sábado, 25 de novembro de 2017

A Questão do Sal.

          A Vila de Santos no final do século XVIII, por Benedito Calixto. Imagem capturada da internet.


                 A Guerra dos Emboabas é um episódio pouquíssimo analisado na História do Brasil,  a qual merecia uma atenção mais detalhada por parte dos historiadores. Quase contemporaneamente ao conflito, ocorrido nos primórdios do século XVIII, um outro fato praticamente desconhecido da nossa historiografia, salvo algumas raras exceções,  ocorreu na então Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, envolvendo as cidades de Jacareí, no Vale do Paraíba; Santos e Itanhaém, no litoral e Salvador, então capital da colônia. O episódio referido ficou conhecido como “revolta do sal” e foi motivada pelas necessidades básicas dos colonos contra os abusos e desmandos dos contratadores que praticavam tais atos, utilizando sempre como argumento que o faziam em nome do rei. Passemos, então para uma análise para tentarmos compreender o fato e seus desdobramentos políticos e econômicos.
                 Durante o período colonial, Portugal implantou no Brasil um sistema econômico em que a colônia só podia comercializar com a metrópole. Conhecido como Monopólio Colonial, tal sistema consistia em adquirir da colônia mercadoria a baixíssimo preço imposto pela metrópole. Em contrapartida, a colônia era obrigada a adquirir produtos portugueses a preços elevadíssimos. Apesar da enorme discrepância, alguns autores denominam essa fase de “Pacto Colonial”, onde a vantagem maior, obviamente ficava com Portugal, causando descontentamento e motivos de revolta entre a população da colônia lusitana. Como atividades econômicas monopolizadas pela metrópole podemos citar a extração do pau-brasil, a cana-de-açúcar, a extração de ouro e diamantes; esta muito mais controlada com a criação do Distrito Diamantino, e o comércio do sal, entre outras. Para cada setor econômico em que se aplicava o monopólio, a Coroa estabelecia contratos de administração a individuais, os quais eram conhecidos como contratadores e deviam prestar contas da atividade econômica às autoridades lusas. Como mencionamos anteriormente, muito desses contratadores cometiam abusos, explorando a miséria da população, em nome do rei, cobrando preços e impostos extorsivos. Geralmente, a Coroa “fechava” os olhos para esses abusos, desde que o Erário Real não fosse lesado ou causasse convulsões sociais. Em casos extremos, os contratadores não só perdiam o cargo, como poderiam ser presos, processados e ter os bens confiscados, como ocorreu com João Fernandes de Oliveira, contratador dos diamantes, Senhor do Arraial do Tijuco (Diamantina). Envolvido com Xica da Silva e fraudando os cofres reais em prol da ex-escrava, João Fernandes foi removido do cargo por ordem expressa de Sebastião José de Carvalho e Melo o poderoso Marquês de Pombal, ministro do Rei Dom José I.
                    Entretanto, de todos os produtos monopolizados e vendidos a preços altamente inflacionados, o sal era o que a população e animais, como o gado bovino, mais necessitavam. O historiador Cláudio Bertolli Filho ao analisar a miséria e condições de saúde dos paulistas no século XVIII, afirma que a ausência do cloreto de sódio na alimentação dos colonos causava uma série de distúrbios fisiológicos. Ora, sabemos que o sal de cozinha atua na elaboração de ácidos que compõem o suco gástrico no organismo, além de regular a função osmótica das células e do sangue. A falta de tal elemento causa fadiga, náuseas e câimbras musculares. Como afirmamos, o sal é imprescindível para a alimentação do gado, mais precisamente, os bovinos que sentem mais ainda a falta do elemento. É por isso que nas fazendas pecuaristas existem vários cochos de sal para o gado lamber periodicamente, suprindo suas necessidades Por outro lado, os índios que não conheciam o sal, extraíam o cloreto de sódio mediante a incineração de determinados vegetais halóficos, por sua vez raros na Capitania e desconhecidos dos colonos.
                     Entrementes, o sal que inicialmente era extraído nas margens do Rio São Francisco e do litoral do Maranhão ao Rio de Janeiro, teve sua atividade proibida para não concorrer com a indústria salineira da metrópole. A Coroa reservava a si a tarefa de fornecer sal para a colônia pelo preço por ela taxado. Para a Capitania de São Paulo, o sal enviado ficava armazenado em um galpão régio na Vila de Santos para daí abastecer as vilas do litoral, planalto e serra acima, região que compreendia o Vale do Paraíba. Dependiam do sal estocado em Santos, as Vilas de Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá, geralmente dispondo de parcos recursos para a aquisição da preciosa substância. Para termos uma ideia do que ocorria na Capitania naquela época, lembremos que a Coroa havia taxado o sal em 480 réis o alqueire (antiga medida equivalente a 13, 8 litros), mais 200 réis de imposto para a Real Fazenda. Em 1710, a Vila de Santos havia sido transformada por Portugal numa praça forte, dispondo de quatro companhias de infantaria paga. Governava, então, a praça forte de Santos o mestre de campo José Monteiro de Matos e para sustentar a tropa, o governo luso elevou o preço do alqueire do sal pra 1$280, na mão de contratadores reinóis, além de dobrar o valor do imposto da Real Fazenda. Ora, para os habitantes do planalto e a região do Vale do Paraíba, os contratadores cobravam a exorbitante quantia de 20$000, causando miséria e a carestia do produto até mesmo para os fazendeiros mais abastados que viam o gado padecer lentamente até a morte. O pesquisador e industrial Roberto Cochrane Simonsen, em obra conceituadíssima, afirma que na região aurífera o preço do sal, devido à escassez, podia chegar até 500$000. Mas para o Vale do Paraíba, o preço cobrado pelos contratadores de Santos já era mais do que insuportável. No mesmo ano de 1710, o bandeirante Bartolomeu Fernandes de Faria, riquíssimo fazendeiro de Jacareí e possuidor de vastas propriedades em Mogi das Cruzes e Itanhaém decidiu buscar pessoalmente o sal em Santos. Mesmo tendo acumulado imensa fortuna na região das minas, o preço cobrado pelo sal minava as finanças do fazendeiro e de outros potentados da região. Comandando um pequeno exército de aproximadamente 300 valeparaibanos, Bartolomeu parte de Jacareí e assalta a praça forte de Santos, obrigando os contratadores e o Provedor da Real Fazenda a vender o sal pelo preço taxado, além de cobrar o imposto devido, diante da população boquiaberta. Apesar de pagar pelo produto, as autoridades coloniais consideraram uma afronta a atitude do bando de Bartolomeu, que passou a ser perseguido pela infantaria aquartelada em Santos. Abarrotado de sal, o grupo destruiu pontes e bloqueou trilhas para retardar o avanço dos soldados e após galgar a Serra do Paranapiacaba atinge o Vale do Paraíba, chegando a Jacareí, que durante anos repeliu ataques das autoridades, transformando-se num baluarte inexpugnável.
               Todavia, aprisionar o líder da “revolta do sal”, tornou-se ponto de honra para as autoridades. Em carta datada de 4 de novembro de 1710, o Desembargador Sindicante Antônio da Cunha Sotto Mayor relata a proeza do régulo de Jacareí. Na carta régia de 8 de abril de 1712, o rei ordena a prisão do líder do motim. Em outra carta régia, de 17 de novembro de 1713, D. João V, ordena ao Desembargador André Leitão de Melo a prisão de Faria, sem sucesso. Em 6 de agosto de 1718, o governador da praça de Santos informa Sua Majestade que conseguiu prender o régulo de Jacareí e quatro de seus companheiros na Vila de Itanhaém, onde Bartolomeu estava em companhia de familiares. Preso o líder da revolta, foi ele logo remetido para Salvador, onde morreu pouco depois, devido à idade avançada, doenças e maus tratos na prisão. Em um romance publicado em 1948, Afonso Schmidt retrata o episódio do sal, enaltecendo  a figura de Bartolomeu Fernandes de Faria, como bravo bandeirante e justiceiro popular. Segundo o romancista, o nome de Faria “foi repetido de boca em boca por toda a Capitania de São Paulo e Minas, sempre com agrado e simpatia”. A repressão e a consequente prisão do régulo de Jacareí, embora tardias, motivou os valeparaibanos a encontrarem novas formas de adquirirem o tão precioso e necessitado produto. A alternativa encontrada foi se abastecerem no Rio de Janeiro, onde o sal era distribuído sob a supervisão de representantes do governo luso, numa tentativa de coibir novas fraudes.
                  A carência do sal motivou outros levantes, como o motim do Maneta em 1711 na Bahia, quase simultaneamente com o ataque a Santos.  Pelos mesmos motivos, descritos anteriormente e a elevação de impostos, a população de Salvador, juntamente com soldados e marinheiros depredaram  casas de portugueses e saquearam estabelecimentos comerciais, liderados por João Figueiredo Costa, conhecido como o “Maneta”. Outras regiões como o Pará e o Maranhão, também sofreram com a falta de sal. Durante todo o século XVIII, a colônia sofreu com a ausência do produto e os constantes abusos dos contratadores, apesar de algumas tentativas oficiais de regulamentar a distribuição. Em 1725, D. Rodrigo César de Menezes, Governador da Capitania de São Paulo reclama contra os contratadores sobre a má execução dos contratos do sal. Em 1734, o próprio juiz-de-fora  em Santos  determinou a alguns oficiais de justiça que se abrisse os depósitos e vendesse sal para a população pelo preço legal. Curiosamente, dessa vez, a Coroa não reprovou a atitude, como fizera anos antes com Bartolomeu Fernandes Faria. Para por fim aos desmandos foi proposto que a Câmara de São Paulo, adquirisse o estoque de sal e o revendesse, para fiscalizar a distribuição e fiscalização dos contatos do sal. Aos poucos, a Coroa vai cedendo e autoriza algumas capitanias,  como a de Pernambuco e Rio Grande a extrair e distribuir sal em suas áreas, flexibilizando dessa forma o monopólio real. Somente com os alvarás régios de 24 de abril de 1801, 7 e 27 de abril de 1802 e 30 de  setembro de 1803, o governo português  abole, definitivamente o monopólio do sal, porque a Coroa considerou-o como vexatório e cruel e, por configurar como artigo de primeira necessidade. A autoridade lusa levou mais de 150 anos para chegar a tal conclusão. De acordo com Roberto Simonsen, a longa duração do monopólio e as crises e  conflitos advindos “refletem vários aspectos da evolução econômica da Colônia”. Como dissemos no início deste artigo, a “revolta do sal”, ou melhor, a carestia do sal na História do Brasil é rarissimamente estudada e, muitos de nós, desconhecendo os acontecimentos, nem imaginamos quantos sofrimentos nossos antepassados passaram pela falta do sal. Hoje, é um artigo comercial, facilmente encontrado e, apesar de períodos de inflação, seu preço nem se compara com o de épocas remotas. Até a próxima.
                                                                                      Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Documentos manuscritos avulsos da
Capitania de São Paulo.  Catálogo 2. Imprensa Oficial/EDUSC/FAPESP. São
Paulo, 1995.
BERTOLLI FILHO, Cláudio. Vale do Paraíba: Saúde e Sociedade. UNIVAP.
São José dos Campos, 1999.
SCHMIDT, Afonso. O Assalto. Clube do Livro. São Paulo, 1948.
SIMONSEN, Roberto Cochrane. História Econômica do Brasil. Coleção
Brasliana, Vol. 10. Cia. Editora Nacional. São Paulo, 1978.
LENCIONI, Célio. Jacareí: Viajantes e Cronistas. Editora Santuário. Aparecida,
1991.
RODRIGUES, José Wasth. Tropas Paulistas de Outrora. Coleção Paulística,
Vol. X. Governo do Estado de São Paulo. São Paulo, 1978.


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