FONTE: Estudos Sociais, IBEP, 1979.
Aprendemos nos bancos escolares, na
antiga disciplina “Estudos Sociais”, que os bandeirantes paulistas foram homens
valentes, destemidos, desbravadores que levaram a “civilização” aos povos “selvagens”
e engrandeceram o Brasil, alargando suas fronteiras. A historiografia oficial,
principalmente paulista, imortalizou nomes como Raposo Tavares, Fernão Dias, os
dois Anhangueras (Bartolomeu Bueno, pai e filho) Jerônimo de Barros, Manuel
Preto, Domingos Jorge Velho (destruidor de Palmares), Borba Gato e outros de
menor importância. Na realidade, as expedições que saíam de São Paulo rumo aos
sertões inóspitos tinham como objetivo inicial a caça ao índio para ser
utilizado como escravo nas lavouras e serviços domésticos. Tal empresa foi
denominada pelos historiadores como bandeirismo de preagem. “Empurrando” os
nativos sertão adentro e, com as expedições tornando-se longas demais, os
bandeirantes decidiram atacar as aldeias jesuíticas, chamadas de missões ou
reduções, onde os autóctones haviam sido “amansados” pelos padres da Companhia
de Jesus, representando presas fáceis para os “bravos” de Piratininga. O filme
“A Missão”, de 1987, retrata muito bem esse episódio do bandeirismo, como a
destruição das aldeias e o massacre dos que resistiam à fúria bandeirante. Como
as incursões paulistas intensificavam-se no Guairá, Tape e Itatim, então
possessões espanholas, os líderes jesuítas pediam a intervenção do rei da
Espanha, sem sucesso. A situação iria se reverter quando, finalmente o rei e o
papa autorizaram os jesuítas a armarem com poder de fogo os índios das
reduções. Dessa forma, após a derrota da bandeira de Leite Pais em 1638 em
Caazapa-Guaçú, o grande revés iria ocorrer no dia 11 de março de 1641. Trata-se
do desastre do M’bororé, ribeirão afluente do Rio Uruguai, onde aproximadamente
3.000 guaranis, chefiados pelo cacique Ignácio Abiaru e pelos padres Pedro
Romero e Pedro de Mola, destroçaram a bandeira de Jerônimo de Barros composta
por 300 paulistas e 600 tupis; os bandeirantes usavam índios inimigos de outras
nações em suas incursões. O golpe foi tão forte que apenas 20 conseguiram
retornar a Vila de São Paulo. A derrota sofrida praticamente encerrou o chamado
ciclo de caça ao índio, impelindo os bandeirantes à procura de ouro e pedras
preciosas.
Consequentemente, seguindo ao longo
do Rio Paraíba, os bandeirantes após cruzarem a Garganta do Embaú, na Serra da
Mantiqueira, atingem o Sertão dos Cataguases onde, entre 1693 e 1695, encontram
as primeiras minas de ouro. A descoberta do metal precioso provocou um êxodo em
direção às minas e a fundação das atuais cidades mineiras de Sabará, Mariana,
São João del Rey, Vila Rica, etc. O êxodo citado quase despovoou as Vilas de
São Paulo, Mogi das Cruzes, Taubaté, Guaratinguetá, Jacareí, e outras,
decorrendo daí grande inflação, escassez de gêneros alimentícios e a fome
generalizada, obrigando os garimpeiros a se alimentarem de cobras, lagartos,
sapos, vermes, e formigas. Quem quisesse podia economizar (se conseguisse) e pagar 96$000 por um boi, que custava 14$000
em Salvador, ou 14 gramas
de ouro por uma galinha. O anúncio da descoberta aurífera fez afluir, além dos
paulistas, grandes levas de aventureiros de outras partes da colônia e,
principalmente do reino. Como os paulistas julgavam-se no direito de
exclusividade da extração, devido às descobertas,por eles realizadas, iniciou-se um antagonismo com os forasteiros,
sobretudo portugueses e baianos, explodindo num confronto armado entre os anos
de 1707 e 1709. Embora muito pouco estudado, tal conflito entrou para a
História do Brasil com o nome de Guerra dos Emboabas e, apesar de ocorrido na
região das minas, merece ser analisado, pois o Vale do Paraíba teve
participação indireta no episódio, como veremos adiante.
Como mencionado, os paulistas
queriam exclusividade na exploração das minas, mas com a crescente chegada de
forasteiros para também garimpar ouro, foram apelidados de forma depreciativa
com a alcunha de “emboaba”. A palavra tem origem na língua tupi, onde “amô-abá”
significa estrangeiro e da corruptela surgiu “emboaba”. A conflagração teve
início quando em menos de seis meses quatro “emboabas” foram mortos por
paulistas por motivos fúteis, sendo que o primeiro era um português dono de uma
estalagem em Ponta do Morro, perto de São João del Rey. Desde 1700, o célebre
bandeirante Manuel de Borba Gato era o Guarda-Mor das minas, promovido pelo Governador
Arthur de Sá e, como não teria punido os crimes contra os emboabas, estes
reagiram. Liderados pelo português Manuel Nunes Viana, os emboabas incendiaram
Sabará e expulsaram a maior parte dos paulistas da região das minas. Com a
vitória parcial, os emboabas aclamaram Nunes Viana como Governador das Minas,
apesar do ato configurar em crime de lesa-majestade. Após a aclamação o chefe
emboaba resolve estender sua “autoridade” à região do Carmo, sendo repelido. Em
represália os emboabas decidem atacar os arraiais do Carmo e Guarapiranga,
sofrendo um contra-ataque dos paulistas fugidos de Sabará e do Rio das Velhas,
comandados por Borba Gato, dizimando as hostes inimigas. Em socorro de seus
partidários Nunes Viana envia uma força liderada por Bento do Amaral Coutinho
que cercando parte dos paulistas num capão às margens do Rio das Mortes propõe
a paz em troca da deposição das armas. Os números variam, mas oscila entre 50 e
300, os paulistas cercados por Coutinho que, faltando com a palavra, manda
assassinar todos a sangue-frio. O
episódio ficou conhecido como “Capão da Traição”, inflamando o ódio dos
bandeirantes e, provocando a intervenção das autoridades coloniais. A matança
ocorrida entre fins de 1708 e início de 1709 obrigou o Governador do Rio de
Janeiro Dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre a se dirigir a região das
minas, chegando ao seu destino em abril do mesmo ano. Entretanto, em final de
mandato, Lencastre foi humilhado por Nunes Viana e preferiu se retirar do
local, apesar de contar com o auxílio de quatro companhias de tropa de linha.
No dia 11 de junho de 1709 toma
posse o substituto de Lencastre, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho,
trazendo uma carta régia com o intuito de pacificar os contendores. O
documento, assinado pelo rei D.João V, concedia anistia geral, excluindo Manuel
Nunes Viana e Bento do Amaral Coutinho, embora embarcasse para o reino, Frei
Francisco de Menezes para obter o perdão real para os chefes emboabas. Porém, em São Paulo os
bandeirantes organizam um contingente para vingar os mortos do “Capão da
Traição”. Liderados por Amador Bueno da Veiga, a força composta de 1.300
homens, segundo a análise do historiador José Soares de Mello, segue em direção
às Gerais, percorrendo o caminho, que hoje configura com a Estrada Velha Rio-São
Paulo. Informado do avanço da coluna paulista, por um espião emboaba, Domingos
Gonçalves Cândido, residente na Vila de Guaratinguetá, Antônio de Albuquerque
decide ir ao encontro de Amador Bueno, alcançando-o já na citada vila, onde
tenta fazer com que os bandeirantes desistam da vingança. Amador Bueno e seus
seguidores recusam a oferta do Governador e, seguindo pela Estrada Real, passam
pelo Embaú, galgam a Mantiqueira e atingem o território das minas. Antônio de
Albuquerque, porém, envia um comunicado aos emboabas, informando Ambrósio
Caldeira Brandt do avanço paulista, eliminando o elemento surpresa. Entre os
dias 14 e 22 de novembro de 1709, os paulistas travam o último combate contra
os emboabas na região, que recebem reforço da Companhia dos Dragões de Gregório
de Castro, Governador do Rio de Janeiro, solicitados por Antônio de
Albuquerque, devido à recusa dos paulistas em aceitarem a oferta de paz. Apesar
de garantido, todavia, pelo rei de Portugal os direitos dos paulistas, o fato é
que, na realidade, os mesmos perderam o controle das minas, uma vez que o alvará
régio mantinha as posições dos emboabas na região. No entender da Coroa, quanto
mais pessoas extraíssem ouro, mais quintos seriam arrecadados. Para acalmar os
ânimos, o rei resolve elevar São Paulo à categoria de cidade ao mesmo tempo em
que é criada a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro em 1710, sendo seu
primeiro Capitão-General, o próprio Antônio de Albuquerque. Aos paulistas
restou a opção de buscar novos horizontes, até que em 1718, Pascoal Moreira
Cabral Leme descobre ouro na região de Cuiabá, iniciando um novo ciclo das
bandeiras, o das monções. Mas na prática, o período do bandeirismo teve seu
epílogo na Guerra dos Emboabas.
Como mencionamos anteriormente,
esse episódio foi pouquíssimo analisado após 300 anos da conflagração. Em 1730,
o historiador português Sebastião da Rocha Pitta ao publicar sua “História da
América Portuguesa” assume uma posição pró-emboaba ao descrever o conflito do
qual foi contemporâneo. Em análise diametralmente oposta, historiadores na
década de 1920, como Affonso d’ Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Júnior e José
Soares de Mello (citado neste texto), descrevem o tema sob o cunho patriótico,
incluindo-o no rol das “revoltas nativistas”. Para os mencionados
historiadores, a Guerra dos Emboabas significou a luta do povo brasileiro
oprimido contra o poder tirânico da metrópole. Durante a Revolução de 1932 a
figura do bandeirante é vinculada à do soldado constitucionalista e após o
conflito, Taunay, Ellis Júnior, Alcântara Machado e outros criaram o mito do
bandeirante destemido e desbravador, como conhecemos atualmente. Voltando ao
período pós-conflito, verificamos que em 1720, a Coroa divide a Capitania de
São Paulo, isolando-a da região das minas, que surge como uma Capitania
independente. Ou seja, os paulistas perderam de vez a região aurífera das
Gerais. Como punição pela desobediência à ordem real, em 1748 a Capitania de São
Paulo é extinta pela Coroa e seu território incorporado à do Rio de Janeiro.
Somente com a ameaça castelhana no Sul é que o governo luso restaura a referida
capitania em 1765, com a posse de Dom Luís Antônio de Souza Botelho Mourão,
mais conhecido como o Morgado de Mateus.
Enfim, a Guerra dos Emboabas,
inserida no contexto histórico do bandeirismo, ainda permanece obscura nos
meios acadêmicos e deveria ser, melhor analisada, assim como qualquer fato ou
episódio da História, principalmente, da História do Brasil. Um grande abraço e
até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas
para consulta.
MACHADO, Alcântara. Vida e Morte do Bandeirante. Livraria
Martins Editora. São Paulo, 1953.
MELLO, José Soares de. Emboabas. Coleção Paulística. Volume XVII. Governo do Estado de São Paulo, São Paulo, 1979.
RODRIGUES, José Wasth. Tropas Paulistas de Outrora. Coleção
Paulística. Volume X. Governo do Estado de
São Paulo. São Paulo, 1978.
TAUNAY, Affonso d’ Escragnolle. História das Bandeiras Paulistas. Volume I. Editora Melhoramentos. São Paulo, 1961.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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