sábado, 26 de agosto de 2017

Os Herdeiros de Confúcio.



    
               Entre os séculos XV e XVI, Portugal ao buscar uma nova rota marítima para as Índias, acabou se transformando em um poderoso império ultramarino. Com o bloqueio de Constantinopla (hoje Istambul), pelos turcos do Império Otomano, os países ibéricos, ávidos pelas especiarias do Oriente, não medem “esforços” para ter acesso direto às tão cobiçadas mercadorias, como pimenta, nóz-moscada, orégano, entre outras. Como já sabemos, a Espanha optou por seguir a orientação de Cristóvão Colombo, rumando sentido Ocidente, onde se depara com um novo Continente. Portugal, por sua vez, inicia o contorno da África, com a conquista de Cêuta em 1415, atingindo o objetivo final em 1498, com Vasco da Gama ao desembarcar em Calicute, nas Índias. Em 1500, em uma nova expedição às Índias, Cabral “erra” a rota e “descobre” o Brasil, tomando posse da terra em nome do Rei Dom Manuel, o Venturoso.
                 Todavia, a garantia de acesso direto às especiarias nas Índias não foi suficiente para os portugueses. Mesmo fixando presença nas cidades de Goa, Diu e Cochim, além de Calicute, a expansão marítima pelo Oceano Índico e Pacífico prosseguiu. Em 1511, a conquista de Málaca, no Sudeste Asiático, abre espaço para o estabelecimento de feitorias na Indochina (hoje parcialmente ocupada pela Indonésia). No ano de 1520, os lusitanos são recebidos em Pequim pelos representantes do governo chinês, os quais permitem o comércio com a cidade de Cantão. Ganhando a simpatia das autoridades, os portugueses fundam uma feitoria e ocupam em 1557 a cidade de Macau, situada próxima ao Rio Sinkiang. Contando com a indiferença dos chineses, Macau torna-se, então um, enclave português na China, que se torna após a perda de Málaca para os holandeses em 1641, o principal centro fornecedor, controlado pelos lusos, da seda chinesa para os mercados consumidores da Europa e do Império Colonial Português. Porém, após o episódio da União Ibérica e, mesmo com a Restauração, Portugal não conseguiu recuperar o poderio anterior, permanecendo em estado letárgico, mas ainda mantendo algumas posições coloniais, como o Brasil na América, e Angola, Moçambique e Guiné Bissau na África, além da própria Macau na Ásia. A descoberta das regiões auríferas, no Brasil, não significou uma possibilidade de retorno ao velho status, pois o ouro extraído na colônia serviria somente para bancar os gastos supérfluos e o luxo ostensivo da já decadente nobreza portuguesa. Quem se beneficiaria com o metal amarelo, seria a Inglaterra, que com o mesmo, pago pelos lusos pelos produtos manufaturados, investiria na Revolução Industrial. Assim em meados do século XIX, a Inglaterra garante a hegemonia política e econômica, a nível mundial, ocupando o vácuo do poder, deixado por outras nações, inclusive a portuguesa. Até mesmo, os modos e etiquetas britânicos, serviriam para referências aos demais povos. Um desses modos, como por exemplo, era o consumo do chá.
               A presença estrangeira na China foi progressivamente se expandindo, sempre com a instalação de entrepostos comerciais, que arrancavam concessões vantajosas para os ocidentais, de comum acordo com os governantes locais. Aos poucos, ingleses, franceses e norte-americanos foram partilhando o território chinês em zonas de influência, visando garantir e aumentar o lucro dos comerciantes. Quando os ingleses introduziram o ópio entre a população, o imperador reagiu energicamente. Em represália, as canhoneiras inglesas iniciaram a Guerra do Ópio, culminando com a vitória ocidental e a entrega da cidade de Hong Kong para a Inglaterra em 1842. Outras revoltas de cunho nacionalista ocorreriam como a Rebelião dos T’ai P’ing, esta contra o imperador Mandchu por sua subserviência aos ocidentais, entre 1851 e 1864. Contando com a ajuda estrangeira, os rebeldes foram aniquilados. O episódio, praticamente pôs a China milenar “de joelhos”, quando o Japão, influenciado pelo exemplo ocidental, vem requerer a sua participação no espólio. Tais acontecimentos, talvez justifiquem o fechamento da China no Século XX, principalmente após a Revolução Comunista de 1949.                                       
                  Como afirmamos acima, a Inglaterra incentivou o consumo do chá em suas colônias e na Metrópole, tornando esta a bebida dos lordes. O chá, no entanto, era cultivado e consumido pelos chineses há séculos, geralmente em rituais religiosos e sapienciais. Entretanto, bem antes da penetração pelas armas, do território chinês, os europeus já conheciam o chá e sua simbologia aristocrática européia desenvolvida pelos ingleses. Retornando ao inicio do século XIX, observamos que a Europa estava dominada pelas forças napoleônicas. A Inglaterra ainda resistia ao ultimato do Bloqueio Continental e, Portugal estava em situação desesperadora diante de duas potências beligerantes. Como já é de nosso conhecimento, com a ajuda das belonaves britânicas, a corte lusitana foge de Portugal em fins de 1807, chegando ao Rio de Janeiro no início do ano seguinte. O pagamento pela “proteção” dispensada foi a abertura dos portos brasileiros aos ingleses, que passaram a desfrutar de inúmeros privilégios, como por exemplo, pagar menos, ou nenhum imposto do que os próprios portugueses e brasileiros. O Príncipe Regente Dom João, acabou se transformando em uma marionete dos comerciantes britânicos. Dessa forma, adotando o estilo inglês como sinônimo de comportamento digno de um monarca europeu, Dom João, entre vários atos, resolve iniciar o cultivo do chá no Brasil.
                No ano de 1817, o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Karl Friedrich Philipp von Martius, em viagem científica pelo interior do Brasil, mencionam a presença de chineses no Rio de Janeiro. De acordo com os dois cientistas, esses chineses foram trazidos pelo Conde de Linhares, entre 1808 e 1812, os quais eram experientes no cultivo e preparo do chá; oriundos do interior do seu país e não da zona costeira asiática. Os chineses avistados por Spix e Martius cultivavam o chá no Jardim Botânico, mas a maioria habitava os “arredores da Fazenda Real, de Santa Cruz”, antiga propriedade dos padres da Companhia de Jesus, confiscada pelo Marquês de Pombal no século XVIII, após a expulsão dos religiosos. No Jardim Botânico, os chineses “sob a direção do Cel. Abreu, são empregados no cuidado dos arbustos de chá e na colheita e preparo das folhas. A colheita é feita três vezes por ano, as folhas são levadas a fornos de barro, de calor pouco intenso, onde secam e são enroladas”. O sabor da bebida, no entanto, segundo a narrativa de Spix e Martius, estava longe de ser tão fino e aguçado como o feito na própria China, pois “era um tanto áspero e terroso”. A mesma opinião é proferida pelo pintor alemão Johann Moritz Rugendas em 1825. Nesse ano, Rugendas afirma que a plantação de chá no Jardim Botânico, às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, continha aproximadamente 6.000 arbustos. Porém, o chá propriamente dito, não tinha “o gosto requintado e aromático das espécies de primeira qualidade da China; ao contrário, tem ele um gosto acre de terra”. Além da péssima aclimatação, que seria uma das causas, Rugendas aponta o despreparo e desinteresse dos próprios chineses pela cultura do chá em terras estrangeiras. Segundo a sua narrativa, a colônia chinesa próxima à lagoa Rodrigo de Freitas e da Fazenda Santa Cruz, agrupava em torno de trezentas pessoas, e “nesse número poucos há que se dediquem à cultura do chá; muitos são mascates, outros cozinheiros. Os chineses se adaptam muito bem ao clima do Brasil e muitos deles aí se casam”. Citando J.D. de Almeida Prado, Luís de Almeida Nogueira Porto afirma que já no ano de 1820, alguns chineses optaram por plantar jasmim e hortelã pimenta nos quintais de suas residências. Para o autor citado por Nogueira Porto, o cultivo do chá apresentou um resultado medíocre, pois “os agricultores importados tinham trazido consigo, entre outros, o vício do ópio e abandonaram Santa Cruz para vender bugigangas nas Ruas do Rio ou preparar foguetes segundo a secular arte chinesa, para acudir ao grande consumo nas festas religiosas fluminenses”.
               Neste ínterim, o cultivo da rubiácea começava a ganhar espaço e a avançar sobre as plagas valeparaibanas, fluminense e paulista. Antes de se consolidar como a capital do café no Vale do Paraíba paulista, a Vila do Bananal ainda tinha sua atenção voltada para o cultivo do chá, talvez influenciada pelos modos “civilizatórios” ingleses, que motivaram Dom João VI alguns anos antes. Em 16 de janeiro de 1835, a Câmara Municipal de Bananal faz uma representação à Assembléia Legislativa de São Paulo, solicitando a vinda de imigrantes chineses, principalmente coolies, para implantar na Vila o cultivo e preparo do chá. Segundo Luís de Almeida Nogueira Porto, o dicionário Webster’s define a palavra “coolie” como trabalhador apto para serviços de baixa qualificação, ou carregador, enquanto que, na própria China, significava aquele que recebia um salário de subsistência. Os ingleses teriam explorado em larga escala o uso dos coolies em suas diversas colônias. Ou seja, o Brasil, mesmo sob o domínio português ou independente, teve uma “boa escola” com a influência inglesa.
                Entretanto, também dessa vez, o cultivo do chá não apresentou os resultados esperados, redundando em fracasso total a iniciativa da Câmara Municipal. Em vista disso, as autoridades ainda tentaram adaptá-los nas culturas de arroz e de anil, também fracassadas; nem mesmo com o café, que despontava como atividade econômica hegemônica, não deu certo. Consequentemente, os chineses em Bananal acabaram por se adaptarem à população local, exercendo outros ofícios como o de fogueteiros, já mencionado, e “ocupando-se com atividades urbanas de lavanderias, hospedarias, casas de pasto, pequeno comércio”, etc; segundo Nogueira Porto. Apesar de incorporarem nomes portugueses aos seus, os chineses mantinham intacta a sua cultura e modos adquiridos na terra natal. Podemos citar, por exemplo, o apreço pelas roupas largas e folgadas, feitas de seda e tecido fino, o uso dos cabelos amarrados em longas tranças, principalmente pelos homens, e também na alimentação diferente da do brasileiro. De acordo com o saudoso e ilustre historiador Agostinho Ramos, a mesa dos chineses, “era farta e em suas relações com a família eram eles extremamente bondosos, nem mesmo aplicando punições severas aos filhos. De seu cardápio constavam principalmente arroz sem sal, camarão, peixe, couve salgada e um prato nacional ao qual chamavam de ‘chachau’, qualquer coisa parecida com o nosso ‘ensopado’”. Outra atividade exercida pelos “Chins”, como eram também conhecidos, era o de vender água na cidade, a qual ainda não era encanada. Porém, tanto Agostinho Ramos como Luís de Almeida Nogueira Porto afirmam que os chineses em Bananal tinham afeição pelos jogos de azar e que mais de 70% ainda fumavam o ópio. Apesar de não confirmado, os chineses, que eram discriminados pelos brasileiros, também por sua vez desprezavam os negros e mulatos de Bananal, livres ou escravos, apesar de manter contato com os últimos. Segundo Agostinho Ramos, parece que eles “não gostavam de relações com mulheres de cor preta, não sendo conhecido nenhum caso seu com as escravas, embora também se diga que, em relação aos escravos, os chineses aconselhavam tirar coisas dos patrões para lhes vender”. A mesma opinião é partilhada por Luís de Almeida Nogueira Porto, que afirma que, embora “permanecessem em regra solteiros, não se relacionavam com as negras. Consta que incitavam escravos a roubar dos patrões para deles comprar os objetos roubados”. Porém, a suspeita de que os chineses incentivavam os escravos para furtar seus senhores, carece de base histórica; não foi realizada até, então, uma pesquisa documental para comprovar ou não a prática ilícita.
                 No entanto, como afirma Nogueira Porto, a maioria dos chineses era celibatária, apesar de deixar muitos filhos em Bananal após a morte. Alguns chineses, porém se converteram à fé cristã, como é o caso de João Teles de Araújo. Em seu testamento, datado de 1850, ele afirma que é “cristão e nessa religião desejo morrer; sou filho de Tam-Sá e de Aran, natural de Macao pertencente à China. Declaro que fui casado segundo o rito chinês com Ambea de cujo casamento não tive filhos, deixando-a quando para o Brasil vim”. De acordo com o autor citado, esse chinês chegou a ter escravos em Bananal. Outro chinês que se tornou católico foi o Chim João Miguel Pereira, casado com Fortunata Leme da Silva, sem filhos. Esse foi um dos que chegaram à Fazenda Santa Cruz, pois em seu testamento, feito em 1865, declara ter vindo para o Brasil em 1808. Outros chineses católicos em Bananal foram José Caetano Chim, casado com Maria da Conceição, sem filhos, conforme testamento de 1863; o Chim João Francisco, nascido em Macau, filho de Akon e Loubá, solteiro e sem filhos, como descrito em testamento de 1861, segundo a análise de Luís de Almeida Nogueira Porto. Porém, o testamento de João Teles de Araújo, merece destaque, pois nota-se uma postura nacionalista do testador ao afirmar que Macau pertence à China. O que podemos deduzir é que, mesmo em terras estrangeiras, no caso o Brasil, que fôra colônia portuguesa, o chinês parece não aceitar que a sua cidade natal, mesmo em território da China, pertencesse à Portugal, o que ocorria, à época, quase trezentos anos; Macau ainda ficaria alienada da China por mais de um século, como veremos adiante.
                  Entrementes, apesar dos traços físicos e da indumentária, os chineses eram conhecidos por epítetos, sendo que alguns estavam relacionados com as províncias e cidades em que nasceram. Alguns dos mais conhecidos chineses em Bananal foram: João Bonito, China Periquito, Payé Cantão, China Patacão, Tição Pequim, Iayfanô Trinscá, Cachamuye, Lyão Chin. Os que se destacaram na vida urbana da cidade foram: o China Coloyô, proprietário de um hotel importante no século XIX, o que, segundo Agostinho Ramos, pode ter sido o “Hotel Maranguape” mais tarde; o China Cachimbo, conhecido vendedor de pães pelas fazendas; o China Mateus e o China João Abanador, entre outros. Novamente segundo Agostinho Ramos, um dos chineses que mais se adaptaram aos costumes brasileiros, principalmente bananalenses, foi o China Raymundo. Mesmo adotando o nome de João Raymundo da Silva, esse chinês não abdicou de sua cultura e costumes orientais. Um de seus descendentes, não se sabe qual a ligação, foi Manoel Raymundo da Silva. Conhecidíssimo leiloeiro das festas do Bom Jesus no início do século XX, Manoel por ser bastante popular em Bananal, devido às anedotas que contava para a população, vestia-se com a indumentária nacional chinesa, costume herdado dos antepassados, mesmo tendo nascido no Brasil. Para Agostinho Ramos, “foi o maior e melhor leiloeiro que Bananal já possuiu”. Por causa das calças largas, o povo o apelidou de “Manoel Ceroulão”. Longe de se ofender, Manoel Ceroulão conquistava a simpatia e admiração da população de Bananal. Tal opinião sobre Manoel Ceroulão é unânime entre Agostinho Ramos, Luís de Almeida Nogueira Porto e também Plínio Graça.
                  Os chineses que vieram para o Brasil no século XIX deixaram um legado importante para o país, sobretudo no Rio de Janeiro e Bananal. Seus descendentes espalharam-se pelo território nacional, sendo que muitos ocuparam vários cargos na administração pública. Não sabemos se alguns, ou descendentes, retornaram para a China, mas atualmente, existem diversas colônias chinesas, sobretudo no Estado de São Paulo, principalmente na capital. Atuam em setores como lavanderias e pastelarias; recentemente os novos imigrantes estão atuando na indústria, como é o caso de uma automobilística sediada na cidade valeparaibana de Jacareí no alvorecer do século XXI. A China, após a Revolução Comunista, permaneceu fechada ao resto do mundo por quase vinte anos. Atualmente como potência econômica e militar emergente, requer a participação do jogo político internacional, bem diferente da época das feitorias e das intervenções ocidentais ao longo de quase quatrocentos anos. Em 1997, a Inglaterra devolveu a soberania de Hong Kong à China, mesmo mantendo certa autonomia adquirida sob o domínio britânico. O sistema configura-se na fórmula “Um país, dois sistemas”, pois Hong Kong conseguiu manter frente ao Partido Comunista Chinês o sistema capitalista. No ano de 1999, finalmente a cidade de Macau era reincorporada à China, nos mesmos moldes que a ex-possessão inglesa. A China rompe o último “elo” com a antiga potência mercantilista ibérica, embora há muito decadente. Os herdeiros de Confúcio, haviam, pelo menos em tese, completado o resgate de sua honra e do seu orgulho nacional. Até a próxima. 

                                                                                                                Eddy Carlos.                                                                                                                                       
                                                                                                                                                                                                                                                    
                                                                                      

Dicas para consulta.

ARRUDA E PILETTI, José Jobson de A. e Nelson. Toda a História. Editora Ática. São Paulo, 1995.

GRAÇA, Plínio (Org.). Estância Turística e Ecológica de Bananal. Terra dos Barões do Café. Ed. Noovha América. São Paulo, 2006.

PORTO, Luís de Almeida Nogueira. Bananal no Império. Ebal. Rio de Janeiro, 1994.

SPIX e MARTIUS, Johann Baptist von e Karl Friederich Philipp von. Viagem pelo Brasil.
Volume único. Melhoramentos. São Paulo, 1976.

RAMOS, Agostinho. Pequena História do Bananal. Imprensa Oficial. São Paulo, 1978.

RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem Pitoresca Através do Brasil. Círculo do Livro. São Paulo, 1980.


Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br


           

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