Desde os primórdios da
humanidade, principalmente quando o homem deixa de ser caçador e coletor e
desenvolve a agricultura, tornando-se assim sedentário, sempre houve a necessidade
de transportar determinadas cargas ou produtos de um lugar para o outro. Nas
primeiras formas de organização de comunidade, os líderes determinavam que um
grupo de pessoas, ou súditos, devessem prestar serviços gratuitos para o bem
comum. Aos poucos, essas comunidades evoluíram para outra forma, que chamamos de
pré-estado, onde a classe dominante impõe por meio da servidão forçada a
quantidade de trabalhos prestados, incluindo o transporte de cargas. Como,
naturalmente, a força física humana não fosse o suficiente, a domesticação de
animais para tal, foi a solução e, quando a roda é desenvolvida aproveita-se a
tração animal para puxar ou transportar
mercadorias, utilizando um tipo primitivo de carro. Ainda assim cabia aos
servos se ocuparem do carregamento e conduções dos animais domesticados. Por
outro lado, o desenvolvimento da roda, datado de, aproximadamente 14.000 anos
no Oriente e 9.000 na Europa, foi utilizado também na “arte” da guerra, com o
surgimento dos primeiros carros de combate movidos à tração animal.
Todavia, para os transportes de cargas e de pessoas, o
animal utilizado desde tempos remotos foi o boi. Segundo Bernardino José de
Souza, “o boi e o cavalo foram, provavelmente, os primeiros animais utilizados na
tração dos veículos. Quanto aos bovinos, é assente entre os estudiosos, que lhes
cabe a primazia no tempo, aparecendo já como animais de tiro nas gravuras rupestres
da idade do bronze; é o que também consta das mitologias germânicas e referem às
tradições mais antigas dos povos da
antiguidade oriental e clássica”. Na realidade enquanto que os bois eram úteis
ao transporte das colheitas no meio rural, o cavalo era destinado ao tiro dos
carros de combate, assumindo uma função puramente militar, isso bem antes da
formação da cavalaria. Dessa forma, os bovinos já eram utilizados pelo homem na
Mesopotâmia, Egito, China e Índia, além da Grécia e Roma. Também entre os
hebreus, o uso de carro de bois foi muito difundido e, até entre os filisteus,
que usavam os bois em guerras para o transporte de víveres e armamentos, como
ocorreu em 1195 a.C., na guerra contra o Egito de Ramsés III.
Com a conquista e expansão do Império Romano, o uso do
carro de bois, espalhou-se pelo imenso território, incluindo os territórios da
Lusitânia e Hispânia, ambos formando a Ibéria, ou seja, Portugal e Espanha. No
dia-dia dos romanos e suas possessões, o carro de bois, chamado por eles, de
plaustrum, compunha-se, segundo Bernardino José de Souza, “de duas partes
principais: o rodado e o lastro ou mesa (...). O rodado constava de duas rodas
ligadas por um eixo (...), O estrado era um lastro de tábuas do qual partia o
timão ou cabeçalho (temo) para a atrelagem das parelhas de bois”. Em Portugal,
ao longo dos séculos, o carro sofreu algumas alterações e outras denominações.
Na região do Algarve, o carro com eixo de ferro e roda raiada, foi chamado de
carreta permanecendo, porém, inalterado no Alentejo, o carro com eixo de
madeira móvel ou fixo. De Portugal, o carro de bois foi levado para os trópicos
durante a fase das Grandes Navegações. Os primeiros engenhos de açúcar no Brasil,
entre 1526 e 1545, nas Capitanias de São Vicente, Itamaracá, Bahia e
Pernambuco, contaram com a introdução e auxilio do carro de bois. Com a
instalação do Governo-Geral com Tomé de Souza em 1549, seu uso foi incentivado
e difundido por todo o território, sendo usado, inclusive na construção da
cidade de Salvador. Mas é nos engenhos que a força bovina é sempre requerida.
Porém, Antonil exorta os senhores de engenho a serem cuidadosos com seus
animais, lembrando que os mesmos, “que vêm do sertão cansados e maltratados no
caminho, para bem não se hão de pôr no carro, se não depois de estarem pelo
menos ano e meio no pasto nôvo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho
mais leve, começando pelo tempo do verão e não no do inverno”. Lembra ainda o
jesuíta que nos engenhos eram necessários manter de quatro e cinco carros com
doze ou catorze juntas de bois. Antes de prosseguimos torna-se necessário uma
descrição dos componentes e um carro de bois e suas variações.
Os carros de bois possuem equipamentos feitos de madeira,
couro ou fibras e ferro, de acordo com a análise do pesquisador Bernardino José
de Souza. Os componentes de madeira são: a canga, utilizada em todo o
território nacional, confeccionada em uma única peça leve, apoiada no pescoço
dos bois; o jugo, mais pesado e mais utilizado na região sul; o canzil, hastes
de madeira que prende o boi pelo pescoço; o cambão usado para interligar as
juntas; a chavelha; o cambito, usado para fixar a carga na mesa. As peças de
couro são: a brocha, que prende o pescoço dos bois por baixo, o tamoeiro, que
prende a carga do coice, a tiradeira; etc. As peças de ferro substituem em
alguns locais, os cambões feitos de madeira. Cada junta representa dois bois e
de acordo com a necessidade, podem ser utilizadas várias juntas, assim como um
só animal. Quanto aos animais, são escolhidos para o trabalho os da raça zebu,
franqueiro, caracu, gir, guzerá, nelore, malabar, china, etc. O ofício de
conduzir uma ou mais juntas de bois é dividido entre dois profissionais: o
condutor, geralmente um homem adulto e chamado de carreiro, ou carreteiro no
Rio Grande do Sul; e o ajudante, sempre um rapazola, chamado também de guia. O
já mencionado Bernardino José de Souza afirma que o “carreiro ou carreteiro é
propriamente o condutor do carro de bois, responsável, antes do mais pela sua
eficiência, segurança e utilidade. O guia é o seu ajudante ou auxiliar nas
diferentes atividades da condução do veículo e da execução dos serviços
correlatos”. A principal característica do carro de bois é o “canto”, produzido
quando este está em movimento e que é tão antigo quanto a própria civilização.
O som é feito, devido ao atrito das cavas do eixo contra os cocões e chumaços,
o “canto” é alterado com lubrificantes empregados e à menor ou maior carga. Com
a urbanização e novos padrões de postura, tais “cantos” foram proibidos, como
veremos adiante.
Retornando ao uso de carro de bois ao
longo da História do Brasil, verifiquemos alguns relatos. Dentre as várias
utilidades, o pintor francês Jean Baptiste-Debret, ao comentar uma tela de sua
autoria, afirma que na exploração de granito o transporte era feito por carros
de bois. Na tela, “negros carregam grandes blocos de granito num carro atrelado
por quatro bois”. Até para fatos curiosos, o carro de bois foi utilizado. Em
1819, em viagem pela Bahia, os cientistas Spix e Martius, relataram o episódio
do meteorito de Bendegó. Encontrando próximo ao riacho Bendegó em 1784 por um
morador do sertão de Monte Santo, Joaquim da Mota Botelho, as autoridades foram
avisadas “da existência desse bloco metálico, que a princípio se julgava ser
prata e, por ordem do Governador, Sr Rodrigo José de Menezes, tentou a Capitão-mor
Bernardo de Carvalho removê-lo. Construíu-se um carro baixo, sobre o qual foi penosamente
içado o bloco, e debalde esforçaram-se removê-lo do lugar com doze bois. Com
vinte juntas de bois, conseguiu-se trazer o maciço bloco, um ano depois, até o
riacho, de onde, porém, nunca mais puderam arredá-lo”. Somente em 1888, o
meteorito de Bendegó foi transportado para o Rio de Janeiro, de trem, ficando
exposto no Museu Nacional. Essas são apenas algumas das utilidades do carro de
bois. Antes mesmo durante e após a fase do tropeirismo e da ferrovia, o carro
de bois sempre esteve presente em todas as regiões do Brasil, transportando
lenha, açúcar ou cana, café, milho, leite, madeiras para construção, famílias
para festejos, andores de santos em
procissões, viveres e munições em guerras, além de cadáveres para sepultamento.
Até mesmo em festas populares como o Carnaval, o carro de bois era usado como
carro alegórico. Diversas personalidades que escreveram sobre o Brasil, ao longo
do século XIX, relataram o uso do carro de bois, como Rugendas ao pintar o
quadro “Família de Fazendeiros”. Na tela, um carro puxado por uma junta de bois
e rodas maciças, transporta quatro senhoras em uma paisagem rural de 1835,
acompanhadas por um cavaleiro e dois homens à pé. Outro que comentou sobre o veículo
de tração animal bovino é Ferdinand Denis em 1837, além de Charles Ribeyrolles
com ilustrações de Vitor Frond em 1857.
Como não poderia ter sido diferente, a região do Vale do
Paraíba utilizou-se muito do carro de bois, tanto nas áreas rurais como nos
centros urbanos. Cidades que conhecemos atualmente como Jacareí, Guaratinguetá,
Taubaté, São José dos Campos, Caçapava, Guararema, Lorena, Cruzeiro, Cachoeira
Paulista, Queluz, Lavrinhas, etc. não teriam se desenvolvido, primeiramente,
sem o carro de bois e, em seguida sem o tropeiro. Mesmo com o advento da cultura
cafeeira, os carros de bois eram utilizados nas diversas fazendas valeparaibanas,
para percursos curtos e transportes variados, como já mencionados anteriormente.
Na região do Embaú, outrora sede do Município de Cruzeiro e atualmente bairro
de Cachoeira Paulista, a Fazenda Conceição, de João Joaquim Fleming, utilizava
tal carro para transportar cargueiros de cana e mandioca, conforme descrito no seu
inventário, de 1849. A inventariante foi a filha do irlandês, Carolina
Leopoldina Fleming. Outra propriedade que não dispensava o carro tirado por
bovinos era a Fazenda Boa Vista, de Manuel de Freitas Novaes, o conhecido Major
Novaes que foi vereador no Embaú. Em seu inventário, de 1898, consta à relação
de quarenta e dois bois de carro, ou seja, mais de vinte juntas; não aparece,
porém, a quantidade dos carros propriamente ditos. A Fazenda Boa Vista
pertencia ao Embaú; desde 1934, pertence à atual cidade de Cruzeiro. Também no
Embaú, a Fazenda Godoy era outra a não prescindir do uso do carro de bois. No
inventário de seu proprietário, João de Godoy Fleming, iniciado em 1910, foram
arrolados três carros e doze juntas de bois, além de um carretão de madeira,
puxando também por bovinos. Os referidos carros eram necessários para o
transporte de lenha, café, sal, açúcar, passageiros, etc. Outras fazendas no
Embaú possuíam os seus carros de bois, como a de Francisco de Godoy Fleming e a
Fazenda Rio Branco de Chrispim Bastos. Adjacente ao Embaú fazendeiros de Cachoeira,
Brejetuba, Passa Vinte, etc., não abriam mão da utilidade do carro de bois.
Outra localidade marcada pela presença do carro de bois
foi São José dos Campos. Nas Fazendas Cachoeira, no Varadouro; Ibirarema e
Santo Agostinho na Vargem Grande; Montes Claros, Pau d’Alho, Taquari, etc., era
constante o trânsito dos carros com as “cantigas” produzidas com o movimento
dos mesmos. Em obra conceituada o Profº. Jairo César de Siqueira recorda com
saudades um período de sua infância, mais precisamente o ano de 1925 em São José dos Campos.
Descrevendo um cenário longínquo de um dia de domingo daquele ano, o Profº.
Jairo afirma que desde o amanhecer “chegavam os carros de bois vindos da zona
rural, que entravam no centro da cidade galgando as ladeiras que protegiam a
principal área comercial, e subiam pela encosta do Lavapés, pela entrada do
Serimbura, pela Rua Paraibuna, pela ladeira do Matadouro ou pela Rua Paraíba, o
único caminho para a Mantiqueira”. Junto com as famílias que vinham da roça
para as missas ou festejos dominicais, os carros de bois chegavam carregados de
hortaliças, verduras, frutas, mandiocas, rapadura, lenha e jacás com patos e
galinhas. A antiga Rua do Mercado (atual Rua Siqueira Campos) ficava lotada com
carros de bois em comboios ou isolados, transitando a passo lento e produzindo
os chiados próprios de cada carreiro, identificando as fazendas, ás quais pertenciam
respectivamente. Mas é em um relato pessoal que o Profº. Jairo César de
Siqueira expressa o seu profundo saudosismo de infância, narrando os períodos
de férias escolares que passava na Fazenda Pau d’Alho, de propriedade dos tios.
Vale a pena citar tal relato: “Assim que me acomodava entre latas de querosene,
rolos de cordas e de arames farpados ou não, caixotes de sabão de pedra,
barricas de pregos, engradados de enxadas, mantas de carne seca e sacos de
açúcar preto, e de outras utilidades e encomendas, o carreiro alertava a junta
da guia: ‘Eia Pintado! Eia Russo!’ (...). O caminho era percorrido com o
acompanhamento musical dos chiados das rodas de eixo fixo, que giravam com
elas, enquanto o atrito provocava aquele chiado de cigarra nova, que era uma
deliciosa música para mim”.
Entretanto, o som que para o menino Jairo agradava, para
muitos, e isso em todo o Brasil, incomodava. Já nos primórdios do século XX, em
várias cidades foram proibidas as músicas dos carros de bois. Para obedecer às
leis municipais e escaparem de multas, Bernardino José de Souza afirma que
antes de chegar no perímetro urbano, os carreiros passavam sabão nas
empolgueiras dos eixos, afrouxando, além disso, as cunhas dos cocões. Em resposta
às proibições, que constavam nos Códigos de Postura de cada município, aqueles
que eram contrários à medida reagiam de formas, às vezes irônicas e jocosas,
como ocorreu em Lorena, no Carnaval de 1919, quando os foliões desfilaram pelas
ruas e cantaram versos, acusando o prefeito da época de proibir os cantos de
carros de bois, porque isto o incomodava. Se não bastasse a “cantiga” dos
carros, logo em seguida as autoridades passaram a proibir o trânsito desses
veículos nas estradas de rodagem, alegando que os mesmos danificavam as vias públicas.
Mais uma vez ao recorrermos a Bernardino José de Souza, mencionamos a norma
estabelecida pelo Regulamento das Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo,
definida pelo Decreto 4.216, de 13 de abril de 1927 e citado pelo referido
autor em sua obra. No artigo 75, consta que nas “estradas construídas e
conservadas pelo Estado é proibido o trânsito de carros de eixo móvel, sob pena
de multa de 500$000 (quinhentos mil-réis), da primeira vez e de 1:000$000 (um
conto de réis) em cada reincidência”. Na realidade o Brasil estava vivenciando
um período do auge da burguesia e ascensão de empresários ligados à indústria,
ou seja, uma nova elite que relacionava o passado ao atraso. Tudo o que
representasse o cenário rural e agrícola deveria ser execrado da sociedade da “belle
epoque”. Sendo assim, os carros de bois ficaram restritos às fazendas e
estradas ou trilhas que as interligassem.
Por outro lado, já competindo com as tropas de muares, os
carros de bois, junto com os tropeiros, sucumbem às inovações tecnológicas dos
meios de transporte, com o surgimento dos trens, caminhões, ônibus e
automóveis. Quase esquecidos de vez, o carro de bois, atualmente é requisito
para funções de cunho religioso, uma das quais que exercia desde os tempos
coloniais, como afirma Bernardino José de Souza: “em São Paulo ficaram
celebres os famosos desfiles de carros de bois em direção á famosa Capela de N.
S. da Aparecida, o que remonta ao meado do século XVIII”. A exceção de uns raros carros de bois, que
ainda podem ser vistos em Cunha ou em qualquer lugar ermo do Brasil, é possível
apreciar os desfiles dos saudosos carros de bois nas cerimônias do Corpus
Christi em Caçapava, nas festas do Divino Espírito Santo em Mogi das Cruzes e
recentemente em missas sertanejas realizadas em Cachoeira Paulista. Fora disso,
só as rodas encostadas em árvores ou carros
estacionados e esquecidos para enfeitar chácaras e sítios. Ainda assim
nos eventos mencionados é possível para a atual geração ter uma noção, se bem
que breve, do que foi a era dos bois. Até a próxima.
Eddy Carlos
Dicas para consulta.
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1967.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
Vol. I Círculo do Livro. São Paulo, s/d.
SPIX e MARTIUS, Johann Baptist von e Karl Friedrich Phillipp von. Viagem pelo Brasil. Companhia Melhoramentos. São Paulo, 1976.
SIQUEIRA, Jairo César
de. Nossa Cidade de São José dos Campos. Fundação Cultural Cassiano
Ricardo. São José dos Campos, 1991.
SOUZA, Bernardino José
de. Ciclo do Carro de Bois no Brasil.
Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1958.
SOUZA VICENTE, Eddy
Carlos. Uma Janela no Tempo: Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá,
2015.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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