terça-feira, 9 de julho de 2019

O Constitucionalista do Embaú.

Pausa durante os combates na região do Túnel na Serra da Mantiqueira. Deitado, apoiando-se no colega com o cigarro na boca, o Sr. José Montenegro, tio-avô do Prof. Eddy Carlos.
           FONTE: Acervo histórico-particular do Recanto da Glória; Embaú, Cachoeira Paulista.

                 Desde 1997 o Estado de São Paulo comemora o dia 09 de julho, que remonta ao início da Revolução Constitucionalista de 1932, sendo, portanto, o único feriado estadual paulista. Na capital e em algumas cidades do interior são organizados eventos cívicos, juntamente com associações de veteranos (os poucos que ainda vivem), ou até mesmo daqueles que simpatizam e exaltam o feito dos paulistas contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas. É lembrada a “bravura” da pátria bandeirante que, abraçando a causa constitucionalista, se levantou contra a ditadura e a tirania varguista. Em matérias jornalísticas e documentários, são recordados e imortalizados os nomes dos mentores do levante armado, civis e militares. É o caso de Pedro de Toledo, Waldemar Ferreira, Cásper Líbero, Ibrahim Nobre, Francisco Morato, Isidoro Dias lopes, Bertholdo Klinger, Euclides Figueiredo, Júlio Marcondes Salgado, etc. Também é recordado e exaltado os nomes dos estudantes mortos em São Paulo, antes do levante, pela Legião Revolucionária (grupo paramilitar comandado por Miguel Costa): Martins , Miragaia (este de São José dos Campos), Dráusio e Camargo, cujas iniciais formariam a sigla MMDC.
               No entanto, as reais causas que fizeram com que os paulistas pegassem em armas contra o Governo Central, não são abordadas nessas comemorações. Contraditoriamente, o Governo Vargas, levado ao poder na Revolução de 1930 com o apoio dos Tenentes, iniciava a implantação de uma política de apoio às classes operárias. Mesmo sendo um governo de Direita e autoritário, pela primeira vez havia uma política social de amparo ao trabalhador, com a criação de leis de proteção ao  emprego, que redundaria na Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT, em 1943. Assim, alijada do poder em 1930 e, contrária à essa e outras políticas de cunho social, a elite paulista, agrária e industrial, conclama a “imediata reconstitucionalização” do país. Na verdade, utilizaram de um argumento democrático, a Constituição, para “frear” esses avanços sociais e depor Getúlio do Catete. Contando com o apoio de Minas Gerais, Mato Grosso e Rio Grande do Sul, para o levante armado, os paulistas se viram em situação insustentável, quando estes resolvem permanecer leais à Vargas. Conduzida pela Força Pública (atual Polícia Militar)e unidades do Exército no Estado, a Revolução foi sufocada após três meses de combates em várias frentes, no litoral, e pelo ar. Aproximadamente mais de 800 homens morreram, do lado paulista, combatendo por uma causa que não era sua, mas sim de políticos e empresários paulistas. Todavia, mencionamos as homenagens que são feitas, anualmente, aos que combateram as forças legalistas, mas essas restringem-se quase exclusivamente aos que exerciam poder de comando, ou seja, os oficiais. São omitidos e ignorados os nomes daqueles, que de fato sofreram com o clima belicoso do conflito. Por isso, trazemos à tona, a memória de um ex-combatente, tio-avô do autor deste relato, que à este relatou suas experiências na Revolução de 1932, quando o mesmo era criança.
               José Benedito Nunes de Oliveira nasceu no dia 26 de dezembro de 1909 no Embaú, então Distrito do Município de Cruzeiro (em 1934 esse Distrito seria incorporado ao Município de Cachoeira). Era o segundo filho de Eduardo José de Oliveira, capataz da Fazenda Godoy, e de Ângela Nunes de Oliveira. O local da infância foi a casa paterna (hoje o Recanto da Glória), à época pertencente à fazenda mencionada. Além de uma irmã mais velha, até 1924 nasceriam mais cinco irmãos e, para auxiliar o pai, logo começa a trabalhar. Porém, logo inicia os estudos no Colégio Salesiano São Joaquim em Lorena, sendo transferido para Lavrinhas, na adolescência. Conforme relato de Benedicta Magalhães, com quem foi casado, houve possibilidades para José Benedito ingressar na carreira sacerdotal, logo descartadas. Entre o final da década de 1920 e início da de 1930, ingressa no serviço militar, engajando-se como soldado no então 5º RI (Regimento de Infantaria), sediado em Lorena. Como afirmado anteriormente, além da Força Pública, as unidades militares do Exército no Estado de São Paulo aderem ao levante de 1932 contra Getúlio Vargas. Era o caso do 5º R.I., que logo tratou de garantir o controle da Fábrica de Pólvora (do próprio Exército), em Piquete. Deflagrado no dia 09 de julho, os rebeldes, imediatamente, estabelecem em Cachoeira a 2ª D.I.O. (Divisão de Infantaria em Operações), comandada pelo Coronel Euclydes Figueiredo. A partir de Lorena e Cachoeira, a ação seguinte foi a ocupação da região do Túnel, na Serra da Mantiqueira e, por cima deste, da área entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais (Cruzeiro e Passa Quatro). Tomando posições no referido túnel, uma locomotiva foi utilizada para bloquear o avanço, por via férrea, das forças legalista, vindas do território mineiro. E é nesse setor que iria atuar o soldado José Benedito. Nesse ínterim, por motivos que desconhecemos, José Benedito havia alterado o nome, simplificando-o para José Montenegro. Assim, entre os companheiros de caserna e já na campanha do Túnel ficaria conhecido apenas como “Montenegro”.
                Além de ter que se defender dos ataques inimigos, inclusive da aviação de Vargas, a preocupação com a família, no Embaú, era constante. Havia o temor de eventuais represálias contra a população indefesa, como ocorrera em Silveiras, noventa anos antes (1842). Mas tão logo se iniciaram as hostilidades, a proprietária da Fazenda Godoy, Sra. Ricarda de Castro Fleming decidiu que a sua família e a de seu capataz, deixassem o Embaú, com destino à outra fazenda, na época também de sua propriedade, a Fazenda da Serra, localizada no Brejetuba, zona rural de Cruzeiro. Ao longo de três meses, Montenegro sentiu os horrores da guerra , presenciando mutilações e mortes de colegas de campanha. A região do Túnel foi a última a depor as armas, antes do Protocolo de Cruzeiro e do Armistício, imposto pelo General Góes Monteiro aos rebeldes, assinado nessa cidade, em 02 de outubro de 1932. Muitos anos mais tarde, Montenegro relataria ao autor destas linhas, então criança residindo com os avós maternos no Embaú, cada detalhe de sua experiência no Túnel. Entre seus relatos, a falta de munições e a ordem para economizar o que tinha disponível, enquanto que o inimigo despejava fogo à vontade, como descreveu também sobre isso, Euclides Figueiredo em livro sobre o conflito. Montenegro relatava ainda o uso da matraca, engenhoca que imitava o som de uma metralhadora (muito exaltada nas comemorações atuais), mas que não surtia efeito. Ao mesmo tempo em que o soldado paulista tinha à sua disposição apenas a matraca, os legalistas utilizavam metralhadoras e munições reais. E também, a escassez de suprimentos, algo rotineiro que marcou as recordações do soldado José Montenegro. Porém, encerrado o conflito, com a derrota dos paulistas e a prisão dos líderes civis e militares (alguns exilados), os sobreviventes retomam sua vida rotineira. Retornando à Lorena, Montenegro pede baixa do Exército e trilha outros caminhos. Durante algum tempo foi Investigador de Polícia, e ao concluir o curso de Técnico de Enfermagem, ingressa como funcionário da Fábrica de Pólvora em Piquete, mais tarde rebatizada com o nome de Fábrica Presidente Vargas. Fixando residência na cidade de Piquete, José Montenegro trabalhou na referida fábrica até a aposentadoria, atuando no setor de Enfermagem e nos laboratórios da mesma. Como unidade fabril militar, seus préstimos eram solicitados também em lorena, no mesmo quartel onde havia servido.
              Residindo em Piquete, Montenegro sempre visitava a família no Embaú e, em cada visita relatava detalhadamente os acontecimentos de 1932. Por outro lado, o ex-combatente desenvolveu a verve pela Poesia, compondo Versos e Sonetos, o que não chegou a publicar. José Montenegro contraiu núpcias com Benedicta de Magalhães e dessa união nasceram três filhos: Eduardo Sávio, Élcio Montenegro e Estela Montenegro. Em 1979 a família resolve se transferir para o Município de Guarulhos, permanecendo em Piquete o filho Eduardo Sávio, já casado (falecido em dezembro de 2018). José Montenegro, no entanto, alternava sua permanência, ora em Guarulhos, ora em Piquete; e ocasionalmente continuava com as visitas a familiares: nas casas das irmãs, Maria da Conceição em Cruzeiro, e Maria da Glória (avó materna deste autor) no Embaú. Na segunda metade da década de 1980, José Montenegro passou a ficar com a saúde debilitada, sendo frequentes as idas a hospitais. Em novembro de 1987, o autor deste texto visitou-o na Santa Casa de Piquete após uma internação urgente; outras viriam, mas permanecia lúcido, nunca se esquecendo das experiências vividas em 1932. No dia 1º de julho de 1989 os olhos de José Montenegro se fecham para sempre, sendo sepultado no Cemitério de Piquete. Atualmente sua descendência se compõe dos três filhos citados, oito netos e dois bisnetos espalhados em São Paulo, Guarulhos e Piquete.
              Infelizmente, assim como ocorrera com um irmão, o Pe. João Bosco, citado em artigo anterior, a população do Embaú desconhece que um cidadão, lá nascido, pegou em armas acreditando em um ideal, que já estava deturpado pelos teóricos e ideólogos da assim denominada Revolução Constitucionalista de 1932. Sua memória permanece viva entre seus familiares, principalmente, o sobrinho-neto que encerra o presente artigo. Quanto à Revolução...; nos anos que virão, novas comemorações... Até a próxima.
                                                                                                         Eddy Carlos.


Informações gerais.
Para compormos este texto recorremos às lembranças dos diálogos presenciados e vividos com José Montenegro, no Embaú, entre o final da década de 1970 e inicio da de 1980. Relatos também passados por Maria da Glória (avó materna do autor) no mesmo período. Outras informações obtidas conseguimos com as sobrinhas de Montenegro, Maria das Dores e Maria Auxiliadora (respectivamente mãe e tia deste autor). E recentemente com Benedicta de Magalhães Montenegro e Estela Montenegro de Almeida (esposa e filha de José Montenegro), em uma prosa agradável no Recanto da Glória, no Embaú, Cachoeira Paulista.
                                                  São José dos Campos, outubro de 2016.


Dicas para consulta.
ANDRADE, Antônio de. 1932. Os Deuses estavam com Sede. Editora Stiliano. Lorena, 1997.
DONATO, Hernâni. A Revolução de 32. Círculo do Livro. São Paulo, 1982.
FIGUEIREDO, Euclydes. Contribuição para a História da Revolução Constitucionalista de 1932. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1954.
SILVA, Hélio. 1932. A Guerra Paulista. Coleção O Ciclo de Vargas. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1976.
RAMOS, Agostinho. Recordações de 32 em Cachoeira. Empreza Graphica do Tribunaes. São Paulo, 1937.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br 

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