O fato narrado a seguir não ocorreu no Vale do Paraíba, mas
no Estado do Rio de Janeiro há um século. Porém, como um dos personagens
envolvidos nasceu no Embaú e estudou em Lorena, consideramos oportuno elaborar
este artigo no intuito de resgatar sua memória, hoje totalmente esquecida. Até
a década de 1970, para fazer uma viagem da cidade do Rio de Janeiro até Niterói
haviam duas possibilidades. Uma por terra, contornando a orla da Baía da
Guanabara, a mais utilizada; outra pela própria baía, cruzando-a em barcos,
barcaças, lanchas, etc. Essa segunda alternativa era mais utilizada como
atividades recreativas e turísticas de cidadãos brasileiros e estrangeiros. Com
a inauguração em 1974, durante o Governo Militar, da ponte Rio-Niterói, surge
uma terceira opção. Com seus 14 quilômetros de extensão, essa ponte passa a ser
a mais utilizada, encurtando a distância entre as duas cidades. Essa região
geográfica do Sudeste do Brasil sempre foi famosa ao longo de nossa história.
Disputada por portugueses e franceses, foi ocupada pelos últimos em 1555,
quando Nicolas Durand de Villegaignon funda a colônia da França Antártica. Em
1572 os lusos fundam a Vila de São Sebastião do Rio de Janeiro e com a expulsão
dos franceses a Coroa portuguesa consolida o seu domínio nos trópicos. Ao longo
dos séculos, diversos navios afundaram na Baía da Guanabara, entre avarias
causadas por bombardeios, tanto portugueses como de outras nacionalidades.
Parte da baía acabou se transformando em um cemitério de navios, sempre evitado
e alertado pelas autoridades brasileiras. Devido à beleza natural que a
paisagem oferece (ou oferecia, após tanta poluição) era comum o passeio de
barcos, como citado. Algumas escolas proporcionavam momentos de lazer para seus
alunos. Uma dessas escolas resolveu oferecer esse lazer para os alunos em
outubro de 1915, cujo resultado analisaremos a seguir.
Primeira
instituição salesiana de ensino a se instalar no Brasil em 1884, na cidade de
Niterói, o Colégio Santa Rosa logo se tornou disputado pela qualidade escolar e
acadêmica, religiosa ou cientificamente. Mesmo com a implantação de mais duas
unidades, em São Paulo em 1885 com o Liceu Coração de Jesus, e em Lorena em
1890 com o Colégio São Joaquim, o Santa Rosa ainda era o mais procurado no
início do século XX. Diversos alunos, de várias partes do país, buscavam os
colégios salesianos e muitos ao optarem pela vocação sacerdotal ou até mesmo
pela docência, rumavam para o Santa Rosa. Entre o final do século XIX e início
do XX, um aluno interno do Colégio São Joaquim ingressa no Santa Rosa e mais
tarde torna-se professor da instituição. Esse era Otacílio Ascânio Nunes, cuja
figura iremos abordar a partir de agora.
Em 1887 o
Embaú sediava a Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro e no dia 26 de
agosto daquele ano nascia Otacílio. Ignoramos os nomes de seus pais, mas
sabemos que ficara órfão de ambos bem criança, sendo criado por Coleta Maria
Augusta, natural do Passa Vinte e descendente de índios Purís. Já residindo no
Embaú, em condições precárias e tendo que cuidar de sua própria prole, Coleta
encaminha Otacílio em 1897 para o Colégio São Joaquim, deixando-o aos cuidados
dos padres salesianos. O Pe. Antônio Dalla Via, Diretor do Colégio Santa Rosa
escreve em 1915 que o menino Otacílio “foi aceito no nosso Collegio em Lorena
em 1897, onde permaneceu até 1906. Esteve como aspirante no Lyceu do S. Coração
em S. Paulo, sendo depois admitido ao professorado, na nossa Sociedade, para a
educação religiosa e scientifica da juventude desvalida”. No ano de 1907, o
jovem Otacílio transfere-se para Niterói, ingressando no Colégio Santa Rosa,
onde desenvolveu e aplicou os ofícios de professor, músico, tradutor, entre
outras atividades. Ao longo de sua permanência no Santa Rosa, Otacílio Nunes
lecionou Álgebra, Desenho, Física, Química, História Natural e História
Universal. No campo das letras, conhecia e falava francês, inglês e italiano,
além do latim, sendo por isso requisitado para traduzir obras literárias de
conteúdo de formação moral e religiosa. Dentre as obras traduzidas para a
língua portuguesa pelo Profº Otacílio destacam-se “Desventura e Inocência”, “A
Cruz e a Espada”, “O Bicho de Sete Cabeças” e “A Confissão da Rainha”. Como
músico integrava a banda do colégio, tocando piston, chegando a atuar como
regente da mesma. Exímio atleta praticava futebol com seus alunos. Em 1913
Otacílio Nunes faz a profissão perpétua. Apesar de toda essa trajetória de estudos
e dedicação à causa salesiana, o Profº Otacílio Nunes mantinha contato com a
família que o criara até os 10 anos de idade. Considerava como mãe, Coleta
Maria Augusta, além da irmã de criação Ângela Nunes, esta casada com Eduardo
José de Oliveira, todos agregados da Fazenda Godoy no Embaú. Infelizmente, o
Profº Otacílio acabou ficando mais conhecido com sua morte, ocorrida em uma
tragédia que até os dias de hoje é motivo de dor e tristeza na comunidade
salesiana.
No dia 26 de
outubro de 1915, uma terça-feira, a cidade do Rio de Janeiro preparava-se para
comemorar o Jubileu de Prata de episcopado do Cardeal-Arcebispo, Dom Joaquim
Arcoverde Cavalcanti. Segundo a escritora Maria Aparecida Vitta Maya, os padres
salesianos, “do Colégio Santa Rosa de Niterói, querendo que os seus educandos
se associassem às grandes festas programadas, organizaram uma excursão àquela
cidade (Rio de Janeiro). Foram dias de grande expectativa entre os alunos”.
Para fazer a travessia da Baía da Guanabara, a direção do colégio contratou
junto à Companhia Cantareira, que explorava o serviço, a barca Sétima. A
Revista Salesiana de 1916 afirma que eram em torno de 330 alunos que fizeram o
passeio. Porém Vitta Maya afirma que o Santa Rosa mantinha um batalhão militar
composto de 328 praças. Esse batalhão, mais os alunos regulares, 12
professores, alguns funcionários e o Diretor, Pe. Antônio Dalla Via, além de três
cavalos cedidos pela Força Pública do Rio de Janeiro, embarcaram na Sétima. Apesar da confusão dos
números, entre os alunos e o batalhão militar, fiquemos com a narrativa da
Revista Salesiana, a qual configura-se mais confiável. Após a travessia
tranquila pela baía, a barca Sétima atracou no cais Pharoux e os alunos
perfilaram-se para a apresentação na capital federal. Uma multidão os aguardava
perto da residência episcopal, o Palácio da Glória. Ao som da banda, com
instrumentos reluzentes, o Profº Otacílio Nunes atuava como regente da mesma.
Segundo Maria Aparecida Vitta Maya, enquanto os padres salesianos e seus alunos
passavam garbosos, “calorosos aplausos eram ouvidos de ponta a ponta do
cortejo. Inúmeros populares cumprimentavam os padres pela disciplina e beleza
de seus alunos”. O desfile passou diante do Cardeal Arcoverde, que aplaudia a
exibição dos alunos do Colégio Santa Rosa. Saindo do palácio, o batalhão
salesiano e demais alunos, após breve descanso, regressaram para a barca, para
se servirem de um lanche preparado pela direção do colégio. Uma nova apresentação
deveria ocorrer pelas 16 horas do mesmo dia. Seria na Catedral da Candelária e
além do Cardeal Arcoverde, os homenageados deveriam ser o Presidente da
República, Wenceslau Brás e o Presidente do Estado, Nilo Peçanha. Mas o destino
cancelaria essa segunda apresentação, e de maneira trágica.
Como havia um
tempo livre depois do lanche, o Diretor Pe. Dalla Via, decidiu oferecer aos
alunos um passeio à parte. Entre as 14 e 15 horas a barca singra as águas
calmas da Baía da Guanabara. Em meio à paisagem natural e o céu azul, alunos,
padres e professores se divertiam, enquanto a tripulação conduzia a barca.
Entre os docentes, Otacílio Nunes sorria feliz, conforme o relato de Vitta
Maya. Segundo a escritora, “Octacílio era de compleição física avantajada e
gozava de muita saúde. Seu porte atlético, seus músculos vigorosos e
resistentes representariam fatores fundamentais que viriam a suceder”. A
tripulação, sob o comando de Mestre Januário, levava a barca Sétima para perto
da ilha de Moncanguê Grande, justamente na área considerada perigosa e por isso
demarcada com boias de alerta pelas autoridades. De repente a embarcação sofre
um forte abalo. O casco havia se rompido e rapidamente o interior da barca
começa a ficar inundado. Negligência ou não, o comandante acabou conduzindo a
barca para a zona de perigo. Ao invés de
rumar direto para a ilha de Moncanguê, forçando o encalhe da barca na mesma,
Januário prossegui para a parte mais funda do canal e um novo estrondo
acontece. Com o segundo baque o pânico e o terror tomam conta do cenário,
principalmente das crianças. Em vão os padres pediam calma para os alunos.
Vitta Maya relata que, o “contraste das emoções, invertidas abruptamente, causa
um verdadeiro pandemônio. (...). Gritos, ruídos de corpos atirando-se à água, a
esmo, crises de choro, ordens de comando dadas aos berros pelos padres e
professores invadiam o ar, num turbilhão de sons que mexia com os nervos”.
Lentamente, a
barca Sétima foi sendo tragada pelas águas da Baía da Guanabara. Agora a
escritora Vitta Maya afirma que em torno de 400 crianças estavam na embarcação
e muitas não sabiam nadar. Como foi constatado mais tarde, a barca não foi
vistoriada e isso agravou a situação no momento desesperador. A primeira
providência do Diretor Pe. Dalla Via foi recorrer aos salva-vidas; estavam bem
amarrados aos ganchos e impossibilitados de serem usados. Os escaleres foram
outra alternativa, mas estavam enferrujados. Nesse meio tempo, observando de
longe e após tentar alertar para o perigo, a lancha Cruzeiro, do Lloyd, comanda
por Pedro Firmiano, rumou para o local e começou a salvar as crianças. Outras
embarcações foram chegando; a Rio de Janeiro e a Leopoldo de Bulhões, também do
Lloyd, e a São Salvador, da Defesa Móvel. A partir de Moncanguê, as
autoridades, através de radiogramas, solicitavam a vinda urgente de lanchas,
incluindo as da polícia marítima. Foram enviados também três submarinos para o
resgate das vítimas. Durante duas horas de um intenso trabalho e dedicação, uma
luta contra as ondas, os salvadores faziam o possível e o impossível para
resgatar as vítimas. Vitta Maya a firma que era “uma luta terrível contra o
poder da massa salgada a fim de trazer, sãos e salvos, os alunos salesianos”. Mais
uma embarcação chega para auxiliar; é o rebocador Tristão, que resgata
cinquenta crianças e quatro padres, salvos por Otacílio Nunes. Nessa operação
de salvamento, duas pessoas se destacaram: Pedro Firmiano, da lancha Cruzeiro,
e o Profº Otacílio Nunes. O primeiro, habituado aos mares salvou mais de uma
centena de crianças, resgatando de três a cinco por vez. Ao Prof ] Otacílio é
atribuído também o resgate de mais de 100 alunos, levando no dorso até quatro
por vez. Infelizmente as suas forças, a despeito da boa forma física, começavam
a se exaurir e quando trazia dois meninos, que seguram seu pescoço, não
aguentou mais. Conforme a narrativa de Vitta Maya, Otacílio estava exânime. “O
bravo mestre Octacílio trocava sua vida pelas dezenas de outras as quais
salvara. Dias depois, seu corpo boiava nas praias de Botafogo, junto com o
cadáver de um menino”. Todo o aparato de resgate e os esforços hercúleos de
Pedro Firmiano e Otacílio Nunes não conseguiram impedir a morte de 27 crianças.
Assim que cessara a operação de resgate, toda a tripulação da barca Sétima foi
presa e durante o inquérito, o principal responsável alegou que confundira o
barulho do impacto com a algazarra dos alunos. Afirmou ainda que não havia
visto as boias de alerta, nem ouvido os apitos de alarme, emitidos pela lancha
Cruzeiro. Por volta das 18 horas, escafandristas já haviam retirado sete
cadáveres, prontamente identificados. Logo em seguida chega à Moncanguê a barca
Quarta que levaria os mortos e sobreviventes para Niterói. A repercussão do
acidente foi imediata. A Revista Careta publicou intensa reportagem e
fotografias da tragédia, incluindo dos defuntos e sepultamentos. Somente no dia
31 de outubro de 1915, foi confirmado oficialmente o número de mortos: 27
alunos e o Profº Otacílio Nunes. No funeral coletivo compareceram Wenceslau
Brás, Nilo Peçanha, o Cardeal Arcoverde, além dos bispos de Campinas, Pouso
Alegre e São Paulo.
Considerado
como o herói da barca Sétima, o Profº Otacílio Nunes foi sepultado no Cemitério
do Maruí. Um ano depois, em 1916, o Bispo de Niterói, Dom Agostinho Benassi,
celebra as exéquias pelas vitimas da barca Sétima. Nesse ano, uma rua do bairro
Santa Rosa, é denominada de “Rua Profº Otacílio”, pela Prefeitura de Niterói.
Outra homenagem é a inauguração do retrato de Otacílio Nunes no Colégio Santa
Rosa, ofertado pelos salesianos de Campinas. No primeiro aniversário da
tragédia, o Diretor do Santa Rosa, Pe. Antônio Dalla Via escreveu sobre o
homenageado: “Deploramos ainda hoje a morte prematura do inolvidável irmão, que
dá a todos nós uma lição e um exemplo, --- e os 27 alumnos, tenras flores, que
a SS. Virgem, no centenário de sua festa, quis transplantar para o céu”. O
aluno do 4º Ano, Adrião Caminha também faz uma homenagem ao mestre: “Octacílio
Nunes, refulge como um heróe; não um heróe que haja angariado glorias nas
batalhas, nos torneios, nas festas do saber, e sim, um heróe, e mais que heróe,
um martyr do amor, da consciencia e do dever”. O episódio da barca Sétima ainda
é lembrado com muita tristeza na comunidade salesiana. Em resposta a uma carta
enviada em meados de 2012, de São José dos Campos, o Pe. Josué Francisco da
Natividade, diz para Maria das Dores, sobrinha-neta de Otacílio Nunes e mãe do
autor deste relato, que o lamentável episódio “nos remete a um passado triste,
um naufrágio, episódio este, que reforçou a retidão de caráter deste professor,
que salvou a vida de muitos de nossos alunos e na História Salesiana, se tornou
um herói”. O mesmo autor encerra este relato, recordando das histórias contadas
pela avó materna, Maria da Glória, sobrinha de Otacílio, no Embaú na década de
1970, sobre a tragédia da barca Sétima e o ato de heroísmo de Otacílio Nunes.
Histórias, por sua vez, contadas pela sua mãe, Ângela Nunes, irmã do herói da
barca. Até a próxima.
Eddy
Carlos.
Dicas para consulta.
MAYA, Maria Aparecida Vitta. O Naufrágio da Barca Sétima. Editora Letras e Letras. São Paulo,
1997.
SALESIANA, Revista. Homenagem
as Saudosas Victimas da Barca “Setima”. Escola Typ. Salesiana. Nictheroy,
1916.
TOLEDO, Francisco Sodero. Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior: A Faculdade Salesiana de
Lorena. Cabral Editora. Taubaté, 2003.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
UM DOS HERÓIS DE VERDADE, ESQUECIDOS! RELEMBREM E CONTEM A HISTÓRIA AOS JOVENS!
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