quinta-feira, 2 de julho de 2020

Onde se Fazem Anzóis.

                                                  A Vila de Pindamonhangaba em 1827.
                             FONTE: tela de Jean-Baptiste Debret. Viagem Pitoresca ao Brasil.

               Em artigos anteriores, mencionamos que a política de expansão colonial lusitana nos trópicos causou a escravidão e o consequente extermínio de diversas nações indígenas, as quais opunham feroz resistência contra os invasores europeus. A determinação em livrar Pindorama dos portugueses proporcionou até mesmo a aliança de alguns autóctones com os franceses que não reconheciam o direito garantido à Portugal e Espanha de dividir o “novo mundo” pelo Tratado de Tordesilhas. Tal aliança se materializou durante a Confederação dos Tamoios que por pouco não causou a expulsão dos lusos. Outra forma de domínio foi a catequização dos silvícolas nas reduções jesuíticas, tornando-os presas fáceis para o bandeirismo de preagem. Seguindo o curso dos rios, os habitantes do planalto de Piratininga realizavam incursões pela selva no encalço dos indígenas causando morte, destruição e fazendo inúmeros cativos para as plantações da nascente colônia do Ultramar. Também citamos em diversas ocasiões que os bandeirantes, ao seguir o curso do Rio Paraíba do Sul, guerreavam, aprisionavam e matavam os índios Puris, empurrando-os para as encostas da Serra da Mantiqueira para “limpar” o terreno e estabelecer diversas povoações ao longo do referido rio. Dessa forma surgem povoados que se tornariam as atuais cidades de Taubaté (1645), Guaratinguetá (1651), Jacareí (1653), entre outras. Após a elevação de Guaratinguetá à condição de Vila, estabelece-se entre esta e a Vila de Taubaté um arraial, cujas origens são ainda, até hoje, debatidas no meio acadêmico. Para os autores Enio Squeff e Helder Perri Ferreira, tal povoado, que mais tarde daria origem à atual cidade de Pindamonhangaba surgiu em 1643, em torno de uma capela construída pelo padre João de Faria Fialho sob a invocação de Nossa Senhora do Bom Sucesso, e em terras do norte de Taubaté. Uma segunda capela teria sido construída em outro local com o nome de São José de Pindamonhangaba. As informações, porém, causam dúvidas, pois Taubaté só seria elevada à Vila em 1645, conforme já citamos anteriormente. Já Nice Lecocq Müller ao analisar a Comissão Central de Estatística, cita como marco inicial de Pindamonhangaba o ano de 1690, também defendido por Eugênio Egas, não descartando, no entanto, a hipótese da existência de um pequeno arraial entre 1640 e 1665. O que é aceito como a data oficial é a própria capela de São José, iniciada no dia 12 de agosto de 1672 em terras que Antônio Bicudo Leme e Braz Esteves Leme adquiriram da Condessa de Vimieiro. Ainda, segundo a explicação oficial, defendida por Squeff e Ferreira, no local abundava um tipo de palmeira, cujo espinho era utilizado para fabricar pindás, o que na língua tupi significa anzol. Daí a junção de pindá (anzol) com monhang (fazer) e aba (lugar), formando o topônimo “pindá monhangaba”.
                Entretanto, o Prof. Waldomiro Benedito de Abreu contesta a versão oficial, pois “não se sabe quando se deu a construção da capela ou igreja, nem quando ocorreu o desmembramento, se posterior; tampouco se conhece o nome de seu autor ou autores, não podendo atribuir-se a Antônio Bicudo Leme, sem prova documental”. O ilustre professor considera como a primeira capela de Pindamonhangaba a que foi construída pelo Capitão Manoel da Costa Cabral, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição por volta de 1654. Porém, a provisão passada para legitimar tal capela só viria em 1663, concedida ao filho homônimo de Manoel Cabral, que havia falecido em 1659. Apesar de tudo, Waldomiro de Abreu levanta a hipótese de que, a sesmaria doada a João do Prado Martins, em 22 de julho de 1643 é a que configura com a fundação do povoado nas paragens de “pinda monhangaba”, antes da emancipação de Taubaté, conforme já citado. Recorrendo a outras fontes encontramos a afirmação de Azevedo Marques de que Pindamonhangaba foi fundada pelo Padre João de Faria Filho em fins do século XVII, além de citar também como co-fundadores Braz Esteves Leme, Antônio Bicudo Leme, Manuel da Costa Leme e outros, o que corrobora a análise de Enio Squeff e Helder Ferreira. Independentemente de quem foi o fundador e o ano exato, pois os documentos são escassos, o povoado torna-se bairro da Vila de Taubaté e a sua obscura origem é aceita pela maioria dos pesquisadores como Patrimônio Religioso no crepúsculo do século XVII. Como bairro taubateano, o povoado ostentava o nome de Nossa Senhora do Bom Sucesso, apesar de, segundo Waldomiro de Abreu, não ter sido encontrado nenhum documento oficial que tivesse criado no local a freguesia. Ainda assim em inventários e testamentos, o local era denominado como Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso até 1705. 
               Nos primórdios do século XVIII, os habitantes do povoado iniciam uma campanha para a elevação à Vila, recebendo forte oposição da Câmara de Taubaté. Entre a Vila-mãe (Taubaté) e o bairro teria havido desníveis psicológicos, de acordo com Abreu, oriundos da lendária disputa entre os clãs paulistas dos Pires e Camargos, cujos descendentes habitavam Pindamonhangaba e Taubaté respectivamente. A disputa pela emancipação teria levado ao confronto armado por volta de 1703. Encontramos eco na análise de Azevedo Marques, quando o mesmo afirma que o povoado foi elevado “ à vila ilegalmente pelo desembargador José Saraiva de Carvalho, mas confirmada dois ou três anos depois (sic.) por provisão de 10 de julho de 1705. Isso quer dizer que os habitantes de Pindamonhangaba elevaram o povoado a condição de  Vila à revelia do poder público, o que configurava crime de lesa-majestade. Seus líderes poderiam ser reprimidos pelas autoridades do Reino e o povoado continuar sob o jugo da Vila de Taubaté. Consequentemente, a Coroa Portuguesa resolve anistiar os rebelados e manter o povoado na condição de vila, contrariando os camaristas taubateanos. Como já citado e referenciado em Azevedo Marques, através da Carta Régia de 10 de julho de 1705 é confirmada a criação da Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pindamonhangaba.
               A base econômica não só de Pindamonhangaba, mas de todo o território valeparaibano era a agricultura de subsistência (milho, feijão, fumo, cana, etc.) e a criação de porcos; quando havia excedentes, esses eram comercializados, como o caso da aguardente e fumo, além de toucinho. Mesmo com a quase despovoação do território decorrente da atividade aurífera, os habitantes restantes tiravam a sua renda da terra, graças ao trabalho escravo. Recorrendo novamente a Nice Lecocq Müller, verificamos que durante o século XVIII, especificamente no período 1767-1774, constante nos Mapas de População, a maioria dos declarantes identifica-se como lavradores, sendo 62% em Pindamonhangaba. Ainda não era chegada a fase de esplendor que o café propiciaria no Vale do Paraíba a partir de Bananal. Como não poderia ser diferente, Pindamonhangaba também foi visitada pelo botânico francês Saint-Hilaire. No seu diário, o viajante narra que no dia 25 de março de 1822, seguindo rumo a Taubaté, detém se por alguns instantes em Pindamonhangaba. Considerando-a pouco importante por ter apenas uma rua, o francês afirma que as “casas são baixas, muito pequenas, mas cobertas de telhas, bastante limpas e geralmente bem conservadas. Existem em Pindamonhangaba três igrejas muito pequenas. Entrei na principal e achei-a escura e bastante feia”. Passa também por Pindamonhangaba, quase quarenta anos mais tarde, Augusto Emilio Zaluar, dando destaque ao grande número de morféticos existentes na vila, “que em chusmas invadem a cidade aos domingos a solicitar a caridade pública, e dando o doloroso espetáculo da mais horrível miséria.” Por outro lado, os lucros auferidos pelo cultivo da rubiácea sob o látego do feitor nas costas dos escravos proporcionou o surgimento de uma nobreza “cafeeira” com seus imponentes casarões nos centros urbanos e nas propriedades rurais.  Na Vila de Pindamonhangaba existiram diversas fazendas do período do café, destacando-se: a Mombaça e Trabiju, do Barão de Pindamonhangaba; Ribeirão Grande, da Viscondessa de Paraibuna; Teteqüera, do Barão de Itapeva; Piracuama, de Francisco Inácio de Moura Marcondes; Coruputuba, de José Moreira César; Bonfim, do Barão de Taubaté; Saca Trapo, de Manoel Bicudo de Siqueira Salgado; Vaticano, de Francisco Santos, entre outras. Não podemos, porém, deixar de mencionar a Fazenda das Palmeiras, situada próxima ao Ribeirão do Pouso Frio e o Córrego da Prata, adquirida por Antônio Salgado da Silva em 1853 (Visconde da Palmeira em 1868), além do palacete do mesmo proprietário localizado no centro da cidade. 
                No ano de 1876, Pindamonhangaba possuía 14.636 habitantes, sendo 3.718 escravos e 36 eleitores de contar quatro cadeiras de instrução pública primária para meninos e meninas. Para o ano fiscal de 1869-1870, segundo Azevedo Marques, as rendas públicas foram da seguinte ordem: Municipal, 8:022$420; Provincial (equivalente a Estadual), 4:171$325, Geral (equivalente a Federal) 17:765$905. A novidade é o funcionamento da “casa de Misericórdia e um pequeno hospital para morféticos”. Nessa época era grande a expectativa em Pindamonhangaba pela chegada da ferrovia que viria dinamizar o meio de transporte de carga e de passageiros. Para a produção cafeeira, embora já decadente devido ao desgaste do solo, significou um escoamento rápido das sacas para os portos de embarque para os mercados consumidores, europeu e norte-americano. Os trilhos da Estrada de Ferro São Paulo-Rio de Janeiro chegam a Pindamonhangaba no dia 18 de janeiro de 1877, quando é inaugurada a estação ferroviária (atualmente desativada). Em 1898 é inaugurada a estação de Moreira César no local onde outrora em 1880 funcionava o posto telegráfico Barranco Alto. O nome da estação foi uma homenagem ao Coronel do Exército, Antônio Moreira César, nascido em Pindamonhangaba, famoso pela crueldade na repressão aos rebeldes durante a Revolução Federalista de 1893 no Rio Grande do Sul, quando mandava aplicar a “gravata” vermelha nos prisioneiros. Devido à façanha ganhou a alcunha de “Corta-Cabeças”; foi morto por jagunços de Antônio Conselheiro no dia 3 de março de 1897, quando chefiava a 3ª Campanha da Guerra de Canudos. Uma outra estação é inaugurada em  1937 nos limites de Pindamonhangaba, a de Coruputuba.
               Contudo a cidade de Pindamonhangaba possui algumas particularidades que chamam a atenção e merecem ser relatadas. Recebendo algumas denominações adicionais como Imperial e Princesa do Vale, a referida cidade sempre atuou no ramo da música, ficando famosa pela Corporação Euterpe, fundada a 25 de agosto de 1825, em atividade até pelo menos o final da década de 1980, sendo então considerada a mais antiga banda de São Paulo, com destaque para o Maestro João Gomes de Araújo (1846-1943). A mencionada banda foi prestigiada por D.Pedro II e Carlos Gomes em apresentação na Corte.  Também tem destaque em Pindamonhangaba, a imprensa com o jornal Tribuna do Norte, fundado em 1822 por João Romeiro, ainda em circulação, também em fins da década de 1980. Atualmente, Pindamonhangaba está inserida no eixo industrial Rio-São Paulo, ocupando espaço no desenvolvimento local, regional e nacional, buscando equiparar-se a cidades de grande porte no Vale do Paraíba como São José dos Campos e Taubaté, bem diferente daquela pequena e perdida paragem, próxima à trilha dos bandeirantes, onde se faziam anzóis. Até a próxima.
                                                                                                       Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
ABREU, Waldomiro Benedito de. Pindamonhangaba. Tempo e Face. Editora Santuário. Aparecida, 1977.
SQUEFF e FERREIRA, Enio e Helder Perri. A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas. Imprensa Oficial. São Paulo, 2003.
MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos e Geográficos da Província de São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista. Volume I. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.
MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba. São Paulo. IBGE. Rio de Janeiro, 1969.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista. Volume VI. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.
ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo (1860-1861). Biblioteca Histórica Paulista. Volume II. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

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