sexta-feira, 21 de junho de 2019

Rio de Jacarés.

                  A Vila de Jacarehy no início do século XIX. Tela de Jean-Baptiste Debret.
                                  FONTE: pinacotecadovale.blogspot.com.br
       
                Em artigos anteriores analisamos a expansão colonial portuguesa em terras que antes eram habitadas pelos silvícolas, perdendo estes seu território e sendo dizimados por doenças, escravidão e expedições punitivas. Convencionou-se na nossa historiografia oficial glorificar as práticas e atitudes dos colonos e, principalmente dos bandeirantes que “desbravam” os sertões inóspitos levando o modelo de civilização imposto pela Coroa com o beneplácito da Igreja. No que veio a ser o Estado de São Paulo, os bandeirantes seguiram em diversas rotas de penetração, ampliando os domínios de Portugal sobre Pindorama, tais como os cursos do Rio Tietê e Paraíba do Sul. Na região compreendida entre os dois rios, é fundado em 1611 o antigo povoado de Boigy, mais tarde Mogi das Cruzes, considerada por diversos estudiosos como a Capitania de Brás Cubas. Seguindo no encalço dos indígenas, principalmente dos Puris, os colonizadores vão estabelecendo alguns povoados que, logo em seguida emancipam-se tornando-se municípios. Considerando o ano da elevação à condição de vila, temos Taubaté em 1645 e Guaratinguetá em 1651. Ambas se transformaram em bases de novas expedições rumo ao Sertão dos Cataguases, após galgarem a Serra da Mantiqueira, através da Garganta do Embaú.
                Concomitantemente, o fluxo de aventureiros prosseguiu, partindo da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga e da Vila de Boigy. Seguindo pela trilha que, atualmente configura com a antiga Rodovia Rio-São Paulo, os viajantes, aventureiros e exploradores estabelecem um ponto de pouso para descanso, próximo ao Rio Paraíba. Apesar de perigoso, tal pouso ficava perto de um local do rio infestado de jacarés, abundantes na região no período ora analisado. O trecho, muito conhecido pelos índios era denominado pelos mesmos de “rio de jacarés”. Na língua tupi, o topônimo é construído seguindo a composição de Iakaré (jacaré) e ‘Y (rio). Na pronúncia saía a palavra Iakarey e da corruptela da língua portuguesa formou-se "jacareí". Aos poucos o referido pouso vai se desenvolvendo com a transformação em povoado. Alguns pesquisadores têm como certo de que tal povoado foi fundado em 1652 por Antônio Afonso, oriundo de São Paulo de Piratininga, juntamente com seus filhos, com a construção de uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição.
               Entretanto, em obra conceituada, o pesquisador Célio Lencioni transcreve a ata de criação da vila, ocorrida no dia 21 de novembro de 1653, onde consta o nome do mogiano Diogo de Fontes como fundador e Capitão-Mor do novo município. Com o auto da ereção da vila, a mesma foi intitulada de Nossa Senhora da Conceição do Parahyba. Aos poucos, porém, foi acrescentado o topônimo indígena, referido anteriormente, acabando por substituir o nome original. A escritora Ludmila Saharovsky afirma que a "confusão" sobre o ano da fundação ocorre "porque se optou por festejar a data em que Jacareí foi elevada à condição de cidade: 3 de abril de 1849 (...). Uma data de suma importância, mas não tão importante quanto a data de sua fundação". Após um breve período, no início do século XVIII, sendo chamado de Vila do Parahyba, o local passou a ser conhecido, já em 1710 como Vila de Jacarehy. Nesse ano e até 1779, Jacareí  ficou bem conhecida nas correspondências oficiais entre a administração colonial e o Departamento Ultramarino de Portugal. Foi da Vila de Jacarehy que partiu em 1710, um contingente de 300 homens, liderados pelo bandeirante Bartolomeu Fernandes de Faria, que atacou a Vila de Santos em busca de sal armazenado e monopolizado pela Coroa. Com a façanha, o líder da “revolta do sal”, denominado de “régulo de Jacareí”, transformou a Vila num baluarte, rechaçando as tropas do governo que procuravam prendê-lo, o que se realizaria em 1719, quando Bartolomeu estava em Itanhaém, em uma de suas várias propriedades.
               Entre os séculos XVIII e XIX, Jacareí passa a figurar nos relatos de viajantes, cronistas e membros de expedições científicas, além de autoridades, assim como suas irmãs valeparaibanas. A propósito não devemos deixar de esclarecer uma questão interessante de ordem geográfica. É comum nos relatos mencionados dos viajantes encontrarmos a informação de que Jacareí situa-se à margem direita do Paraíba, da mesma forma que em outros, a localização do povoado está à esquerda do mesmo rio. Na realidade, Jacareí foi fundada entre as duas margens do Rio Paraíba do Sul. Confuso? Lembremos que o Paraíba origina-se da confluência dos rios Paraitinga e Paraibuna, seguindo rumo Nordeste-Sudoeste até a ”curva” de Guararema. Nesse local, o referido rio “descreve” um arco e segue em direção oposta, ou seja, Sudoeste-Nordeste até a desembocadura no Oceano Atlântico. Retornando aos relatos, iniciemos com a viagem de Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcellos, o Conde de Assumar, que percorreu a Capitania de São Paulo, através do Vale do Paraíba até Vila Rica, onde estabeleceu a sede do seu governo. Na tarde do dia 2 de outubro de 1717, o Conde e sua comitiva chegam à Vila de Jacareí, um local “bem miserável; porque além de ter poucas casas, quase todas são de palha”. Foi nessa viagem que ocorreu o episódio dos pescadores que apanharam em suas redes a imagem da Santa Aparecida na Vila de Guaratinguetá, quando o Conde de Assumar chegou ao povoado no dia 17 de outubro de 1717. Em 1751 quem passa por Jacareí é Dom Antônio Rolim de Moura, o Conde de Azambuja, com destino à Vila de Cuiabá.
              Todavia, foi no século XIX que se intensificou  o número de viajantes, não só no Vale do Paraíba, mas em todo o Brasil. Com a vinda das missões científicas europeias, o Vale foi relatado e retratado de maneira mais realista e, digamos, menos elitista. A paisagem pitoresca de Jacareí foi reproduzida nas telas de Thomas Ender e de  Jean-Baptiste Debret. Em 1817 visitam a Vila de Jacareí o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich Phillip von Martius , integrantes da missão austríaca, que descrevem a população portadoras do bócio como poucos higiênicas. A doença é mencionada também por outro botânico em viagem pelo Vale do Paraíba. Em 28 de março de 1822, o francês Augustin François César Provençal de Saint-Hilaire ao passar por Jacareí enfatiza o mal que aflige os habitantes. Segundo o relato do viajante, “em nenhum lugar do Brasil, é esta doença tão comum quanto em Jacareí. Grande número de indivíduos tem o pescoço sobrecarregado por uma massa de carne tão grande quanto a cabeça e a lhes cair sobre o pescoço”. Saint-Hilaire afirma ainda que, devido à enfermidade do bócio, os moradores da Vila de Jacareí ostentam “limitada inteligência e vencem ainda, em matéria de apatia e estupidez, aos seus concidadãos que não tem a mesma doença”. No dia 15 de abril, o botânico passa mais uma vez por Jacareí, seguindo viagem rumo ao Rio de Janeiro. Dessa vez ele menciona o transporte fluvial pelo Rio Paraíba, “desde a Freguesia de Nossa Senhora da Escada (Guararema) até Cachoeira. Desciam pelo rio, até Guaratinguetá tábuas, toucinho e cerâmica fabricada em Nossa Senhora da Escadinha”.
              Apesar do panorama negativo da Vila de Jacareí, descrito nos relatos dos viajantes, na segunda metade do século XIX há uma mudança favorável. No ano de 1860 o jornalista português Augusto Emílio Zaluar realizou uma jornada do Rio de Janeiro à Província de São Paulo, seguindo através da Estrada Geral que corresponde exatamente ao que já foi a antiga Rodovia Rio-São Paulo. Dessa vez, a imagem do povoado é bem diferente. Deixemos que o próprio Zaluar “descreva” a paisagem. “Entremos finalmente em Jacareí e saudemos o desenvolvimento animador desta nascente e pitoresca povoação. (...) Esta povoação conservou-se por muito tempo em atraso, até que nestes últimos anos, pelo desenvolvimento de sua lavoura, e por consequência do seu comércio (...) muito tem prosperado e desenvolvido tanto no progresso moral como no seu aformoseamento material”. O desenvolvimento  da lavoura diz respeito ao café que proporcionou imensas fortunas, graças ao sistema escravista. Um dos maiores escravocratas, senão o maior de Jacareí, foi o Alferes João da Costa Gomes Leitão que, além de cafeicultor era também negociante e capitalista, sendo um dos que financiaram a Guerra do Paraguai, além de acionista da Estrada de Ferro São Paulo-Rio, ao lado do genro Antônio Moreira de Castro Lima, Barão de Castro Lima, de Lorena. A fortuna do velho Leitão teve origem também no tráfico de escravos e no empréstimo de dinheiro a juros extorsivos, mediante hipoteca dos bens dos devedores. O Alferes Leitão faleceu em 1873 e sua casa de morada tornou-se um monumento em Jacareí e, atualmente sedia o Museu de Antropologia do Vale do Paraíba. Embora já iniciando o período de estagnação, o café dinamizou os meios de transporte; antes conduzidas em lombos de burro, as sacas eram escoadas a partir de 1876, quando é inaugurada a Estação Ferroviária no dia 2 de julho.
              A construção de ferrovias era uma esperança para a solução dos problemas financeiros dos fazendeiros, causados pela crise que se intensificava. Por outro lado, as propriedades rurais tiveram uma valorização, graças a implantação dos trilhos. Com o advento da ferrovia, a sociedade também passa por transformações econômicas, políticas e sociais. A partir do início do período republicano tem lugar as políticas sanitaristas, cujo exemplo máximo foi a remodelação da cidade do Rio de Janeiro empreendida pelo Prefeito Pereira Passos, auxiliado por Oswaldo Cruz no combate às moléstias tropicais. No Vale do Paraíba assim como ocorrera em São José dos Campos e demais cidades, Jacareí adota também uma política sanitarista, além da elaboração dos Códigos de Postura, visando o controle dos costumes e hábitos da população com o objetivo de embelezamento da cidade. Em trabalho de pesquisa para Graduação do Curso de História da UNIVAP em 2002, as professoras Renata Cavalcante Soares e Elaine Maria Andrade afirmam que o “controle sanitário e moral, revela-se na prática um controle social, pois as autoridades no intuito de embelezar os centros urbanos, retiravam dos mesmos, aqueles considerados como indesejáveis”. Tal ocorreu no Rio de Janeiro, em São Paulo e, em qualquer cidade que tenha aplicado o controle sanitário; em Jacareí não teria ocorrido de forma diversa. Ainda de acordo com a análise das professoras citadas acima, a proibição por parte das autoridades, da permanência de cavalos, bois, porcos, cães, etc., tinham o mesmo efeito quando se tratava de vagabundos, bêbados, loucos e outros marginalizados da sociedade.
            Contudo, o progresso chega a Jacareí, proporcionado pelo desenvolvimento industrial. Os primeiros sinais da diversificação de atividade econômica em Jacareí ocorrem quando um francês, Luiz Simon, instala entre 1876 e 1881 a primeira fábrica de meias e camisas. Em 1888, ano da Abolição da Escravatura, a cidade já possuía uma indústria têxtil e uma destilaria de álcool. O setor industrial vai se ampliando com a inauguração em 1907, da Fábrica de Meias Hoffmann e Cia. e, em 1911, a destilaria Pinto que produzia xaropes, licores, vinagres, etc. Para atender as necessidades desse novo rumo econômico e uma urbanização desordenada em decorrência do surto industrial aumentou-se o consumo de energia elétrica de que Jacareí não dispunha. A solução encontrada partiu de empresários e inovadores, dentre os quais o Major José Bonifácio de Mattos,  que decidiu implantar a energia elétrica na cidade, auxiliado por outros empreendedores que, como ele, acumularam e investiram parte da riqueza do café na nova modalidade. Sendo assim, é inaugurada no dia 25 de agosto de 1895 a Companhia Luz Eléctrica Jacarehyense, cuja sede localizava-se na Rua do Mercado, atualmente, Rua Dr. Lúcio Malta. Porém, com o aumento da demanda o mesmo José Bonifácio recebe da Câmara Municipal concessão para a construção de uma usina geradora de energia em 1909. A partir de 1910, surge a Empresa Força e Luz Jacareí-Guararema, passando a atuar também no setor de comercialização de materiais elétricos. De 1918 a 1928, a empresa entrou em conflito com as autoridades, devido à precarização, por parte de seus diretores, inclusive José Bonifácio, dos serviços prestados. Na realidade, a empresa foi “sucateada”, em conluio de diretores, alguns políticos e representantes do capital estrangeiro. Utilizando-se de todas as manobras e tramoias, a Prefeitura Municipal, a Câmara Municipal, diretores da empresa e outros negociaram, à revelia da opinião dos habitantes, a venda da usina para a Light and Power, apelidada de “Polvo Canadense”.
               O apelido à empresa do Canadá era referente à aquisição de diversas empresas no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Estado paulista, a Light antes de assumir a Empresa Força e Luz Jacareí-Guararema, já controlava a Cia. Ituana de Força e Luz, Empresa Luz e Força de Jundiaí, Cia. Força e Luz do Norte de São Paulo, Empresa de Melhoramentos Porto Feliz, Empresa de Eletricidade São Paulo e Rio, Cia. Força e Luz de Guaratinguetá, e a Empresa Hidrelétrica da Serra da Bocaina. Sobre a venda da empresa jacareiense, as pesquisadoras Conceição Aparecida Oliveira Zenzen e Antônia Maria Nunes Pieve, afirmam que durante as negociações conduzidas pelo Prefeito João Ferraz, a maior parte “da população foi enganada e ficou contente com as negociações de setembro de 1927, pensando que o Coronel João Ferraz havia comprado a empresa, quando na verdade ele serviu de intermediário no vultoso negócio”. O resultado da negociata desapontou de imediato, os industriais de Jacareí que, decidiram, com motores a diesel, produzir a própria energia de que tanto necessitavam.
             Em que pese o fato das dificuldades, descritas acima, a cidade de Jacareí foi se desenvolvendo e crescendo ao longo do século XX. De acordo com Nice Lecocq Müller, em 1960, Jacareí possuía 62 estabelecimentos industriais com 2.562 trabalhadores; a população urbana era 28.131 habitantes enquanto que a rural era de 7.259. A população total do Município de Jacareí era, então, de 35.390 pessoas. Em 1996, a população da cidade estava em torno de 168.030 habitantes. Atualmente, devido a  vocação  industrial que substituiu o café, Jacareí r tem destaque no cenário nacional, sendo conhecida como a “Capital da Cerveja”, graças a produção de duas fábricas dessa bebida, que configuram entre as maiores da América do Sul. Famosa, também pelas festividades agropecuárias e industriais, realizadas anualmente no mês de julho, a cidade preserva parte de sua memória passada. Além do Solar Gomes Leitão (1857), que citamos anteriormente, o antigo  povoado do “rio de jacarés” ostenta os seguintes monumentos: Igreja Matriz da Imaculada Conceição, cuja capela originária data do século XVII; Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, construída em fins do século XVIII em terras de Bartolomeu Fernandes de Faria, o “agressor” de Santos; Estação Ferroviária, de 1876, junto com o pátio dos trilhos, entre outros. A preservação da memória, através de documentação ou prédios antigos conservados proporcionam  um melhor conhecimento da evolução do processo histórico. Através da História podemos compreender e entender o passado (político, econômico, social, ideológico, etc.), e conhecer o presente, visando o futuro. Tal conhecimento deve partir do cenário local para o geral, pois é preciso conhecer a micro-história, inserida no contexto da macro-história. Ou seja, devemos conhecer nossas origens, através da História Regional, compreendendo a História do Brasil e Geral. Até a próxima.
                                                                                                                         Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
ANDRADE e SOARES, Elaine Maria e Renata Cavalcante. Guia Histórico de Jacareí. Trabalho de Graduação em História pela UNIVAP. São José dos Campos, 2002. Edição mimeografada.

ARRUDA, José Jobson de Andrade (Org.). Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo. Catálogo 2 (1618-1823). Imprensa Oficial/FAPESP/EDUSC . São Paulo, 2002.

DOMENICO, Hugo Di. Estudos de Tupi. Apontamentos de linguística como contribuição ao conhecimento do tupi. Gráfica Ativa. Taubaté, 1998.

LENCIONI, Benedicto Sérgio. O Negro na História de Jacareí (da senzala ao preconceito). Editora Santuário. Aparecida, 1989.
LENCIONI, Célio. Jacareí. Viajantes e Cronistas. Editora Santuário. Aparecida, 1991.

MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba. Fundação IBGE. Rio de Janeiro, 1969.

PATROCÍNIO, Ana Luíza do. Jacareí: Quotidiano e Sociedade, de 1840 a 1870. Scortecci Editora. São Paulo, 2012.

SAHAROVSKY, Ludmila. Jacareí. Tempo e Memória. Scortecci Editora. São Paulo, 2013.

SCHMIDT, Afonso. O Assalto. Clube do Livro. São Paulo, 1948.

ZENZEN e PIEVE, Conceição Aparecida Oliveira e Antônia Maria Nunes. A Energia Elétrica em Jacareí (1895-1928). Coleção “Memórias de Jacareí”. Volume. 1. Fundação Cultural de Jacarehy “José Maria de Abreu”. Jacareí, 2000.

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