domingo, 12 de novembro de 2017

Uma Questão de "Higiene".

Demolição de residências urbanas que haviam na orla do Banhado em São José dos Campos; meados dos anos 1930. Imagem da internet.

              Desde que o homem passou a viver em sociedade, das aldeias primitivas até os grandes aglomerados urbanos, a preocupação com a higiene estava em último plano. A convivência quotidiana estava acompanhada dos dejetos humanos, animais mortos em decomposição, restos de comida, etc. Mesmo as elites, principalmente na época medieval, convivia com ambientes insalubres. A nobreza, com seus trajes finos, usufruindo de amplo conforto “corria” de banhos, o que só ocorria raramente; uma vez por  ano e, em períodos cerimoniais. Alías, foi durante a Idade Média, que ocorreu a Peste Negra, que ceifou um terço da população europeia, entre 1347 e 1349, chegando a interromper as hostilidades entre ingleses e franceses, na Guerra dos Cem Anos (1346-1453). Embora oriunda da Ásia, o ambiente imundo em que vivia a população propiciou a propagação da molétia, de forma avassaladora.  Apesar das inovações tecnológicas, ocorridas com o advento da Revolução Industrial, a questão higiênica ainda era um tabu. Com o êxodo rural para os centros urbanos  e fabrís, os operários e suas famílias iam residir em choupanas miseráveis e em alguns prédios abandonados, sem quaisquer condições mínimas de saneamento. No século XVIII as autoridades médicas europeias afirmavam que tal situação auxiliava a propagação das doenças infecto-contagiosas, as quais eram causadas por miasmas. Com as descobertas científicas de Louis Pasteur, essa teoria cai por terra, sendo substituída pela dos micróbios, como causadores de tais doenças. Os historiadores, Ana Maria Santos Sousa e Luiz Laerte Soares, afirmam que com isso “os cientistas deixaram de lado a antiga crença de que as doenças contagiosas eram transmitidas pela inalação do ar contaminado e passaram a aceitar a ideia da contaminação por germes infecciosos”. No século XIX, as autoridades investem em melhorias de saneamento com novas técnicas, relacionadas à implantação de equipamentos de captação, distribuição de água e coleta de esgotos. Como esse serviço era executado pela parcela mais pobre da sociedade, a mesma ficou sem essa função, ocasionando revoltas populares, as quais configuravam sempre como “ameaça” à ordem pública.
              Em 1851, o Prefeito de París, engenheiro Georges-Eugéne Haussmann, empreendeu na capital francesa uma ampla reforma urbano-sanitária, a qual implicou na demolição de grande parte antiga da cidade. Segundo a análise de Ana Maria e Luiz Laerte, foram devastados “quarteirões, então superpovoados, igrejas e antigas construções, abrindo sobre os escombros grandes avenidas, que integravam um novo traçado para a cidade”. O método de Haussmann, configurando como uma cirurgia urbana, tinha como alvo principal, a parcela “indesejável” da população, os marginalizados da sociedade: trabalhadores, desempregados, vagabundos, meretrizes, ou seja, os desqualificados que não se enquadravam na política elitista. Ainda que a justificativa fosse a de combater as doenças contagiosas, o resultado não era outro. E o modelo de Haussmann tornou-se um parâmetro a ser seguido em outros lugares, tanto na Europa, como na América. Na Itália e Espanha em 1860, na Suécia em 1866, etc. Estava implantado o conceito de Sanitarismo Público ou Política Sanitária, que também chega ao Brasil no crepúsculo do século XIX.
            Logo no alvorocer da República, os novos governantes tratam de “remodelar” algumas cidades, principalmete o Rio de Janeiro, a primeira, considerada um péssimo “cartão-postal” aos olhos europeus. Os historiadores citados acima, mencionam um diagnóstico nada animador da então capital federal, descrito por Robert Pechman. Este afirmava que a cidade não “era exemplo para nada. (...) era também a capital dos miasmas, foco de infecções e epidemias, com uma grande população de negros e pobres circulando descalça pelo centro da cidade, (...). Deste modo, os quiosques, a prostituição, os jogos de rua das camadas populares, o barulho, a baderna, a aglomeração, as obcenidades, os vícios e maus hábitos teriam de ser banidos. Era preciso eliminar das áreas públicas os sinais da desordem”. O alvo da política sanitarista já estava identificado no Rio de Janeiro e, embasado nos argumentos de médicos infectologistas, como Oswaldo Cruz e Emílio Ribas, entre 1903 e 1905, o Prefeito Pereira Passos, auxiliado por Paulo de Frontim promoveu o “bota abaixo”. Em apenas nove meses foram demolidos 614 prédios e seus habitantes, literalmente expulsos, direcionados para regiões distantes ou para os morros. Foram alargadas ruas, vielas e aumentadas as dimensões de janelas das casas que foram poupadas. O ápice foi a construção da Avenida Brasil, ao mesmo tempo em que ocorria a Revolta da Vacina. Como mencionado anteriormente, outras cidades pasaram pelo processo da política sanitarista, entre elas, São José dos Campos, no Vale do Paraíba.
             Nas primeiras décadas do século XX São José dos Campos era uma cidade como qualquer outra do interior do país, carente de infra-estrutura básica de saneamento. Conforme a análise de Ana Maria e Luiz Laerte, já no ano de 1900, a péssima qualidade das instalações do serviço de fornecimento de água potável, propiciaram com que a Câmara Municipal comissionasse o Coronel João Cursino e o cidadão Cláudio Pinto, para solucionar a questão. Em 1909, é inaugurado, antes da conclusão (coisa comum no Brasil), um deficiente Serviço de Abastecimento de Água. Paralelamente, havia o problema da coleta de esgotos que, mesmo com a ampliação, junto com o aumento no fornecimento de água, não atendia todos os bairros. Os historiadores citados mencionam o protesto de um morador da Vila Terezinha, “clamando pela construção de um poço artesiano, uma vez que as cacimbas estavam sendo invadidas e contaminadas pelas águas pútridas das fossas”. Por outro lado, havia a questão das doenças infecto-contagiosas, como a tuberculose, que grassava na cidade, ceifando inúmeras vidas. Esse cenário mereceu um editorial de um jornal da cidade, apoiado por higienistas, solicitando verbas extras do Governo do Estado, para erradicar a moléstia e seus efeitos. E mais, a imprensa, conforme Ana Maria e Luiz Laerte, “denunciava o descaso das autoridades em relação em relação a remoção de cadáveres em veículos particulares. O município contava com apenas um veículo apropriado para a remoção de corpos”.
               Entretanto, enquanto que em São Paulo e no Rio de Janeiro já houvessem ocorridos ações de combate às epidemias, o mesmo ainda estava longe de acontecer em São José dos Campos. Conforme o relato da médica infectologista, Paula Carnevale Vianna, ainda em 1920, pouco era feito para controlar, por exemplo, a tísica, pois inépcia, “clientelismo e privatização do interesse público eram apontados como fatores que impediam o controle da tuberculose”. Dessa forma, somente o controle público e fiscalizatório resolveria o problema. Porém, havia uma contradição em relação aos portadores do Bacilo de Koch. Paula Carnevale afirma que o objetivo das autoridades municipais era manter na cidade “a tuberculose e os tuberculosos, mas à distância segura”, enquanto que para Altino Bondesan, havia interesses fortíssimos para mantê-los no município, pois a própria doença “movia” a economia da cidade e muitos buscavam tirar proveito disso. O resultado foi a divisão da cidade em 1933, durante a gestão do Prefeito José Domingues de Vasconcelos; o município foi dividido em quatro zonas: a comercial, a industrial, a residencial, e a sanatorial, esta bem afastada da região central.
                Neste interím,  a cidade já havia adotado a política higienista e, como a maioria dos prefeitos eram engenheiros sanitaristas e médicos infectologistas, estes ficaram conhecidos como “Prefeitos Sanitários”, e São José dos Campos como “Prefeitura Sanitária”. Assim, sucedendo José Domingues, o Prefeito Sanitário Rodolfo dos Santos Mascarenhas, determina desapropriações na área central da cidade, alegando estar cumprindo a legislação estadual. Todos as casas  que ficavam na “beira” do Banhado foram demolidas, alargando a antiga Rua de Trás (da Igreja Matriz), fazendo surgir a atual Avenida São José.  Ana Maria e Luiz Laerte afirmam que “Esquadros e marretas trituraram o passado atrasado, empobrecido, tortuoso e estreito daquela que viria a ser uma das principais artérias urbanas de São José dos Campos”. No entanto, os mesmos argumentos utilizados em relação ao Rio de Janeiro, seriam aplicados também a São José dos Campos. A epidemia de tuberculose e outras doenças contagiosas, além da falta de saneamento, foram relacionados à pobreza  e aos “maus costumes” daqueles que não pertenciam à elite. Isso, além da propaganda oficial, era veiculado pela imprensa, que comungava dos mesmos ideais. Não por acaso, as dezenas de casas demolidas na orla do Banhado eram de pessoas “desqualificadas”. Os pesquisadores, Antonio Carlos Oliveira da Silva, Estefânia Knotz Canguçú Fraga, Leonardo Silva Santos e Luciano Maciel Galvão, afirmam que que havia também a publicação de almanaques que divulgavam a ideia do novo nas cidades interioranas do Estado de São paulo, onde o velho era sobrepujado. Essas publicações também impunham padrões de comportamento ou postura, próprios dos grupos dominantes, para as camadas populares. Com isso, segundo os pesquisadores, “a elite letrada utilizava-se da imprensa visando a redefinir o espaço público de São José dos Campos, processo pelo qual muitos espaços populares seriam excluídos”.
              Na prática, São José já era uma cidade sanitária desde a queda do Coronel João Cursino, deposto da prefeitura pela Revolução de 1930. Entre 25 de outubro e 31 de dezembro de 1930, o município foi administrado pela Junta Governativa, na qual incluía o médico Ruy Rodrigues Dória. Essa Junta foi nomeada pelo Tenente João Alberto, Interventor Federal em São Paulo, nomeado por sua vez por Getúlio Vargas. No dia 1º de janeiro de 1931, é nomeado como Prefeito Sanitário o próprio Ruy Dória, que permanece no cargo até março de 1932. Com a recusa do tisiologista Ivan de Souza Lopes, é nomeado José Domingues Vasconcelos, já citado, o qual é substituído por Rodolfo dos Santos Mascarenhas (também citado), que exerce o cargo entre 1933 e 1935. Nesse meio tempo a cidade ainda exercia sua autonomia política, tendo inclusive anexado o Município de Buquira, extinto em 1934. Mas, fazendo coro aos anseios da elite higienista joseense, o Interventor Federal em São Paulo, Armando de Sales Oliveira, baixa, no dia 12 de março de 1935, o Decreto nº 7.007, criando a Estância Hidromineral e Climatérica de São José dos Campos. Segundo Vítor Chúster, isso  teve uma contrapartida, pois a “possiblilidade de reforçar a receita do município era uma verdadeira luz ao final do túnel, claro que isso nos custou a autonomia, o Prefeito seria indicação do governo do Estado”. O Estado criou também um Conselho Consultivo, composto de cinco membros, todos de indicação do Executivo estadual. Em abril de 1935 é nomeado como Prefeito Sanitário, o engenheiro Leovigildo Trindade, que permanece até setembro de 1937. Durante sua gestão ficou claro o intervencionismo estadual no município, com regulamentações de profissões, casas de aluguéis, hotéis e pensões, sendo todas vistoriadas pelas autoridades sanitárias. Foi regulamentado também os serviços de captação e fornecimento de água, além da coleta de esgotos. No dia 20 de setembro de 1937 Leovigildo Trindade é sucedido na Prefeitura Sanitária por Edgar Melo Matos de Castro, que fica no cargo até maio de 1938.
                  Contudo, em novembro de 1937, alegando questões de Segurança Nacional, Getúlio Vargas decreta o Estado Novo, fechando o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais. Os governadores que foram eleitos em 1935 foram depostos, voltando o sistema das interventorias. Junto foram cassados também os prefeitos, mas em São José somente a Câmara foi fechada, pois o prefeito já era indicado, como mencionado. Após a permanência efêmera de alguns interventores, Vargas nomeia Adhemar de Barros para o Executivo paulista, no dia 27 de abril de 1938. No dia 10 de maio de 1938 este nomeia como Prefeito Sanitário de São José dos Campos, o engenheiro Francisco José Longo. Foi durante a gestão deste que a cidade passou por significativas alterações, como a instalação da rede de adução e estação de tratamento de água nos terrenos da antiga estação ferroviária, desativada em 1925 (atualmente entre o Tênis Clube e a Faculdade de Direito da UNIVAP). Outras reformas de alargamento de ruas e construções de praças públicas na região central foram feitas por José Longo. Para tanto vários prédios foram desapropriados, de forma amigável ou por via judicial. Segundo Vítor Chúster, a justificativa alegada “era a de que atendia ao plano urbanístico que previa o alargamento e embelezamento” da cidade. No dia 11 de maio de 1941, Getúlio exonera Adhemar de Barros, acusado de corrupção, da interventoria paulista, nomeando em seu lugar, Fernando de Souza Costa. Este, no dia 08 de janeiro de 1942, nomeia como Prefeito Sanitário, em substituição a José Longo, o engenheiro Pedro Popini Mascarenhas. Novas alterações e melhorias foram realizadas, como o calçamento das ruas do centro, acabando como os problemas de poeira e lama. Para Ana Maria e Luiz Laerte com as mudanças promovidas por Pedro Mascarenhas, “São José passou a ter um traçado pautado pela continuidade espacial, quadras regulares e vias amplas e ortogonais. A gestão de Pedro Mascarenhas ficou marcada pela ampla reforma urbana em São José dos Campos, preparando a cidade para o surto industrial que viria mais tarde. No dia 14 de março de 1947, Pedro Mascarenhas entrega a Prefeitura Sanitária a Edson Blair, que ocupa o cargo interinamente.
               Entrementes, o Estado Novo havia chegado ao fim em 1945; o país aos poucos volta ao ambiente “democrático”, com a realização de novas eleições. Mas São José dos  Campos ainda tem seu prefeito indicado pelo governador do Estado, apesar de haver eleições para a edilidade. Como sinal de novos tempos, em 1949 Buquira reconquista sua autonomia política desvencilhando-se da tutela joseense, alterando o nome para Monteiro Lobato. Somente em 1958 São José recupera sua autonomia, após 23 anos, com a realização de eleições para prefeito. Foi eleito Elmano Ferreira Veloso, que por duas vezes tinha sido Prefeito Sanitário; São José entra em uma nova era, a da industrilaização. Todavia, ainda que há os que discordam, todas as mudanças feitas na cidade valeparaibana, assim como no Rio de Janeiro, foram promovidas pelas elites; e para as elites. Tais mudanças sempre ocorrerão a favor delas, onde os de estrato  social “inferior”, tem que somente contemplar, quando não removidos para bem longe. Ao longo das décadas seguintes, outras alterações foram feitas e, como sempre, pelos mesmos motivos com os mesmos objetivos. Até a próxima.
                                                                                      Eddy Carlos.  

Dicas para consulta.
BONDESAN, Altino. São José em Quatro Tempos. Bentivegna Editora. São Paulo, 1967.
CHÚSTER, Vítor. São José dos Micuíns. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos Campos, 2011.
PAPALI e ZANETTI, Maria Aparecida e Valéria. São José dos Campos. História e Cidade. Vol. IV. Fase Sanatorial de São José dos Campos: Espaço e Doença. UNIVAP. São José dos campos, 2010.
SOUSA e SOARES, Ana Maria Santos e Luiz Laerte. Modernidade e Urbanismo. São José dos Campos. Gráfica Papercrom. São José dos Campos, 2002.


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