segunda-feira, 20 de março de 2017

A Era dos Bois.

                                 Fotografia de Marc Ferrez; Rio de Janeiro, 1904.


              Desde os primórdios da humanidade, principalmente quando o homem deixa de ser caçador e coletor e desenvolve a agricultura, tornando-se assim sedentário, sempre houve a necessidade de transportar determinadas cargas ou produtos de um lugar para o outro. Nas primeiras formas de organização de comunidade, os líderes determinavam que um grupo de pessoas, ou súditos, devessem prestar serviços gratuitos para o bem comum. Aos poucos, essas comunidades evoluíram para outra forma, que chamamos de pré-estado, onde a classe dominante impõe por meio da servidão forçada a quantidade de trabalhos prestados, incluindo o transporte de cargas. Como, naturalmente, a força física humana não fosse o suficiente, a domesticação de animais para tal, foi a solução e, quando a roda é desenvolvida aproveita-se a tração animal  para puxar ou transportar mercadorias, utilizando um tipo primitivo de carro. Ainda assim cabia aos servos se ocuparem do carregamento e conduções dos animais domesticados. Por outro lado, o desenvolvimento da roda, datado de, aproximadamente 14.000 anos no Oriente e 9.000 na Europa, foi utilizado também na “arte” da guerra, com o surgimento dos primeiros carros de combate movidos à tração animal.
            Todavia, para os transportes de cargas e de pessoas, o animal utilizado desde tempos remotos foi o boi. Segundo Bernardino José de Souza, “o boi e o cavalo foram, provavelmente, os primeiros animais utilizados na tração dos veículos. Quanto aos bovinos, é assente entre os estudiosos, que lhes cabe a primazia no tempo, aparecendo já como animais de tiro nas gravuras rupestres da idade do bronze; é o que também consta das mitologias germânicas e referem às tradições mais antigas dos  povos da antiguidade oriental e clássica”. Na realidade enquanto que os bois eram úteis ao transporte das colheitas no meio rural, o cavalo era destinado ao tiro dos carros de combate, assumindo uma função puramente militar, isso bem antes da formação da cavalaria. Dessa forma, os bovinos já eram utilizados pelo homem na Mesopotâmia, Egito, China e Índia, além da Grécia e Roma. Também entre os hebreus, o uso de carro de bois foi muito difundido e, até entre os filisteus, que usavam os bois em guerras para o transporte de víveres e armamentos, como ocorreu em 1195 a.C., na guerra contra o Egito de Ramsés III.
            Com a conquista e expansão do Império Romano, o uso do carro de bois, espalhou-se pelo imenso território, incluindo os territórios da Lusitânia e Hispânia, ambos formando a Ibéria, ou seja, Portugal e Espanha. No dia-dia dos romanos e suas possessões, o carro de bois, chamado por eles, de plaustrum, compunha-se, segundo Bernardino José de Souza, “de duas partes principais: o rodado e o lastro ou mesa (...). O rodado constava de duas rodas ligadas por um eixo (...), O estrado era um lastro de tábuas do qual partia o timão ou cabeçalho (temo) para a atrelagem das parelhas de bois”. Em Portugal, ao longo dos séculos, o carro sofreu algumas alterações e outras denominações. Na região do Algarve, o carro com eixo de ferro e roda raiada, foi chamado de carreta permanecendo, porém, inalterado no Alentejo, o carro com eixo de madeira móvel ou fixo. De Portugal, o carro de bois foi levado para os trópicos durante a fase das Grandes Navegações. Os primeiros engenhos de açúcar no Brasil, entre 1526 e 1545, nas Capitanias de São Vicente, Itamaracá, Bahia e Pernambuco, contaram com a introdução e auxilio do carro de bois. Com a instalação do Governo-Geral com Tomé de Souza em 1549, seu uso foi incentivado e difundido por todo o território, sendo usado, inclusive na construção da cidade de Salvador. Mas é nos engenhos que a força bovina é sempre requerida. Porém, Antonil exorta os senhores de engenho a serem cuidadosos com seus animais, lembrando que os mesmos, “que vêm do sertão cansados e maltratados no caminho, para bem não se hão de pôr no carro, se não depois de estarem pelo menos ano e meio no pasto nôvo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho mais leve, começando pelo tempo do verão e não no do inverno”. Lembra ainda o jesuíta que nos engenhos eram necessários manter de quatro e cinco carros com doze ou catorze juntas de bois. Antes de prosseguimos torna-se necessário uma descrição dos componentes e um carro de bois e suas variações.
            Os carros de bois possuem equipamentos feitos de madeira, couro ou fibras e ferro, de acordo com a análise do pesquisador Bernardino José de Souza. Os componentes de madeira são: a canga, utilizada em todo o território nacional, confeccionada em uma única peça leve, apoiada no pescoço dos bois; o jugo, mais pesado e mais utilizado na região sul; o canzil, hastes de madeira que prende o boi pelo pescoço; o cambão usado para interligar as juntas; a chavelha; o cambito, usado para fixar a carga na mesa. As peças de couro são: a brocha, que prende o pescoço dos bois por baixo, o tamoeiro, que prende a carga do coice, a tiradeira; etc. As peças de ferro substituem em alguns locais, os cambões feitos de madeira. Cada junta representa dois bois e de acordo com a necessidade, podem ser utilizadas várias juntas, assim como um só animal. Quanto aos animais, são escolhidos para o trabalho os da raça zebu, franqueiro, caracu, gir, guzerá, nelore, malabar, china, etc. O ofício de conduzir uma ou mais juntas de bois é dividido entre dois profissionais: o condutor, geralmente um homem adulto e chamado de carreiro, ou carreteiro no Rio Grande do Sul; e o ajudante, sempre um rapazola, chamado também de guia. O já mencionado Bernardino José de Souza afirma que o “carreiro ou carreteiro é propriamente o condutor do carro de bois, responsável, antes do mais pela sua eficiência, segurança e utilidade. O guia é o seu ajudante ou auxiliar nas diferentes atividades da condução do veículo e da execução dos serviços correlatos”. A principal característica do carro de bois é o “canto”, produzido quando este está em movimento e que é tão antigo quanto a própria civilização. O som é feito, devido ao atrito das cavas do eixo contra os cocões e chumaços, o “canto” é alterado com lubrificantes empregados e à menor ou maior carga. Com a urbanização e novos padrões de postura, tais “cantos” foram proibidos, como veremos adiante.   
          Retornando ao uso de carro de bois ao longo da História do Brasil, verifiquemos alguns relatos. Dentre as várias utilidades, o pintor francês Jean Baptiste-Debret, ao comentar uma tela de sua autoria, afirma que na exploração de granito o transporte era feito por carros de bois. Na tela, “negros carregam grandes blocos de granito num carro atrelado por quatro bois”. Até para fatos curiosos, o carro de bois foi utilizado. Em 1819, em viagem pela Bahia, os cientistas Spix e Martius, relataram o episódio do meteorito de Bendegó. Encontrando próximo ao riacho Bendegó em 1784 por um morador do sertão de Monte Santo, Joaquim da Mota Botelho, as autoridades foram avisadas “da existência desse bloco metálico, que a princípio se julgava ser prata e, por ordem do Governador, Sr Rodrigo José de Menezes, tentou a Capitão-mor Bernardo de Carvalho removê-lo. Construíu-se um carro baixo, sobre o qual foi penosamente içado o bloco, e debalde esforçaram-se removê-lo do lugar com doze bois. Com vinte juntas de bois, conseguiu-se trazer o maciço bloco, um ano depois, até o riacho, de onde, porém, nunca mais puderam arredá-lo”. Somente em 1888, o meteorito de Bendegó foi transportado para o Rio de Janeiro, de trem, ficando exposto no Museu Nacional. Essas são apenas algumas das utilidades do carro de bois. Antes mesmo durante e após a fase do tropeirismo e da ferrovia, o carro de bois sempre esteve presente em todas as regiões do Brasil, transportando lenha, açúcar ou cana, café, milho, leite, madeiras para construção, famílias para festejos, andores de santos  em procissões, viveres e munições em guerras, além de cadáveres para sepultamento. Até mesmo em festas populares como o Carnaval, o carro de bois era usado como carro alegórico. Diversas personalidades que escreveram sobre o Brasil, ao longo do século XIX, relataram o uso do carro de bois, como Rugendas ao pintar o quadro “Família de Fazendeiros”. Na tela, um carro puxado por uma junta de bois e rodas maciças, transporta quatro senhoras em uma paisagem rural de 1835, acompanhadas por um cavaleiro e dois homens à pé. Outro que comentou sobre o veículo de tração animal bovino é Ferdinand Denis em 1837, além de Charles Ribeyrolles com ilustrações de Vitor Frond em 1857.
            Como não poderia ter sido diferente, a região do Vale do Paraíba utilizou-se muito do carro de bois, tanto nas áreas rurais como nos centros urbanos. Cidades que conhecemos atualmente como Jacareí, Guaratinguetá, Taubaté, São José dos Campos, Caçapava, Guararema, Lorena, Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Queluz, Lavrinhas, etc. não teriam se desenvolvido, primeiramente, sem o carro de bois e, em seguida sem o tropeiro. Mesmo com o advento da cultura cafeeira, os carros de bois eram utilizados nas diversas fazendas valeparaibanas, para percursos curtos e transportes variados, como já mencionados anteriormente. Na região do Embaú, outrora sede do Município de Cruzeiro e atualmente bairro de Cachoeira Paulista, a Fazenda Conceição, de João Joaquim Fleming, utilizava tal carro para transportar cargueiros de cana e mandioca, conforme descrito no seu inventário, de 1849. A inventariante foi a filha do irlandês, Carolina Leopoldina Fleming. Outra propriedade que não dispensava o carro tirado por bovinos era a Fazenda Boa Vista, de Manuel de Freitas Novaes, o conhecido Major Novaes que foi vereador no Embaú. Em seu inventário, de 1898, consta à relação de quarenta e dois bois de carro, ou seja, mais de vinte juntas; não aparece, porém, a quantidade dos carros propriamente ditos. A Fazenda Boa Vista pertencia ao Embaú; desde 1934, pertence à atual cidade de Cruzeiro. Também no Embaú, a Fazenda Godoy era outra a não prescindir do uso do carro de bois. No inventário de seu proprietário, João de Godoy Fleming, iniciado em 1910, foram arrolados três carros e doze juntas de bois, além de um carretão de madeira, puxando também por bovinos. Os referidos carros eram necessários para o transporte de lenha, café, sal, açúcar, passageiros, etc. Outras fazendas no Embaú possuíam os seus carros de bois, como a de Francisco de Godoy Fleming e a Fazenda Rio Branco de Chrispim Bastos. Adjacente ao Embaú fazendeiros de Cachoeira, Brejetuba, Passa Vinte, etc., não abriam mão da utilidade do carro de bois.
            Outra localidade marcada pela presença do carro de bois foi São José dos Campos. Nas Fazendas Cachoeira, no Varadouro; Ibirarema e Santo Agostinho na Vargem Grande; Montes Claros, Pau d’Alho, Taquari, etc., era constante o trânsito dos carros com as “cantigas” produzidas com o movimento dos mesmos. Em obra conceituada o Profº. Jairo César de Siqueira recorda com saudades um período de sua infância, mais precisamente o ano de 1925 em São José dos Campos. Descrevendo um cenário longínquo de um dia de domingo daquele ano, o Profº. Jairo afirma que desde o amanhecer “chegavam os carros de bois vindos da zona rural, que entravam no centro da cidade galgando as ladeiras que protegiam a principal área comercial, e subiam pela encosta do Lavapés, pela entrada do Serimbura, pela Rua Paraibuna, pela ladeira do Matadouro ou pela Rua Paraíba, o único caminho para a Mantiqueira”. Junto com as famílias que vinham da roça para as missas ou festejos dominicais, os carros de bois chegavam carregados de hortaliças, verduras, frutas, mandiocas, rapadura, lenha e jacás com patos e galinhas. A antiga Rua do Mercado (atual Rua Siqueira Campos) ficava lotada com carros de bois em comboios ou isolados, transitando a passo lento e produzindo os chiados próprios de cada carreiro, identificando as fazendas, ás quais pertenciam respectivamente. Mas é em um relato pessoal que o Profº. Jairo César de Siqueira expressa o seu profundo saudosismo de infância, narrando os períodos de férias escolares que passava na Fazenda Pau d’Alho, de propriedade dos tios. Vale a pena citar tal relato: “Assim que me acomodava entre latas de querosene, rolos de cordas e de arames farpados ou não, caixotes de sabão de pedra, barricas de pregos, engradados de enxadas, mantas de carne seca e sacos de açúcar preto, e de outras utilidades e encomendas, o carreiro alertava a junta da guia: ‘Eia Pintado! Eia Russo!’ (...). O caminho era percorrido com o acompanhamento musical dos chiados das rodas de eixo fixo, que giravam com elas, enquanto o atrito provocava aquele chiado de cigarra nova, que era uma deliciosa música para mim”.
            Entretanto, o som que para o menino Jairo agradava, para muitos, e isso em todo o Brasil, incomodava. Já nos primórdios do século XX, em várias cidades foram proibidas as músicas dos carros de bois. Para obedecer às leis municipais e escaparem de multas, Bernardino José de Souza afirma que antes de chegar no perímetro urbano, os carreiros passavam sabão nas empolgueiras dos eixos, afrouxando, além disso, as cunhas dos cocões. Em resposta às proibições, que constavam nos Códigos de Postura de cada município, aqueles que eram contrários à medida reagiam de formas, às vezes irônicas e jocosas, como ocorreu em Lorena, no Carnaval de 1919, quando os foliões desfilaram pelas ruas e cantaram versos, acusando o prefeito da época de proibir os cantos de carros de bois, porque isto o incomodava. Se não bastasse a “cantiga” dos carros, logo em seguida as autoridades passaram a proibir o trânsito desses veículos nas estradas de rodagem, alegando que os mesmos danificavam as vias públicas. Mais uma vez ao recorrermos a Bernardino José de Souza, mencionamos a norma estabelecida pelo Regulamento das Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo, definida pelo Decreto 4.216, de 13 de abril de 1927 e citado pelo referido autor em sua obra. No artigo 75, consta que nas “estradas construídas e conservadas pelo Estado é proibido o trânsito de carros de eixo móvel, sob pena de multa de 500$000 (quinhentos mil-réis), da primeira vez e de 1:000$000 (um conto de réis) em cada reincidência”. Na realidade o Brasil estava vivenciando um período do auge da burguesia e ascensão de empresários ligados à indústria, ou seja, uma nova elite que relacionava o passado ao atraso. Tudo o que representasse o cenário rural e agrícola deveria ser execrado da sociedade da “belle epoque”. Sendo assim, os carros de bois ficaram restritos às fazendas e estradas ou trilhas que as interligassem.
            Por outro lado, já competindo com as tropas de muares, os carros de bois, junto com os tropeiros, sucumbem às inovações tecnológicas dos meios de transporte, com o surgimento dos trens, caminhões, ônibus e automóveis. Quase esquecidos de vez, o carro de bois, atualmente é requisito para funções de cunho religioso, uma das quais que exercia desde os tempos coloniais, como afirma Bernardino José de Souza: “em São Paulo ficaram celebres os famosos desfiles de carros de bois em direção á famosa Capela de N. S. da Aparecida, o que remonta ao meado do século XVIII”.  A exceção de uns raros carros de bois, que ainda podem ser vistos em Cunha ou em qualquer lugar ermo do Brasil, é possível apreciar os desfiles dos saudosos carros de bois nas cerimônias do Corpus Christi em Caçapava, nas festas do Divino Espírito Santo em Mogi das Cruzes e recentemente em missas sertanejas realizadas em Cachoeira Paulista. Fora disso, só as rodas encostadas em árvores ou carros  estacionados e esquecidos para enfeitar chácaras e sítios. Ainda assim nos eventos mencionados é possível para a atual geração ter uma noção, se bem que breve, do que foi a era dos bois. Até a próxima.
                                                                                                                     Eddy Carlos


Dicas para consulta.
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1967.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Vol. I Círculo do Livro. São Paulo, s/d.
SPIX e MARTIUS, Johann Baptist von e Karl Friedrich Phillipp von. Viagem pelo Brasil. Companhia Melhoramentos. São Paulo, 1976.
SIQUEIRA, Jairo César de. Nossa Cidade de São José dos Campos. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos Campos, 1991.
SOUZA, Bernardino José de. Ciclo do Carro de Bois no Brasil. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1958.
SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo: Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015.


Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

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