sexta-feira, 26 de junho de 2020

A Era do Divino.

                   Eddy Carlos com o Mestre Toninho Alves em Cunha, 09 de julho de 2014.
                                  Fotografia do Prof. Luís Henrique Guimarães.


Conforme está descrito nos Evangelhos, após o batismo de Jesus, pelo essênio João Batista, nas águas do Rio Jordão, o Espírito Santo apareceu em forma de pomba, afirmando a divindade do Messias. Em outro episódio, após a Ascensão de Cristo, os Apóstolos reunidos no Cenáculo em Jerusalém, recebem o Espírito Santo, também no formato de uma pomba, a qual “solta” sobre cada um deles, uma língua de fogo. Chamada de Pentecostes, essa manifestação do Divino Espírito Santo, segundo a Igreja inicia a evangelização e conversão dos povos pagãos. Na liturgia católica, um dos dogmas é a Santíssima Trindade; três pessoas distintas em uma só: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Com a expansão do cristianismo, sobretudo na Europa, e a consolidação da Igreja Católica após a queda de Roma, os povos convertidos passam a ser influenciados pela religião. Por volta do século XIV em Portugal, a Rainha D. Isabel (1271-1336), esposa do Rei D. Diniz (1261-1325), teve a iniciativa de comemorar com festas e folias o Divino Espírito Santo. Em meio aos festejos havia já o costume de distribuir alimentos aos pobres, além da solicitação de esmolas para o Divino. A iniciativa da monarca lusitana era em prol da construção da Igreja do Divino Espírito Santo de Alenquer. Segundo a análise do Prof. Henrique Alckmin Prudente, a rainha “procedia à distribuição de alimentos a enfermos e pobres em conjunto com os foliões do Espírito Santo, com o que seria, em verdade, na Folia do Divino Espírito Santo”. A distribuição gratuita de alimentos aos mais necessitados teria surgido entre os gregos, costume assimilado pelos romanos, que a chamavam de “panis gradilis”. Com a conquista da Ibéria chegou à Hispânia e à Lusitânia durante a dinastia dos Antoninos.
Os festejos em hora ao Divino iniciados pela rainha portuguesa se destacaram no calendário religioso, sendo realizados cinqüenta dias após a Páscoa. De acordo com a historiadora Martha Abreu, as celebrações de Pentecostes, nas quais se homenageava a terceira pessoa da Santíssima Trindade, “eram as únicas no século XIV, em que as Ordenações do Reino permitiam a tradicional distribuição de comidas aos pobres, “os vodos”. Desde os primeiros tempos, no domingo de manhã, um sacerdote comandava a solenidade de coração do imperador simbólico e dos dois reis que o assistiam; a rainha Isabel convocava a nobreza a participar”. No início do século XVI, com a colonização nos trópicos, Portugal trouxe para o Brasil, além de sistemas políticos e econômicos, os costumes e a religião católica, e os festejos em homenagem ao Divino. Segundo Martha Abreu, vindas do Reino, as festas do Divino “continuaram se realizando com muita pompa em várias cidades, sendo que o viajante norte-americano Thomas Ewbank, em 1846, chegou a considerá-las como as mais populares do país”. No caso do Rio de Janeiro, as festividades devem ter se tornado mais evidentes após a chegada da família real em 1808. Apesar de impressionar os estrangeiros como afirmado por Martha Abreu, as autoridades ao longo do século XIX tentaram controlar as cerimônias. As alegações variavam desde a preocupação com o ajuntamento de escravos e negros libertos até a prática de jogos de azar. Foram várias publicações de leis e códigos de postura variando desde a proibição direta à tolerância, tentando regulamentar e isolar as cerimônias realizadas. Diversos pedidos de licença foram sumariamente negados e, quando concedidos, exercia-se uma rigorosa fiscalização. Por outro lado, a Igreja não via com bons olhos a livre manifestação popular. Com a ocorrência de divertimentos profanos, paralelo ao religioso, o clero alegava que os fiéis cairiam no pecado ao invés de reverenciar o Divino. Na realidade, ocorria também um sincretismo religioso, devido à grande participação de negros e mulatos, escravos ou libertos. Assim, conjuntamente com a administração colonial, temia-se a desordem e a possibilidade de revoltas.  Na década de 1830, o controle foi mais severo, principalmente após a Revolta dos Malês em 1835, ocorrida na Bahia.
Segundo Henrique Alckmin Prudente, a simbologia dos festejos em honra do Divino está centrada “na figura representada pela pomba branca junto de um resplendor, pela bandeira do próprio Divino, utilizada durante as folias, pelo cetro e pela coroa, objetos pertencentes ao Imperador, podendo este ser uma criança ou um adulto”. Martha Abreu afirma que no início do século XIX, antes das fiscalizações, a festa por ser importante e por ter “um imperador”, teria levado José Bonifácio a optar pelo título político idêntico a Dom Pedro, devido ao fato de a massa não estar habituada com o de “rei”. A afirmação da autora é baseada em tese de Câmara Cascudo e, verídico ou não, na realidade, a liderança política pós-independência trabalhava com o fato das dimensões territoriais do Brasil, atrelado ao antigo projeto lusitano de criar um império nos trópicos. Retornando à festa do Divino, Laílson Santos e Robson Regato descrevem a simbologia e as cores dos dons espirituais. Segundo os autores, a bandeira vermelha é o símbolo sagrado do Divino; a pomba branca, manifestação de Deus; as fitas coloridas os dons, sendo que a cada graça alcançada um nó é feito em cada uma delas; a coroa, o símbolo do Império, instituída pela rainha Isabel. Por sua vez, as cores dos dons do Divino são: azul, significa sabedoria; prata, o entendimento; verde, conselho; vermelho, fortaleza; amarelo, ciência; azul escuro, piedade; roxo, temor a Deus.
Além do Rio de Janeiro, o Divino era eloquentemente festejado em Salvador, Recife, Diamantina, Montes Claros, Perinópolis, Olímpia, Paraty, Ubatuba, Mogi das Cruzes, etc. Nesta última, que ainda comemora o evento há pelo menos 300 anos, ainda utiliza-se o carro de boi nos cortejos. De acordo com o ilustre jornalista Darwin Antônio de Godoy Valente, o “som agudo das violas caipiras e das vozes de seus tocadores rasga o silêncio do final de madrugada, no centro urbano de Mogi das Cruzes. O dia ainda não amanheceu quando, em meio à neblina que tinge as ruas de cinza, começam a surgir, às centenas, velhos, moços e até crianças, vindos dos mais distantes pontos da cidade. Os devotos do Divino Espírito Santo vencem o frio e caminham em direção à luz forte e avermelhada que emana de um altar. Ali reina, soberana, uma pomba branca rodeada de bandeiras encarnadas. É no Império, símbolo da morada do Espírito Santo, que começa a Alvorada, uma das mais fortes demonstrações populares de religiosidade de uma festa onde a fé no Divino é o caminho mais curto para  aproximar o profano e o sagrado, o folclórico e o religioso, numa simbiose muito próximo da perfeição”. Em sua análise Darwin destaca algumas das principais rezadeiras de Mogi das Cruzes, como Dona Rita Ana Nascimento Eugênio, “Nhá Zefa Onça”, entre outras.
            Todavia, Alckmin Prudente ao analisar a obra de Percival Tirapeli, assinala que o primeiro registro da manifestação da festa do Divino, foi realizado em 1761 na Vila de Guaratinguetá. Assim como ocorrera em outras cidades conforme já mencionamos, no Vale do Paraíba, os festejos propagaram-se espalhando por locais, como Aparecida, Lagoinha, Santo Antônio do Pinhal, São Luiz do Paraitinga, São José dos Campos e, principalmente em Cunha. Porém devido ao antagonismo latente entre o catolicismo oficial e o popular, de acordo com o Prof. Henrique, os “dois aspectos supracitados não se intercalaram de forma harmônica, mas apresentaram significativos descompassos culminando com a própria extinção da festa” em Guaratinguetá. De acordo com Tirapeli, a Festa do Divino em Guaratinguetá seguiria o entusiasmo marcante durante mais de dois séculos e meio, “para terminar na década de 1920, com sua proibição não somente pelo Vigário da Paróquia, mas, igualmente, pelo Delegado de Policia, em vista do acontecimento da morte de um homem pisoteado pelo povo na distribuição da carne na porta do mercado municipal”.
            Como afirmado, a Igreja temia que os festejos saíssem de sua esfera de controle e apesar da proibição total como fez o Vigário de Guaratinguetá, a manifestação da cultura popular resistiria. Conseguindo o controle, porém, as autoridades eclesiásticas, cooptando lideres ou tolerando tacitamente, acaba assumindo o encargo da organização dos festejos. Passa a serem proibidas algumas diversões e manifestações profanas, mantendo o caráter puramente religioso. Para Jaqueline Baumgratz, em São Luiz do Paraitinga, a Festa do Divino possui uma grande importância devido à tradição com que é realizada. Na década de 1960, o Município de Lagoinha também possuía como forte tradição “esta festa que, geralmente, tomava uma dimensão ainda maior que as atuais, devido ao forte apoio da igreja e dos governantes municipais.” Notamos aqui a intervenção do poder público na organização da festa. Anteriormente o mesmo procurava coibir os festejos, como vimos na análise de Martha Abreu. Porém, até que ponto tal intervenção pode estimular os festejos?  Ao longo do século XX, com o avanço da industrialização que “modernizou” o Vale do Paraíba, muitas festas, além da do Divino, foram perdendo importância, como a de São Benedito, Folia de Reis, Congada, Moçambique, Jongo, etc. Isso deve-ser ao fato de que a industrialização somada à urbanização descontrolada, “tirou” o homem do campo, desestruturando antigos laços de convivência solidária, outrora existente no mundo rural. Por outro lado, os antigos mestres organizadores da cultura popular vão também desaparecendo sem ninguém para substituí-los. Os jovens são iludidos sobre as “facilidades” da vida nos grandes centros urbanos.
Dessa forma, em algumas localidades, a intervenção do poder público, através das Secretarias de Cultura, acaba fomentando e proporcionando a continuação dessas práticas culturais. É o que ocorre em Cunha, sendo a data da Festa do Divino Espírito Santo fixada no mês de julho de cada ano, através da Lei Municipal nº. 798, de 5 de maio de 1998. De acordo com Alckmin Prudente, a referida lei “no caput do artigo 2º. também qualifica a Festa do Divino Espírito Santo de Cunha como patrimônio cultural municipal: ‘A festa do Divino Espírito Santo é Patrimônio Cultural do Município de Cunha, devendo ser incentivada e comemorada no terceiro Domingo do mês de Julho e semana antecedente’”. Em São Luiz do Paraitinga, uma casa é destinada, durante as comemorações, a se tornar a Casa da Festa e, junto dela ou em outra cedida, se estabelece o Império do Divino. Jaqueline Baumgratz afirma que é no “Império” que ficam alojadas os ornamentos e fitas, sendo a ampla sala ornamentada com as mesmas fitas coloridas para serem beijadas pelos fiéis. “É na sala do Império que se concentram as bandeiras trazidas pelas diversas folias do Divino” no decorrer da festa. Na referida cidade destaca-se entre outras pessoas, Dona Benedita Antunes, mais conhecida como Didi dos Anjos, responsável há mais de 60 anos, pela decoração das salas dos Impérios do Divino. Ainda de acordo com Jaqueline, durante as comemorações em São Luiz é comum os cortejos a cavalo, as cavalhadas e a exibição dos bonecões João Paulino e Maria Angú, “não podendo faltar o levantamento do Mastro e claro, a fartura dos tradicionais pratos”, principalmente o “afogado”, típico da região. No século XIX, a festa era muito popular também em São José dos Campos, segundo Agê Júnior. Os preparativos se iniciavam uma quinzena antes com o levantamento do mastro. O local era o Largo da Matriz, para onde era levado o mastro por condutores mascarados, em procissão com partes dos fiéis vestidos de anjos e virgens, em meio aos espetáculos pirotécnicos. Assim, de acordo com Agê, estava “iniciada a Festa do Divino, com as rezas, leilões e prendas, onde destacavam-se as saborosas leitoas de couro bem pururuca, gordas perdizes e perús assados”. O autor destaca ainda os folguedos populares, a parte profana, com “samba e batuque, que só terminavam ao clarear da manhã seguinte”. Era o mesmo cenário descrito por Martha Abreu no Rio de Janeiro. No dia da festa propriamente dita, o Imperador, citado por Agê Júnior como festeiro, oferecia um grande jantar para a multidão, que consumia quantos bois, galinhas e porcos fossem precisos. Após o jantar, servido às 15 horas, realizava-se a procissão de encerramento da cerimônia religiosa. Mas a festa prosseguia. Durante a noite, “baile para a sociedade e fandango para o povo, encerram mais uma tradicional festa do Divino Espírito Santo”. Percebemos na citação de Agê Júnior, uma segregação entre os fiéis do Divino, quando é oferecido dois tipos de divertimentos, de acordo com a classe social. O fato é que, atualmente a Festa do Divino em São José dos Campos ficou restrita a alguns bairros, como o Distrito de Eugênio de Melo.
Entretanto, apesar de mantida por algumas cidades como afirmado, a Festa do Divino mais famosa e em evidência continua sendo a de Cunha. O Prof. João José de Oliveira Veloso afirma que a mesma foi muito bem organizada desde os tempos coloniais pela Irmandade do Santíssimo Sacramento fundada em 1754. Em 1878, segundo o autor citado, a festa em honra do Divino, destacou-se por ter sido uma das maiores celebrações de Cunha, em que se mesclaram o profano e o religioso. Naquela época, a comemoração era realizada entre setembro e outubro, envolvendo “a classe latifundiária, camponeses e a própria igreja, que por sua vez, organizava programas especiais, trazendo (...) oradores famosos, proferindo os mais lindos sermões já ouvidos”.  O Prof. Veloso afirma ainda que a festa de 1878, cujo festeiro foi o Sr. Pedro Izaltino de Gouveia Veiga (tabelião do Cartório) agradou tanto, tendo inclusive a presença do Bispo de São Paulo, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho. O povo “vangloriava-se por sua presença e a igreja rejubilava-se pela visita do pastor a seu humilde rebanho”. Na realidade, o poder clerical havia assumido o controle das manifestações religiosas, pois em plena época de campanha abolicionista era preciso manter “rédea” firme, sem radicalizar nas proibições como faria o Vigário de Guaratinguetá 42 anos depois.
Mesmo tendo o apoio da Prefeitura e da Igreja, que controlam com muitas exigências e proibições parciais, a Festa do Divino prossegue. Apesar do apoio logístico que o poder público garante como a utilização de caminhões, uma das reivindicações dos organizadores não é atendida. Analisando os festejos de 2008 e 2009, Henrique Alckmin Prudente afirma que o Vigário da cidade aponta a necessidade da remoção dos shows musicais da páteo lateral e adjacências da Igreja Matriz. O evento “moderno” com som eletrônico, somado com algazarra e sujeira acaba ofuscando o principal espetáculo. Segundo Henrique, “ao se fundir o lado religioso da Festa do Divino com atratividade turística em prol da identidade cultural, a incompatibilidade entre o palco e sua utilização desarticulada com a Igreja acaba gerando situações conflituosas”.  Apesar disso a situação prossegue; antes reprimida pelas autoridades, a “diversão” profana e incômoda é tolerada. Na festa deste ano de 2014, os eventos musicais para turistas ocorreram “normalmente” atrapalhando as comemorações do Divino.
Na mesma semana em que ocorreu a Festa do Divino em Cunha, o Instituto de Estudos Valeparaibanos (I.E.V.) realizou o XXVIII Simpósio de História na cidade. Com o tema “Vale do Paraíba, História e Música”, o evento cultural foi presidido pelo Prof. Luis Henrique Guimarães e a Profa. Gabriela Veloso. Dentro dos diversos trabalhos e palestras, além de grupos folclóricos apresentados, destacamos a apresentação do Sr. Toninho Alves. Um dos últimos mestres violeiros de Cunha, Toninho Alves comanda a Folia do Divino e a Folia de Reis. Na tarde do dia 09 de julho de 2014, durante o evento do IEV no antigo cinema de Cunha, o Mestre Toninho Alves nos brindou uma verdadeira  e excelente aula de cultura popular, baseada no seu conhecimento de vida ao longo de seus 70 anos. O autor do presente relato estava presente à palestra de Toninho Alves e recorda de suas sábias palavras, acompanhado de sua simplicidade na Festa do Divino. Encerramos enviando um forte abraço aos professores, Luis Henrique Guimarães, João José de Oliveira Veloso, Víctor Amato dos Santos, à Profa. Gabriela Veloso e, em especial, ao Mestre Toninho Alves. Até a próxima.

     Eddy Carlos



Dicas para consulta.

ABREU, Martha. O Império do Divino. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1999.

BAUMGRATZ, Jacqueline. Cultura Popular do Vale do Paraíba. Mogiana Gráfica e Editora. São José dos Campos, 2011.

JÚNIOR, Agê.  São José dos Campos e sua História. Offset. São Paulo, 1978.

PRUDENTE, Henrique Alckmin. Bandeiras, Comidas e Folias. Casa Cultura. Taubaté, 2011. 

SANTOS e REGATO, Laílson e Robson. A Fé. Festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes. Edição dos autores. São Paulo, 2010.

VELOSO, João José de Oliveira. A História de Cunha. 1600-2010. JAC Editora. São José dos Campos, 2010.


E-mail: eddycarlos@ymail.com       

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com

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