Desde que o homem se sedentarizou, passando a viver em
comunidade, com um princípio de organização que daria origem às diversas formas
de governo, surgiram vários conflitos de naturezas variadas. Um determinado
grupo atacava e saqueava outro em busca de alimentos, escravos, mulheres ou por
posse de fontes de água, etc. Principalmente com a organização de aldeias
primitivas em Estados, a busca por mais escravos e riquezas motivou inúmeras
guerras. Já em tempos remotos, além de vencer o inimigo, os vitoriosos
praticavam atos de selvageria, como o estupro de mulheres, assassínio em massa
de populações indefesas, incluindo velhos e crianças. Quando motivadas por
questões religiosas, a barbárie prevalecia na “solução” de incontáveis
conflitos. Como exemplo, podemos citar alguns casos. A Bíblia relata que
durante o período dos Juízes, os israelitas atacaram, destruíram e dizimaram
populações inteiras nas cidades cananéias de Haí, Jericó e Hazôr e outras,
dizendo seguir “ordens” de Deus. Assírios e Caldeus fizeram o mesmo mais tarde
com os próprios hebreus ao destruírem as cidades de Samaria e Jerusalém, sob os
reinados de Sargon II e Nabucodonosor II, respectivamente. Aliás, Jerusalém
seria castigada mais duas vezes pelas legiões romanas em 70 d. C. e 135 d. C.,
durante as revoltas dos zelotes contra o jugo dos Césares. Nas Guerras Púnicas,
Roma decide na terceira e última, eliminar de vez a rival Cartago. Em todas,
logo após a vitória militar, seguia-se uma onda de barbárie regada a sangue. Na
realidade, para as nações vitoriosas não bastava a derrota militar do inimigo.
Ainda mais quando um grupo ou povo se insurgia contra o domínio de outro, era
preciso eliminar fisicamente tal grupo; eliminar a sua razão de existir.
Podemos considerar que o que ocorria era um tipo de “limpeza” étnica, comum na
maioria dos casos. Ao longo do período medieval as guerras eram constantes,
entre feudos, entre nações e, também por motivos religiosos. É o caso da
repressão da Igreja, através da Inquisição, que promoveu uma verdadeira cruzada
contra os “hereges” cátaros, albigenses e valdenses até o extermínio. Também
podemos mencionar a Noite de São Bartolomeu em 24 de agosto de 1572, quando
Catarina de Médicis ordena a matança de huguenotes na França, sendo o maior
número de vítimas ocorrido em Paris. Entre os mortos destaca-se Gaspar de
Coligny, membro da nobreza e um dos idealizadores da colônia da França
Antártica no Brasil, juntamente com Nicolas Durand de Villegaignon.
Com a
“descoberta” do Novo Mundo os europeus trouxeram para os trópicos suas práticas
“civilizadoras”, incluindo métodos de intimidação pelo terror. Os espanhóis
arrasaram, em alguns casos por pura diversão, aldeias e cidades Astecas, Maias
e Incas. Na colônia lusitana, os bandeirantes faziam o mesmo despovoando
regiões inteiras e espalhando morte, destruição, escravidão e causando o
extermínio de várias nações indígenas. Paralelamente à ação dos bandeirantes, o
governo português agia contra as aldeias “desobedientes”. Combateram até o
extermínio os Tamoios que haviam se aliado aos franceses e fizeram o mesmo
contra os Caetés, devido ao crime praticado de terem comido o 1º Bispo do
Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha. Com a Independência, o Brasil procura
solidificar suas fronteiras, ao mesmo que enfrentava alguns conflitos, interno
e externo, como a Confederação do Equador em 1824 e a guerra com a Argentina
(1825-1828), que resultou na perda da Província da Cisplatina, atual Uruguai.
Na fase da Regência, novas revoltas eclodiram no país, sendo sufocadas, geralmente
com brutalidade pelo Governo Central. Porém, o conflito mais grave no qual o
Brasil se envolveu foi a Guerra do Paraguai (1864-1870). E nesse conflito os
episódios de barbárie se tornaram comuns, principalmente os cometidos por ordem
de Gaston de Órleáns, o Conde D’Eu, genro de Dom Pedro II. O historiador Júlio
José Chiavenatto descreve um desses episódios, ocorrido na batalha de
Peribebuy, onde tomba o General brasileiro Menna Barreto. De acordo com
Chiavenatto, “a irritação do príncipe francês chegou a tais limites de
brutalidade que mandou, num torpe ato de vingança, que certamente não honra o
militar morto, degolar todos os prisioneiros paraguaios na sua captura,
inclusive ao General Pedro Pablo Caballero. O Conde D’Eu, pálido e trêmulo,
segundo os testemunhos da época, assistiu de longe a degola coletiva de um
exército vencido”. Outra “façanha” do
referido Conde foi ordenar o incêndio do hospital de Peribebuy, com os
enfermos, velhos e crianças dentro. O hospital em chamas permaneceu cercado
pelo Exército Imperial do Brasil e os soldados empurravam à baioneta aqueles
que tentassem fugir das chamas. Segundo Chiavenatto, não “se conhece na
história da América do Sul, pelo menos, nenhum crime de guerra mais hediondo
que esse”.
A queda do
Império levou ao poder políticos e líderes republicanos que pregavam a
modernização e a “civilização” do país, espelhando-se na sociedade européia. A
República era apresentada como o único sistema político civilizador dos
trópicos e sinônimo de desenvolvimento e progresso. Entretanto havia
contestações que gerariam mais conflitos. Nos dois governos de presidentes
militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, ocorreram as duas Revoltas da
Armada (1891 e 1893-1895) e a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul
(1893-1895). E mais uma vez a barbárie “rouba” a cena dos palcos de combate.
Uma das práticas mais cruéis, usada em larga escala por ambos os lados das
contendas, era a degola; tal como ocorrera no Paraguai, o método era conhecido
também como “gravata vermelha”. Eduardo Bueno afirma que rápida, “silenciosa e
barata, a degola foi a forma favorita de execução ao longo dos dois anos e meio
durante os quais a guerra civil de 1893 sangrou o Rio Grande do Sul. As vítimas
eram mortas da mesma forma como se abatiam carneiros: forçadas a se ajoelhar
ante seu algoz, tinham a cabeça colocada entre as pernas do executor, que então
lhes rasgava a carótida com um único golpe de faca. Os legalistas degolaram
antes e mais do que os federalistas---mas, sempre que possível, houve
vingança”.
Todavia,
ainda que não tenha inventado a prática, a História registrou como um dos que
mais usaram a degola, o Coronel do Exército, Antônio Moreira César. Devido ao
seu caráter autoritário e vingativo, o coronel ao reprimir violentamente os
rebeldes federalistas em Santa Catarina acabou rotulado com o epíteto de “Corta-cabeças”
e “Treme-terra”. Mas o que ficou mais conhecido foi o primeiro. Na realidade, a
ordem das autoridades era de não se fazer prisioneiros e o militar legalista
seguiu à risca tal determinação superior. Em meados de 1893 os revoltosos da
Armada se unem aos federalistas de Silveira Martins e tomam a capital da Província
de Santa Catarina, Nossa Senhora do Desterro, proclamando o assim chamado
“Governo Provisório do Brasil”. No mês de abril de 1894, as forças legalistas
comandadas por Moreira César retomam a cidade de Desterro e, encerrados os
combates, de novo, a barbárie entra em cena. As informações e os números são
controversos. Estima-se em mais de 100 os prisioneiros executados por ordem
direta de Moreira César. Como a maioria foi degolada, a fama do coronel como o
“Corta-cabeças” espalhou pelo Brasil, chegando até o Nordeste, como veremos
adiante. Em alguns casos, além de cortar a jugular dos infelizes prisioneiros,
os algozes ainda puxavam a língua das vítimas pelo corte, numa clara
demonstração de ódio e desprezo pelo inimigo abatido. Entre os rebeldes nem o
Comandante Lorena foi poupado; foi-lhe aplicada a “gravata vermelha”. Segundo a
análise de José Maria Bello, diante das atrocidades praticadas em Desterro, foi
necessária a intervenção de Floriano Peixoto, que mesmo assim designou Moreira
César como Presidente militar de Santa Catarina. Analisemos um pouco mais
detalhadamente a figura do “Corta-cabeças”.
Conforme a
análise de Francisco Piorino Filho, Antônio Moreira César nasceu em
Pindamonhangaba no dia 07 de julho de 1850. Ingressando na carreira militar,
assentou “praça a 29 de dezembro de 1869, sendo nomeado alferes aluno, a 26 de
dezembro de 1874. Alferes a 31 de janeiro de 1875 e tenente, por merecimento, a
29 de julho de 1877. Capitão por estudos a 14 de maio de 1881 e major por
merecimento, a 7 de janeiro de 1890. Passou a tenente coronel, também por
merecimento, a 17 de março de 1890. Foi a coronel graduado a 3 de março e a
coronel efetivo, por merecimento, a 18 do mesmo mês de 1892. Tinha o curso do
Estado Maior de 1ª Classe”. Mesmo com esse histórico respeitável, Moreira César
mancharia o uniforme militar e a instituição a que pertencia ao perpetrar (até
mesmo se fizesse vista grossa) as atrocidades ocorridas no sul do país. Já
pesava contra sua pessoa a acusação de ordenar o assassinato de um jornalista
desafeto. Em 1895, após a morte de Floriano Peixoto, já no governo de Prudente
de Morais, a cidade de Desterro tem o nome alterado para Florianópolis, em
homenagem ao Marechal de Ferro. Entre 1896 e 1897 a República iria se envolver
em um novo conflito. Acusado de ser um reduto monarquista, o arraial de Canudos
na Bahia representava uma séria “ameaça”. Quatro expedições militares foram
enviadas para combater os sertanejos, chefiados pelo líder messiânico Antônio
Vicente Mendes Maciel, mais conhecido pela alcunha de “Antônio Conselheiro”. O comando da terceira expedição foi entregue
ao Coronel Moreira César, que antes de partir para Canudos jurava vingar as
derrotas das duas anteriores, da Força Pública da Bahia e do Exército. Júlio
José Chiavenatto afirma que a escolha de Moreira César estava relacionada com a
sua “brilhante” atuação em Santa Catarina. O historiador destaca que Moreira
César, truculento, “epilético, frágil e obcecado, é um dos mais conceituados
militares republicanos florianistas, justamente porque exerceu ‘essas
qualidades’ reprimindo os federalistas de 1893”. Em fevereiro de 1897, Moreira
César tem à sua disposição 1.200 homens e 16 milhões de tiros, além de
armamentos pesados, incluindo canhões modernos. Totalmente confiante em sua
própria “superioridade” e na do equipamento bélico, o coronel desprezou
informações preciosas do Major Febrônio de Brito, comandante da segunda
expedição derrotada. No dia 02 de março, mesmo após sofrer dois ataques
epiléticos e contrariando ordens médicas, Moreira César deflagra a primeira
investida contra Canudos, sendo prontamente repelido pelos sertanejos ocultos
entre os casebres e a pouca vegetação do semi-árido. Na verdade, a tropa
desconhecia totalmente o ambiente de luta, bem diferente dos conselheiristas,
que, aliás, usavam táticas de guerrilhas. Por outro lado, conhecendo a fama do
coronel, relacionada com a “gravata vermelha”, os seguidores de Antônio
Conselheiro combatiam com extrema bravura. Eduardo Bueno descreve o vexame do
Exército, na tática equivocada do “Treme-terra”. Após o primeiro ataque,
frustrado, e cego “de ódio, Moreira César ordenou outro assalto. Gritou: ‘Vamos
tomar o arraial sem tiros. À baioneta!’. Mas as ruas de Canudos pareciam um
labirinto e, ao entrarem na cidade, os soldados viraram alvo fácil para os
franco-atiradores postados no alto das torres da nova igreja. Moreira César
tomou nova decisão equivocada ao ordenar o avanço da cavalaria, incapaz de
manobras entre as ruelas e os casebres”. Nessa investida, ao atravessar o Rio
Vaza-Barris, o coronel foi alvejado com dois tiros no ventre. Assume o comando
o Coronel Tamarindo que decide pela retirada, contrariando o moribundo
“Corta-cabeças”. Algumas horas depois o Coronel Moreira César morre. Dessa
forma, Tamarindo ordena a retirada “honrosa”.
Porém,
durante tal retirada, na verdade uma fuga desesperada, os sertanejos atacam e
acabam matando o Coronel Tamarindo. Ao analisar o episódio da retirada, Júlio
José Chiavenatto afirma que a “fuga foi desastrosa. Não se enterraram os
mortos, deixaram os feridos. O cadáver de Moreira César foi abandonado. Não se
podia explicar a derrota: seria aceitar que os sertanejos tinham uma capacidade
superior de luta. (...). Os estrategistas de Canudos, ‘fanáticos e jagunços’,
impuseram ao Exército nacional uma de suas mais humilhantes derrotas”. Os
discípulos de Conselheiro ainda se apoderaram das armas deixadas, incluindo
quatro canhões. No livro “Os Sertões”, Euclides da Cunha afirma que “a
expedição Moreira César parecia ter tido um objetivo único: entregar-lhes de
graça todo aquele armamento moderno e municiá-los largamente”. A morte de
Moreira César abalou o governo, que ao invocar um perigo monarquista mobiliza
9.500 homens para a quarta expedição sob o comando dos generais Savaget e Artur
Oscar. Em 05 de outubro de 1897, após ferrenha resistência o arraial de Canudos
está totalmente destruído. Antes os militares permitiram a saída de 300 pessoas
entre velhos, mulheres e crianças. Findo os combates, como era de se esperar, a
barbárie entra em cena. Sem distinção, os prisioneiros, homens ou mulheres,
após serem interrogados, recebem a “gravata vermelha”, em meios de gritos de
“Viva a República”, pronunciados pelos soldados. Euclides da Cunha anotou que a
degola “era infinitamente mais prática, (...). Aquilo não era a ação severa da
lei, era a vingança...”. Era a vingança pelas mortes de Moreira César e
Tamarindo, principalmente pela do primeiro. Era a vingança contra uma
comunidade que ousou se defender com os seus parcos e rústicos recursos. Outra
cena da barbárie ainda iria ocorrer. Antônio Conselheiro havia morrido 12 dias
antes da queda de Canudos; inconformados os militares violam a sepultura,
exumam o cadáver, fotografam e decepam a cabeça do líder messiânico, passando a
configurar um troféu de guerra. Essa atitude nos leva a firmar que, ainda que
ostentem os ares de civilizados, os representantes do Estado e da Lei são os
primeiros a praticar os atos de selvageria, conforme relatamos ao longo deste
artigo. E cometem tais atos justamente contra àqueles que são considerados
bárbaros ou selvagens. Quase meio século mais tarde, mais precisamente em 1938,
os defensores da Lei e da Ordem praticariam novamente a barbárie. Após
encurralar e assassinar de tocaia o remanescente do bando de Lampião em
Angicos, Sergipe, o Tenente Bezerra decapitou os cangaceiros mortos. Suas
cabeças foram exibidas como troféus pelas autoridades “civilizadas”.
Depois
de morto o Coronel Moreira César entraria para o panteão nacional dos heróis
brasileiros. Sua memória e seus “serviços” prestados à nação passam a ser
exaltados, e homenagens em sua honra são várias. Cidades como o Rio de Janeiro
e São João Del Rey batizam ruas com o seu nome. Em sua terra natal, a estação
ferroviária de Barranco Alto passa a se chamar “Estação Moreira César”. Em
1958, o então governador paulista Jânio Quadros autoriza a criação do Distrito
de Paz “Moreira César”, pertencente ao Município de Pindamonhangaba.
Infelizmente o Brasil possui uma tradição em homenagear figuras polêmicas ou
controversas. O exemplo clássico disso é o caso do bandeirante Borba Gato,
homenageado com uma estátua colossal em São Paulo em 1962. Em 1681 Borba Gato
assassinou Dom Rodrigo Castelo Branco, representante da Coroa e administrador
real das minas. Ora, o crime era de lesa-majestade, punível com a forca. Borba
Gato passou dezoito anos escondido nas matas até que, interessadas em saber o
local das jazidas auríferas, as autoridades perdoaram o crime em troca da
revelação. Outros exemplos são os dos demais bandeirantes; execrados ao longo
da história do Brasil, na Colônia e Império, foram alçados à condição de heróis
e desbravadores, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. A construção
do mito dos bandeirantes, encomendada pelo governo paulista, foi elaborada por
dois influentes historiadores, Afonso D’Escrangnolle Taunay e Alfredo Éllis Jr.
Antônio Moreira César, o coronel da gravata, é também o patrono da Cadeira nº 4
da Academia Pindamonhangabense de Letras. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
BELLO, José Maria. História
da República. Cia. Editora Nacional. São Paulo, 1976.
BUENO, Eduardo (Org.). História
do Brasil. Publifolha. São Paulo, 1997.
CHIAVENATTO, Júlio José. As
Lutas do Povo Brasileiro. Do “descobrimento” a Canudos. Editora Moderna.
São Paulo, 1989.
CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio
Americano. A Guerra do Paraguai. Editora Brasiliense. São Paulo, 1980.
CUNHA, Euclides da Cunha. Os Sertões. Publifolha. São Paulo, 2000.
FILHO. Francisco Piorino. Biografias. Mystic Editora. Campinas, 2001.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
Eu realmente amei o artigo, vou recomendar a muitos este blog pois o tanto de informação essencial aqui presente ultrapassa o limite racional e passa a ser algo mágico para muitos alunos que podem se interessar mais pelo assunto, assim como eu.
ResponderExcluir-Murilo Ribeiro da Silva