segunda-feira, 3 de julho de 2017

O Sanatório de Isaac.

              Imagem extraída da internet. Facebook/Resgatando São José dos Campos/Edu Santos.
              

            Em artigo anterior abordamos a questão de uma das doenças mais contagiosas do século XX: a tísica, também conhecida como tuberculose. Causada pelo Bacilo de Koch, essa doença ceifou muitas vidas no Brasil; no caso específico, no Vale do Paraíba, Estado de São Paulo. Até ser desenvolvida a cirurgia toráxica, a tísica marcou muitas gerações no Vale do Paraíba, principalmente nas cidades de São José dos Campos e Campos do Jordão. À primeira eram encaminhados os enfermos sem recursos, ao passo que os mais aquinhoados seguiam para a Serra da Mantiqueira, onde os ares seriam mais benéficos aos pulmões. Até uma ferrovia foi construída para melhor atendimento aos tísicos de Campos do Jordão, partindo de Pindamonhangaba. Ao mesmo tempo, os de São José dos Campos eram atendidos nas inúmeras pensões existentes na região central da cidade. Ocasionava, no entanto, que os próprios donos dessas pensões contraíssem a moléstia.  A inauguração do Sanatório Vicentina Aranha, em 1924, coincide com o início da fase em que as autoridades passam a se “preocupar” diante do quadro crítico social causado pelos micuíns. Depois desse, outros estabelecimentos sanatoriais surgem na cidade e, em 1935, o Governo Estadual cria a Estância Hidromineral e Climática em São José. Isso possibilitou com que o Município recebesse um “reforço” em sua dotação orçamentária. Com isso verbas vultosas eram destinadas ao controle higiênico, visando principalmente o combate à tuberculose. Em contrapartida a cidade perde sua autonomia política, perdendo o direito de eleger os prefeitos, agora escolhidos pelo Executivo Estadual. Como a maioria desses prefeitos indicados eram médicos infectologistas, os mesmo ficaram conhecidos como “Prefeitos Sanitários”, e a cidade como “Prefeitura Sanitária”.  Com o incentivo do Governo Estadual, a tuberculose acabou funcionando como uma “fonte de renda” para os cofres municipais, chegando ao ponto do Prefeito Sanitário, Ruy Rodrigues Dória, afirmar que “São José não precisa de indústrias. Isso é para Taubaté e Jacareí. Precisamos é de doentes”. Sendo curados ou não os enfermos, o fato é que as verbas excepcionais afluíram para a cidade. E a quantidade de sanatórios vai aumentando; em 1938 a Administração Municipal divide a cidade em quatro zonas: a residencial, rural, industrial e sanatorial (essa bem afastada do centro). Entidades públicas,  privadas e religiosas também  instalam seus respectivos sanatórios, como o “Nossa Senhora Auxiliadora” (católico), “Vila Samaritana” (protestante) e o Ezra, da Sociedade Israelita (judeu). Porém, antes de prosseguirmos, torna-se necessário uma abordagem paralela.
                  Desde os tempos bíblicos, os judeus possuem a característica ímpar de não se “misturarem” com outros povos. Com isso, mantém preservados seus costumes, tradições culturais e sua religião; por isso e, também por motivos religiosos e econômicos, sempre foram perseguidos ao longo da História. Descendentes de Isaac, filho de Abraão, os judeus representam uma parcela do antigo povo hebreu, também chamados de israelitas. Constituíndo-se como nação, fundaram o Reino de Israel, cujo ápice ocorreu durante os reinados de Daví e Salomão. Após a Diáspora, inciada em 135 d.C., com a última derrota dos zelotes contra Roma, os judeus foram dispersados pelo mundo. Como afirmado, em qualquer parte onde fossem se estabelecer, eram perseguidos, principalmente devido ao estigma de assassinos de Jesus Cristo. Em meados da época Medieval, em uma Europa católica, os judeus foram perseguidos e muitas vezes mortos, acusados da prática da usura. Não raro eram condenados pelo Tribunal do Santo Ofício e queimados na fogueira da Inquisição. Para fugir dessas  e de outras perseguições constantes, muitos fingiam converter-se ao catolicismo, sendo por isso chamados de “cristãos-novos”. Junto disso aproveitavam ainda para embarcar nos navios e tentar a vida nos trópicos, na época da colonização portuguesa no Brasil, onde longe da Inquisição, prosseguiam com suas práticas e costumes tradicionais. Mesmo assim, alguns eram capturados no Brasil, durante as “Visitações do Santo Ofício”, pois eram delatados por vizinhos ou mero desafetos. Mesmo convivendo com esses perigos constantes, a comunidade judaica no Brasil  superou as dificuldades e prosperou, mas assim como qualquer grupo social, não ficou imune à algumas doenças infecto-contagiosas, como a causada pleo Bacilo de Koch. Isso ocorria em qualquer parte onde houvesse a manifestação da moléstia, mas tal se verificou com certa predominância no Estado de São Paulo e no Município de São José dos Campos. Paralelamente, no mesmo ano em que é criada a Estância Hidromineral e Climática em São José dos Campos, na Alemanha, Adolph Hítler, o Führer, promulga a Constituição de Nuremberg, a qual declara a exclusão dos judeus da vida sócio-político-econômica do III Reich, rotulando-os como “uma sub-raça”. E assim, no Velho Mundo, as perseguições prosseguem, intensificando-se no curso da Segunda Guerra Mundial, cujo clímax foi a Solução Final, idealizada por Adolph Eichmann, e o Holocausto.  
                  Apesar de manter relações diplomáticas com a Alemanha nazista até 1942, o Governo Vargas, até onde sabemos, não adotou uma política de perseguição e extermínio contra os judeus no Brasil. A repressão política esteve restrita aos movimento sociais esquerdistas, principalmente após o episódio da Intentona Comunista, de novembro de 1935, deflagrada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), liderada por Luís Carlos Prestes. Dessa forma, seguindo o exemplo de outras entidades, conforme citado anteriormente, a Sociedade Israelita de Beneficência “Ezra”, obtém a autorização da Prefeitura Sanitária para a instalação de um sanatório, exclusivo para os tísicos judeus em São José dos Campos. Segundo a análise das historiadoras, Estefânia Knotz Canguçú Fraga e Zuleika Stefânia Sabino Roque, em 1935 a Sociedade Israelita Ezra adquiriu uma antiga fazenda, em São José dos Campos, do Sr. Vicente de Barros, e logo inciou as obras da construção, inaugurando o sanatório em 1936. Na realidade, tratava-se de uma propriedade de médio porte, de 46,5 mil metros quadrados (quase dois alqueires do tipo paulista). A implantação desse sanatório tinha como finalidade atender a comunidade judaica, que na cidade de São Paulo, passava de 40 mil pessoas. O projeto arquitetônico foi elaborado pleo Engenheiro Civil, Pedro Moreira de Castro e, segundo a análise da arquiteta Tânia Bittencourt, o sanatório foi concebido “a partir do sistema pavilhonar. A distribuição dos pavilhões se deu de forma rígida, seguindo a forma da letra H, consistindo em dois pavilhões paralelos, destinados às enfermarias masculina e feminina, ligados ortogonalmente pelos ambientes que formam o centro cirúrgico”. As galerias de cura eram dotadas de vedação das paredes com tijolos maciços, contendo janelas venezianas e bandeira em vidro fixo. Em outras áreas, para faciliatar a ventilação constante, utilizava-se a bandeira articulada. Para garantir uma maior insolação, o peitoril das janelas foi construído a 0,70m do piso. A portaria do sanatório estava localizada no vértice da propriedade, onde atualmente estão a Avenida Adhemar de Barros e a Rua Prudente Meireles de Moraes. A arquiteta afirma ainda que o necrotério, “situado nos fundos do terreno, colocava-se, curiosamente, em oposição à portaria, sugerindo a analogia: acesso (esperança de vida)-saída (fatalidade/morte)”. A capacidade do Sanatório Ezra era de 120 leitos e o mesmo ainda dispunha, entre outras coisas de: refeitórios separados, para funcionários e enfermos; despensa, quarto para funcionários e biblioteca. Um espaço era reservado também para o cultivo de frutas e hortaliças. Através de uma rede social da internet, Edu Santos destaca que após a inauguração do Ezra, começaram a chegar a São José dos Campos, judeus de toda a parte do país. Citando o historiador e diretor do acervo do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, Roney Cytrynowicz, isso era possível devido ao fato de a Sociedade Israelita possuir uma ramificação nacional.
                Todavia, destinado a atender somente a comunidade judaica, já no início de seu funcionamento o Ezra passou a atender também outros pacientes, através de um convênio firmado com o IPASE (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado). Roney Cytrynowicz afirma que a Ezra já cuidava “de doentes tuberculosos, especialmente imigrantes pobres, encaminhando-os” a vários sanatórios. A busca por São José dos Campos está relacionada à (falsa) imagem de clima puro da cidade. Para o médico pneumologista, Douglas Carlyle Belculfiné, Campos do Jordão e São José dos Campos, eram chamadas pejorativamente de “Tisiópolis” e, para a segunda vinham os doentes sem recursos, “atraídos pela enganadora miragem de que estes climas ofereciam o milagre da cura”. A historiadora Ana Enedi Prince também afirma que, inaugurado em 1936, para atender somente judeus, o Sanatório Ezra, “começou a estender o atendimento aos outros doentes, sem distinção”. A ampliação do atendimento era realizado, com a inauguração festiva de novos setores do sanatório. Analisando o periódico “Correio Joseense”, nº 170, Vítor Chúster destaca que no dia 15 de novembro de 1936, “às 13:00 horas, foi inaugurado mais um pavilhão para tuberculosos pobres no Sanatório Ezra”,  e que para a “solemnidade foram convidadas as autoridades estadoaes e municipaes, representantes da imprensa local e paulistana. A comitiva que vem de São Paulo, deverá aqui chegar em trem especial que sahirá às 7 horas da Estação do Norte”. Apesar do ambiente tétrico que exalava enfermidade, os doentes do peito tratavam, dentro de suas possibilidades, de “levar” a vida. Como deveria ocorrer em outros sanatórios de São José dos Campos, até mesmo casos de namoros foram registrados entre os enfermos. Em Trabalho de Conclusão de Curso de Faculdade, Renata Bello e Cláudia Siqueira afirmam que dentro “do Sanatório (Ezra) acontecia uns beijinhos, namoro, ninguém tinha medo de se beijar porque... já tinham a doença, até mesmo existia namoro entre funcionários e pacientes. (...). Mesmo os compromissados, casados, acabavam se envolvendo com alguém dali, porque muitas vezes já tinha até acabado o amor pelo marido ou pela mulher”.
                 Durante o período de três décadas o Sanatório Ezra funcionou em São José dos Campos, mantido pela Sociedade Israelita mencionada ao longo deste artigo, e também com donativos. Mas assim, como ocorreu com outras instituições análogas, entrou em declínio. Segundo a análise de Vítor Chúster, o “sanatório encerrou as atividades em 1966, quando houve substancial queda no número de internações”. Não só com o sanatório judeu, mas outros foram fechando as portas e, o principal motivo teria sido o desenvolvimento da cirurgia toráxica, citada no início deste texto; cirurgia essa que representou para muitos enfermos a esperança de cura total da moléstia, acompanhada de tratamentos mais avançados e eficazes. Porém, nem tudo são flores no histórico do sanatório. Altino Bondesan, ao se referir ao Sanatório Ezra, afirma que o mesmo era “dito de caridade, mas fechado há pouco, porque o IPASE e outras autarquias denunciaram o convênio há muito existente”. Segundo o escritor, mesmo recebendo subventos governamentais, a administração estaria envolvida em irregularidades para manter o atendimento aos pobres. Contudo, independente do motivo, o fechamento do Ezra encerra simboliza. junto com o fechamento dos outros sanatórios, as alterações que a cidade de São José dos Campos estava atravessando. Em 1969, a Prefeitura Municipal desapropria o imóvel e todas as insstalações são demolidas para a construção do Parque Santos Dumont. A inauguração ocorreu no dia 23 de outubro de 1971, conduzida pelo Prefeito Sérgio Sobral de Oliveira, que também era Coronel reformado da Aeronáutica. Estefânia Knotz Canguçú Fraga e Zuleika Stefãnia Sabino Roque afirmam que a escolha do nome do parque e a data da inauguração (dia do aviador), estabeleciam “um vínculo da cidade com a aeronáutica, (...), ao mesmo tempo, soterrando uma cidade ‘doente’”. Tal faz sentido, pois São José dos Campos “vivia” o início do surto industrial e, somado a isso, a instalação da EMBRAER,  rotulou  a cidade como a “capital do avião”, antes de ser designada como a “capital do vale”. Assim, os vestígios que lembrassem o passado sanatorial deveriam ser apagados da memória coletiva da população. Ainda assim, poucas construções dessa época permanecem na cidade mas, no caso do Ezra, o objetivo foi alcançado, pois acreditamos que quase 90% da população da cidade ignora que no local do Parque Santos Dumont, existiu no século XX, uma instituição destinada ao tratamento de tísicos judeus. Até a próxima.
                                                                                                            Eddy Carlos.

Dicas para consulta.
BITTENCOURT, Tânia. Arquitetura Sanatorial. T.M.M. Bittencourt. São José dos Campos, 1998.
BONDESAN, Altino. São José em Quatro Tempos. Gráfica Bentivegna. São Paulo, 1967.
CHÚSTER, Vítor. São José dos Micuíns. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos campos, 2011.
PAPALI e ZANETTI, Maria Aparecida e Valéria Regina (Orgs.). São José dos Campos. História e Cidade. Volume IV. Fase Sanatorial de São José dos Campos: Espaço e Doença. UNIVAP. São José dos Campos, 2010.
INTERNET: Facebook/Resgatando São José dos Campos/Edu Santos.

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br


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