Imagem extraída da internet. Facebook/Resgatando São José dos Campos/Edu Santos.
Em artigo anterior abordamos a
questão de uma das doenças mais contagiosas do século XX: a tísica, também
conhecida como tuberculose. Causada pelo Bacilo de Koch, essa doença ceifou
muitas vidas no Brasil; no caso específico, no Vale do Paraíba, Estado de São
Paulo. Até ser desenvolvida a cirurgia toráxica, a tísica marcou muitas
gerações no Vale do Paraíba, principalmente nas cidades de São José dos Campos
e Campos do Jordão. À primeira eram encaminhados os enfermos sem recursos, ao
passo que os mais aquinhoados seguiam para a Serra da Mantiqueira, onde os ares
seriam mais benéficos aos pulmões. Até uma ferrovia foi construída para melhor
atendimento aos tísicos de Campos do Jordão, partindo de Pindamonhangaba. Ao
mesmo tempo, os de São José dos Campos eram atendidos nas inúmeras pensões
existentes na região central da cidade. Ocasionava, no entanto, que os próprios
donos dessas pensões contraíssem a moléstia.
A inauguração do Sanatório Vicentina Aranha, em 1924, coincide com o
início da fase em que as autoridades passam a se “preocupar” diante do quadro
crítico social causado pelos micuíns. Depois desse, outros estabelecimentos
sanatoriais surgem na cidade e, em 1935, o Governo Estadual cria a Estância
Hidromineral e Climática em São José. Isso possibilitou com que o Município
recebesse um “reforço” em sua dotação orçamentária. Com isso verbas vultosas
eram destinadas ao controle higiênico, visando principalmente o combate à
tuberculose. Em contrapartida a cidade perde sua autonomia política, perdendo o
direito de eleger os prefeitos, agora escolhidos pelo Executivo Estadual. Como
a maioria desses prefeitos indicados eram médicos infectologistas, os mesmo
ficaram conhecidos como “Prefeitos Sanitários”, e a cidade como “Prefeitura
Sanitária”. Com o incentivo do Governo
Estadual, a tuberculose acabou funcionando como uma “fonte de renda” para os
cofres municipais, chegando ao ponto do Prefeito Sanitário, Ruy Rodrigues
Dória, afirmar que “São José não precisa de indústrias. Isso é para Taubaté e
Jacareí. Precisamos é de doentes”. Sendo curados ou não os enfermos, o fato é
que as verbas excepcionais afluíram para a cidade. E a quantidade de
sanatórios vai aumentando; em 1938 a Administração Municipal divide a cidade em
quatro zonas: a residencial, rural, industrial e sanatorial (essa bem afastada
do centro). Entidades públicas, privadas
e religiosas também instalam seus respectivos
sanatórios, como o “Nossa Senhora Auxiliadora” (católico), “Vila Samaritana”
(protestante) e o Ezra, da Sociedade Israelita (judeu). Porém, antes de
prosseguirmos, torna-se necessário uma abordagem paralela.
Desde os tempos bíblicos, os
judeus possuem a característica ímpar de não se “misturarem” com outros povos.
Com isso, mantém preservados seus costumes, tradições culturais e sua religião;
por isso e, também por motivos religiosos e econômicos, sempre foram
perseguidos ao longo da História. Descendentes de Isaac, filho de Abraão, os
judeus representam uma parcela do antigo povo hebreu, também chamados de
israelitas. Constituíndo-se como nação, fundaram o Reino de Israel, cujo ápice
ocorreu durante os reinados de Daví e Salomão. Após a Diáspora, inciada em 135
d.C., com a última derrota dos zelotes contra Roma, os judeus foram dispersados
pelo mundo. Como afirmado, em qualquer parte onde fossem se estabelecer, eram
perseguidos, principalmente devido ao estigma de assassinos de Jesus Cristo. Em
meados da época Medieval, em uma Europa católica, os judeus foram perseguidos e
muitas vezes mortos, acusados da prática da usura. Não raro eram condenados
pelo Tribunal do Santo Ofício e queimados na fogueira da Inquisição. Para
fugir dessas e de outras perseguições
constantes, muitos fingiam converter-se ao catolicismo, sendo por isso chamados
de “cristãos-novos”. Junto disso aproveitavam ainda para embarcar nos navios e
tentar a vida nos trópicos, na época da colonização portuguesa no Brasil, onde
longe da Inquisição, prosseguiam com suas práticas e costumes tradicionais.
Mesmo assim, alguns eram capturados no Brasil, durante as “Visitações do Santo
Ofício”, pois eram delatados por vizinhos ou mero desafetos. Mesmo convivendo
com esses perigos constantes, a comunidade judaica no Brasil superou as dificuldades e prosperou, mas
assim como qualquer grupo social, não ficou imune à algumas doenças
infecto-contagiosas, como a causada pleo Bacilo de Koch. Isso ocorria em
qualquer parte onde houvesse a manifestação da moléstia, mas tal se verificou
com certa predominância no Estado de São Paulo e no Município de São José dos
Campos. Paralelamente, no mesmo ano em que é criada a Estância Hidromineral e
Climática em São José dos Campos, na Alemanha, Adolph Hítler, o Führer,
promulga a Constituição de Nuremberg, a qual declara a exclusão dos judeus da
vida sócio-político-econômica do III Reich, rotulando-os como “uma sub-raça”. E
assim, no Velho Mundo, as perseguições prosseguem, intensificando-se no curso
da Segunda Guerra Mundial, cujo clímax foi a Solução Final, idealizada por
Adolph Eichmann, e o Holocausto.
Apesar de manter relações
diplomáticas com a Alemanha nazista até 1942, o Governo Vargas, até onde
sabemos, não adotou uma política de perseguição e extermínio contra os judeus
no Brasil. A repressão política esteve restrita aos movimento sociais
esquerdistas, principalmente após o episódio da Intentona Comunista, de
novembro de 1935, deflagrada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), liderada
por Luís Carlos Prestes. Dessa forma, seguindo o exemplo de outras entidades,
conforme citado anteriormente, a Sociedade Israelita de Beneficência “Ezra”,
obtém a autorização da Prefeitura Sanitária para a instalação de um sanatório,
exclusivo para os tísicos judeus em São José dos Campos. Segundo a análise das
historiadoras, Estefânia Knotz Canguçú Fraga e Zuleika Stefânia Sabino Roque,
em 1935 a Sociedade Israelita Ezra adquiriu uma antiga fazenda, em São José dos
Campos, do Sr. Vicente de Barros, e logo inciou as obras da construção,
inaugurando o sanatório em 1936. Na realidade, tratava-se de uma propriedade de
médio porte, de 46,5 mil metros quadrados (quase dois alqueires do tipo
paulista). A implantação desse sanatório tinha como finalidade atender a
comunidade judaica, que na cidade de São Paulo, passava de 40 mil pessoas. O
projeto arquitetônico foi elaborado pleo Engenheiro Civil, Pedro Moreira de
Castro e, segundo a análise da arquiteta Tânia Bittencourt, o sanatório foi
concebido “a partir do sistema pavilhonar. A distribuição dos pavilhões se deu
de forma rígida, seguindo a forma da letra H, consistindo em dois pavilhões
paralelos, destinados às enfermarias masculina e feminina, ligados ortogonalmente
pelos ambientes que formam o centro cirúrgico”. As galerias de cura eram
dotadas de vedação das paredes com tijolos maciços, contendo janelas venezianas
e bandeira em vidro fixo. Em outras áreas, para faciliatar a ventilação
constante, utilizava-se a bandeira articulada. Para garantir uma maior
insolação, o peitoril das janelas foi construído a 0,70m do piso. A portaria do
sanatório estava localizada no vértice da propriedade, onde atualmente estão a
Avenida Adhemar de Barros e a Rua Prudente Meireles de Moraes. A arquiteta
afirma ainda que o necrotério, “situado nos fundos do terreno, colocava-se,
curiosamente, em oposição à portaria, sugerindo a analogia: acesso (esperança
de vida)-saída (fatalidade/morte)”. A capacidade do Sanatório Ezra era de 120 leitos
e o mesmo ainda dispunha, entre outras coisas de: refeitórios separados, para
funcionários e enfermos; despensa, quarto para funcionários e biblioteca. Um
espaço era reservado também para o cultivo de frutas e hortaliças. Através de
uma rede social da internet, Edu Santos destaca que após a inauguração do Ezra,
começaram a chegar a São José dos Campos, judeus de toda a parte do país.
Citando o historiador e diretor do acervo do Arquivo Histórico Judaico
Brasileiro, Roney Cytrynowicz, isso era possível devido ao fato de a Sociedade
Israelita possuir uma ramificação nacional.
Todavia, destinado a atender
somente a comunidade judaica, já no início de seu funcionamento o Ezra passou a
atender também outros pacientes, através de um convênio firmado com o IPASE
(Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado). Roney
Cytrynowicz afirma que a Ezra já cuidava “de doentes tuberculosos,
especialmente imigrantes pobres, encaminhando-os” a vários sanatórios. A busca
por São José dos Campos está relacionada à (falsa) imagem de clima puro da
cidade. Para o médico pneumologista, Douglas Carlyle Belculfiné, Campos do
Jordão e São José dos Campos, eram chamadas pejorativamente de “Tisiópolis” e,
para a segunda vinham os doentes sem recursos, “atraídos pela enganadora
miragem de que estes climas ofereciam o milagre da cura”. A historiadora Ana
Enedi Prince também afirma que, inaugurado em 1936, para atender somente
judeus, o Sanatório Ezra, “começou a estender o atendimento aos outros doentes,
sem distinção”. A ampliação do atendimento era realizado, com a inauguração
festiva de novos setores do sanatório. Analisando o periódico “Correio
Joseense”, nº 170, Vítor Chúster destaca que no dia 15 de novembro de 1936, “às
13:00 horas, foi inaugurado mais um pavilhão para tuberculosos pobres no
Sanatório Ezra”, e que para a
“solemnidade foram convidadas as autoridades estadoaes e municipaes,
representantes da imprensa local e paulistana. A comitiva que vem de São Paulo,
deverá aqui chegar em trem especial que sahirá às 7 horas da Estação do Norte”.
Apesar do ambiente tétrico que exalava enfermidade, os doentes do peito
tratavam, dentro de suas possibilidades, de “levar” a vida. Como deveria
ocorrer em outros sanatórios de São José dos Campos, até mesmo casos de namoros
foram registrados entre os enfermos. Em Trabalho de Conclusão de Curso de
Faculdade, Renata Bello e Cláudia Siqueira afirmam que dentro “do Sanatório
(Ezra) acontecia uns beijinhos, namoro, ninguém tinha medo de se beijar porque...
já tinham a doença, até mesmo existia namoro entre funcionários e pacientes.
(...). Mesmo os compromissados, casados, acabavam se envolvendo com alguém
dali, porque muitas vezes já tinha até acabado o amor pelo marido ou pela
mulher”.
Durante o período de três décadas o Sanatório
Ezra funcionou em São José dos Campos, mantido pela Sociedade Israelita
mencionada ao longo deste artigo, e também com donativos. Mas assim, como
ocorreu com outras instituições análogas, entrou em declínio. Segundo a análise
de Vítor Chúster, o “sanatório encerrou as atividades em 1966, quando houve
substancial queda no número de internações”. Não só com o sanatório judeu, mas
outros foram fechando as portas e, o principal motivo teria sido o
desenvolvimento da cirurgia toráxica, citada no início deste texto; cirurgia
essa que representou para muitos enfermos a esperança de cura total da
moléstia, acompanhada de tratamentos mais avançados e eficazes. Porém, nem tudo
são flores no histórico do sanatório. Altino Bondesan, ao se referir ao
Sanatório Ezra, afirma que o mesmo era “dito de caridade, mas fechado há pouco,
porque o IPASE e outras autarquias denunciaram o convênio há muito existente”.
Segundo o escritor, mesmo recebendo subventos governamentais, a administração estaria
envolvida em irregularidades para manter o atendimento aos pobres. Contudo,
independente do motivo, o fechamento do Ezra encerra simboliza. junto com o
fechamento dos outros sanatórios, as alterações que a cidade de São José dos
Campos estava atravessando. Em 1969, a Prefeitura Municipal desapropria o
imóvel e todas as insstalações são demolidas para a construção do Parque Santos
Dumont. A inauguração ocorreu no dia 23 de outubro de 1971, conduzida pelo
Prefeito Sérgio Sobral de Oliveira, que também era Coronel reformado da
Aeronáutica. Estefânia Knotz Canguçú Fraga e Zuleika Stefãnia Sabino Roque
afirmam que a escolha do nome do parque e a data da inauguração (dia do
aviador), estabeleciam “um vínculo da cidade com a aeronáutica, (...), ao mesmo
tempo, soterrando uma cidade ‘doente’”. Tal faz sentido, pois São José dos
Campos “vivia” o início do surto industrial e, somado a isso, a instalação da
EMBRAER, rotulou a cidade como a “capital do avião”, antes de
ser designada como a “capital do vale”. Assim, os vestígios que lembrassem o
passado sanatorial deveriam ser apagados
da memória coletiva da população. Ainda assim, poucas construções dessa época permanecem na cidade mas, no caso do Ezra, o objetivo foi alcançado,
pois acreditamos que quase 90% da população da cidade ignora que no local do
Parque Santos Dumont, existiu no século XX, uma instituição destinada ao
tratamento de tísicos judeus. Até a próxima.
Eddy
Carlos.
Dicas para consulta.
BITTENCOURT, Tânia. Arquitetura Sanatorial. T.M.M.
Bittencourt. São José dos Campos, 1998.
BONDESAN, Altino. São José em Quatro Tempos. Gráfica
Bentivegna. São Paulo, 1967.
CHÚSTER, Vítor. São José dos Micuíns. Fundação Cultural
Cassiano Ricardo. São José dos campos, 2011.
PAPALI e ZANETTI, Maria Aparecida
e Valéria Regina (Orgs.). São José dos
Campos. História e Cidade. Volume IV. Fase
Sanatorial de São José dos Campos: Espaço e Doença. UNIVAP. São José dos
Campos, 2010.
INTERNET: Facebook/Resgatando São José dos Campos/Edu
Santos.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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