José Lombardi.

                Entretanto, logo no início do processo, os autores começam a se complicar por falta de provas, depoimentos controversos e pela perícia realizada no local. Conforme a descrição do advogado de defesa, Francisco e Minervina, acusam José Lombardi de ter arrancado a bomba, antes de ter comprado a propriedade, reinstalando-a depois. Outro fato que foi destacado é que, na época do Velho Serapião, o terreno da Chácara era dividido pela antiga estrada que ligava o Embaú a Lorena (antigo caminho do Rio Branco). Diante disso, Francisco de Godoy alega que a captação de água feita por Lombardi era ilegal e que o mesmo estaria violando o seu domínio. Como no período a propriedade havia sido partilhada, os autores alegavam também, que não haviam dois prédios, como argumentara a defesa. Deixemos que o próprio Dr. Camargo afirme na sua tese o que estava ocorrendo. Para ele, com “a sua conhecida habilidade, diz o advogado dos autores, e com teimosia: ‘que ao tempo do Velho Serapião não existiam dois predios; e sim um único’ (...) affirmamos a existencia de dois predios porque entendemos que predio se chama ao sólo, terreno ou herdade; ora o terreno onde está o engenho de canna pertence hoje aos Autores, e que fica abaixo da Estrada, que do Embahú vae á Lorena; (...) o da Chacara, que fica situado, do lado de cima da estrada, (...) era (...) inteiramente separado, do de baixo”. Além do mais, mesmo estando registrado em uma só escritura, os terrenos eram, ambos, cercados com arame farpado na época do Velho Serapião. Por isso, segundo a defesa constituíam “dois prédios”. A defesa vai além, ao afirmar que, quer “fôsse um predio, quer fossem dois, a servidão se constitue da mesma maneira; e si o ex adverso insiste em sustentar o contrario, é porque lhe convem confundir serventia com servidão”. No decorrer do processo, conforme a tese da defesa, tanto Francisco de Godoy como seu advogado, se atrapalham diante de testemunhas e laudos de perícia. Diante do juiz, o acusador acaba admitindo que teria se confundido quanto a José Lombardi. Francisco de Godoy reconhece que a bomba havia, de fato, sido instalada por Francisco José Gomes Serapião, e que a mesma funcionou levando água para a Chácara, durante e após o período de vida do antigo dono.

                Sendo assim, diante de tal confissão, a defesa, representada pelo Dr. Camargo, que já havia afirmado que os autores do processo procederam de tal forma “por maldade ou por inveja se lembraram de lhe negar direito a agua”, não necessita de mais provas. Mesmo que se tratasse de pouca reserva hídrica, os acusadores ainda que explicassem não poderiam negar a servidão. Uma das conclusões periciais afirma que “a agua que corre pelo rêgo mestre não é muito abundante, sendo sufficiente para os gastos do engenho dos Autores porque o bicame, que é muito antigo fica completamente cheio”. Essa pouca abundância ocorria no período de estiagem e já era suficiente, sendo de grandes proporções nas cheias. Dessa forma, a defesa encerra a sua tese reafirmando a inocência de José Lombardi e sua esposa, os quais foram vítimas de “um capricho e da raiva incontida dos Autores contra o Réu”. O Dr. Camargo afirma ainda que o advogado dos acusadores, ao iniciar o processo, “errou na diagnose, a acção dever-se-ia denominar ‘vingatoria’ e não negatoria”.

                 Enfim, transcorrido o prazo legal, o Juiz de Direito emite a sentença favorável aos réus. Vale a pena citar um trecho da mesma, redigida por João Vieira de Barros Júnior, escrivão do 1º Ofício da Comarca de Cachoeira. “Finalmente os Réos provaram perfeitamente a sua defeza, provaram evidentemente a sua servidão. Os Autores não provaram o seu pedido, não provaram a sua intenção. Pelo exposto e pelo mais que destes autos consta. Julgo improcedente a presente acção e comdemno os autores a respeitarem a servidão referida de tomada d’agua, do predio dos réos sobre o predio dos mesmos autores, a indemnizarem os réos a não mais perturbarem os réos, no exercício da servidão, e apagarem as custas. (...). Cachoeira, 15 de Maio de 1922”. O episódio que acabamos de narrar deveria servir de exemplo àqueles que não respeitam o Direito alheio. Mas, há alguns que esquecem as lições da História. Quase 80 anos depois, descendentes distantes de Francisco de Godoy Fleming, por parte de um irmão deste, também moveram um processo judicial contra seus vizinhos. Os motivos eram outros, mas o desfecho foi o mesmo que foi impingido aos autores da Acção Negatória.    

 

 

Referências.

COMARCA de Cachoeira. Acção Negatoria (Servidão de tomada d’agua). Cachoeira Paulista, 1922. 

RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971. 

RODRIGUES, Antônio da Gama. Gens Lorenesis. In: Revista Genealógica Brasileira. s/d. 

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo. Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015. 

TOTA e BASTOS, Antônio Pedro e Pedro Ivo de Assis. História Geral. Nova Cultural. São Paulo, 1994.


 


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