segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Herói da Barca.


          O fato narrado a seguir não ocorreu no Vale do Paraíba, mas no Estado do Rio de Janeiro há um século. Porém, como um dos personagens envolvidos nasceu no Embaú e estudou em Lorena, consideramos oportuno elaborar este artigo no intuito de resgatar sua memória, hoje totalmente esquecida. Até a década de 1970, para fazer uma viagem da cidade do Rio de Janeiro até Niterói haviam duas possibilidades. Uma por terra, contornando a orla da Baía da Guanabara, a mais utilizada; outra pela própria baía, cruzando-a em barcos, barcaças, lanchas, etc. Essa segunda alternativa era mais utilizada como atividades recreativas e turísticas de cidadãos brasileiros e estrangeiros. Com a inauguração em 1974, durante o Governo Militar, da ponte Rio-Niterói, surge uma terceira opção. Com seus 14 quilômetros de extensão, essa ponte passa a ser a mais utilizada, encurtando a distância entre as duas cidades. Essa região geográfica do Sudeste do Brasil sempre foi famosa ao longo de nossa história. Disputada por portugueses e franceses, foi ocupada pelos últimos em 1555, quando Nicolas Durand de Villegaignon funda a colônia da França Antártica. Em 1572 os lusos fundam a Vila de São Sebastião do Rio de Janeiro e com a expulsão dos franceses a Coroa portuguesa consolida o seu domínio nos trópicos. Ao longo dos séculos, diversos navios afundaram na Baía da Guanabara, entre avarias causadas por bombardeios, tanto portugueses como de outras nacionalidades. Parte da baía acabou se transformando em um cemitério de navios, sempre evitado e alertado pelas autoridades brasileiras. Devido à beleza natural que a paisagem oferece (ou oferecia, após tanta poluição) era comum o passeio de barcos, como citado. Algumas escolas proporcionavam momentos de lazer para seus alunos. Uma dessas escolas resolveu oferecer esse lazer para os alunos em outubro de 1915, cujo resultado analisaremos a seguir.
            Primeira instituição salesiana de ensino a se instalar no Brasil em 1884, na cidade de Niterói, o Colégio Santa Rosa logo se tornou disputado pela qualidade escolar e acadêmica, religiosa ou cientificamente. Mesmo com a implantação de mais duas unidades, em São Paulo em 1885 com o Liceu Coração de Jesus, e em Lorena em 1890 com o Colégio São Joaquim, o Santa Rosa ainda era o mais procurado no início do século XX. Diversos alunos, de várias partes do país, buscavam os colégios salesianos e muitos ao optarem pela vocação sacerdotal ou até mesmo pela docência, rumavam para o Santa Rosa. Entre o final do século XIX e início do XX, um aluno interno do Colégio São Joaquim ingressa no Santa Rosa e mais tarde torna-se professor da instituição. Esse era Otacílio Ascânio Nunes, cuja figura iremos abordar a partir de agora.
              Em 1887 o Embaú sediava a Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro e no dia 26 de agosto daquele ano nascia Otacílio. Ignoramos os nomes de seus pais, mas sabemos que ficara órfão de ambos bem criança, sendo criado por Coleta Maria Augusta, natural do Passa Vinte e descendente de índios Purís. Já residindo no Embaú, em condições precárias e tendo que cuidar de sua própria prole, Coleta encaminha Otacílio em 1897 para o Colégio São Joaquim, deixando-o aos cuidados dos padres salesianos. O Pe. Antônio Dalla Via, Diretor do Colégio Santa Rosa escreve em 1915 que o menino Otacílio “foi aceito no nosso Collegio em Lorena em 1897, onde permaneceu até 1906. Esteve como aspirante no Lyceu do S. Coração em S. Paulo, sendo depois admitido ao professorado, na nossa Sociedade, para a educação religiosa e scientifica da juventude desvalida”. No ano de 1907, o jovem Otacílio transfere-se para Niterói, ingressando no Colégio Santa Rosa, onde desenvolveu e aplicou os ofícios de professor, músico, tradutor, entre outras atividades. Ao longo de sua permanência no Santa Rosa, Otacílio Nunes lecionou Álgebra, Desenho, Física, Química, História Natural e História Universal. No campo das letras, conhecia e falava francês, inglês e italiano, além do latim, sendo por isso requisitado para traduzir obras literárias de conteúdo de formação moral e religiosa. Dentre as obras traduzidas para a língua portuguesa pelo Profº Otacílio destacam-se “Desventura e Inocência”, “A Cruz e a Espada”, “O Bicho de Sete Cabeças” e “A Confissão da Rainha”. Como músico integrava a banda do colégio, tocando piston, chegando a atuar como regente da mesma. Exímio atleta praticava futebol com seus alunos. Em 1913 Otacílio Nunes faz a profissão perpétua. Apesar de toda essa trajetória de estudos e dedicação à causa salesiana, o Profº Otacílio Nunes mantinha contato com a família que o criara até os 10 anos de idade. Considerava como mãe, Coleta Maria Augusta, além da irmã de criação Ângela Nunes, esta casada com Eduardo José de Oliveira, todos agregados da Fazenda Godoy no Embaú. Infelizmente, o Profº Otacílio acabou ficando mais conhecido com sua morte, ocorrida em uma tragédia que até os dias de hoje é motivo de dor e tristeza na comunidade salesiana.
          No dia 26 de outubro de 1915, uma terça-feira, a cidade do Rio de Janeiro preparava-se para comemorar o Jubileu de Prata de episcopado do Cardeal-Arcebispo, Dom Joaquim Arcoverde Cavalcanti. Segundo a escritora Maria Aparecida Vitta Maya, os padres salesianos, “do Colégio Santa Rosa de Niterói, querendo que os seus educandos se associassem às grandes festas programadas, organizaram uma excursão àquela cidade (Rio de Janeiro). Foram dias de grande expectativa entre os alunos”. Para fazer a travessia da Baía da Guanabara, a direção do colégio contratou junto à Companhia Cantareira, que explorava o serviço, a barca Sétima. A Revista Salesiana de 1916 afirma que eram em torno de 330 alunos que fizeram o passeio. Porém Vitta Maya afirma que o Santa Rosa mantinha um batalhão militar composto de 328 praças. Esse batalhão, mais os alunos regulares, 12 professores, alguns funcionários e o Diretor, Pe. Antônio Dalla Via, além de três cavalos cedidos pela Força Pública do Rio de Janeiro,  embarcaram na Sétima. Apesar da confusão dos números, entre os alunos e o batalhão militar, fiquemos com a narrativa da Revista Salesiana, a qual configura-se mais confiável. Após a travessia tranquila pela baía, a barca Sétima atracou no cais Pharoux e os alunos perfilaram-se para a apresentação na capital federal. Uma multidão os aguardava perto da residência episcopal, o Palácio da Glória. Ao som da banda, com instrumentos reluzentes, o Profº Otacílio Nunes atuava como regente da mesma. Segundo Maria Aparecida Vitta Maya, enquanto os padres salesianos e seus alunos passavam garbosos, “calorosos aplausos eram ouvidos de ponta a ponta do cortejo. Inúmeros populares cumprimentavam os padres pela disciplina e beleza de seus alunos”. O desfile passou diante do Cardeal Arcoverde, que aplaudia a exibição dos alunos do Colégio Santa Rosa. Saindo do palácio, o batalhão salesiano e demais alunos, após breve descanso, regressaram para a barca, para se servirem de um lanche preparado pela direção do colégio. Uma nova apresentação deveria ocorrer pelas 16 horas do mesmo dia. Seria na Catedral da Candelária e além do Cardeal Arcoverde, os homenageados deveriam ser o Presidente da República, Wenceslau Brás e o Presidente do Estado, Nilo Peçanha. Mas o destino cancelaria essa segunda apresentação, e de maneira trágica.
          Como havia um tempo livre depois do lanche, o Diretor Pe. Dalla Via, decidiu oferecer aos alunos um passeio à parte. Entre as 14 e 15 horas a barca singra as águas calmas da Baía da Guanabara. Em meio à paisagem natural e o céu azul, alunos, padres e professores se divertiam, enquanto a tripulação conduzia a barca. Entre os docentes, Otacílio Nunes sorria feliz, conforme o relato de Vitta Maya. Segundo a escritora, “Octacílio era de compleição física avantajada e gozava de muita saúde. Seu porte atlético, seus músculos vigorosos e resistentes representariam fatores fundamentais que viriam a suceder”. A tripulação, sob o comando de Mestre Januário, levava a barca Sétima para perto da ilha de Moncanguê Grande, justamente na área considerada perigosa e por isso demarcada com boias de alerta pelas autoridades. De repente a embarcação sofre um forte abalo. O casco havia se rompido e rapidamente o interior da barca começa a ficar inundado. Negligência ou não, o comandante acabou conduzindo a barca para a zona de perigo. Ao invés  de rumar direto para a ilha de Moncanguê, forçando o encalhe da barca na mesma, Januário prossegui para a parte mais funda do canal e um novo estrondo acontece. Com o segundo baque o pânico e o terror tomam conta do cenário, principalmente das crianças. Em vão os padres pediam calma para os alunos. Vitta Maya relata que, o “contraste das emoções, invertidas abruptamente, causa um verdadeiro pandemônio. (...). Gritos, ruídos de corpos atirando-se à água, a esmo, crises de choro, ordens de comando dadas aos berros pelos padres e professores invadiam o ar, num turbilhão de sons que mexia com os nervos”.
          Lentamente, a barca Sétima foi sendo tragada pelas águas da Baía da Guanabara. Agora a escritora Vitta Maya afirma que em torno de 400 crianças estavam na embarcação e muitas não sabiam nadar. Como foi constatado mais tarde, a barca não foi vistoriada e isso agravou a situação no momento desesperador. A primeira providência do Diretor Pe. Dalla Via foi recorrer aos salva-vidas; estavam bem amarrados aos ganchos e impossibilitados de serem usados. Os escaleres foram outra alternativa, mas estavam enferrujados. Nesse meio tempo, observando de longe e após tentar alertar para o perigo, a lancha Cruzeiro, do Lloyd, comanda por Pedro Firmiano, rumou para o local e começou a salvar as crianças. Outras embarcações foram chegando; a Rio de Janeiro e a Leopoldo de Bulhões, também do Lloyd, e a São Salvador, da Defesa Móvel. A partir de Moncanguê, as autoridades, através de radiogramas, solicitavam a vinda urgente de lanchas, incluindo as da polícia marítima. Foram enviados também três submarinos para o resgate das vítimas. Durante duas horas de um intenso trabalho e dedicação, uma luta contra as ondas, os salvadores faziam o possível e o impossível para resgatar as vítimas. Vitta Maya a firma que era “uma luta terrível contra o poder da massa salgada a fim de trazer, sãos e salvos, os alunos salesianos”. Mais uma embarcação chega para auxiliar; é o rebocador Tristão, que resgata cinquenta crianças e quatro padres, salvos por Otacílio Nunes. Nessa operação de salvamento, duas pessoas se destacaram: Pedro Firmiano, da lancha Cruzeiro, e o Profº Otacílio Nunes. O primeiro, habituado aos mares salvou mais de uma centena de crianças, resgatando de três a cinco por vez. Ao Prof ] Otacílio é atribuído também o resgate de mais de 100 alunos, levando no dorso até quatro por vez. Infelizmente as suas forças, a despeito da boa forma física, começavam a se exaurir e quando trazia dois meninos, que seguram seu pescoço, não aguentou mais. Conforme a narrativa de Vitta Maya, Otacílio estava exânime. “O bravo mestre Octacílio trocava sua vida pelas dezenas de outras as quais salvara. Dias depois, seu corpo boiava nas praias de Botafogo, junto com o cadáver de um menino”. Todo o aparato de resgate e os esforços hercúleos de Pedro Firmiano e Otacílio Nunes não conseguiram impedir a morte de 27 crianças. Assim que cessara a operação de resgate, toda a tripulação da barca Sétima foi presa e durante o inquérito, o principal responsável alegou que confundira o barulho do impacto com a algazarra dos alunos. Afirmou ainda que não havia visto as boias de alerta, nem ouvido os apitos de alarme, emitidos pela lancha Cruzeiro. Por volta das 18 horas, escafandristas já haviam retirado sete cadáveres, prontamente identificados. Logo em seguida chega à Moncanguê a barca Quarta que levaria os mortos e sobreviventes para Niterói. A repercussão do acidente foi imediata. A Revista Careta publicou intensa reportagem e fotografias da tragédia, incluindo dos defuntos e sepultamentos. Somente no dia 31 de outubro de 1915, foi confirmado oficialmente o número de mortos: 27 alunos e o Profº Otacílio Nunes. No funeral coletivo compareceram Wenceslau Brás, Nilo Peçanha, o Cardeal Arcoverde, além dos bispos de Campinas, Pouso Alegre e São Paulo.
          Considerado como o herói da barca Sétima, o Profº Otacílio Nunes foi sepultado no Cemitério do Maruí. Um ano depois, em 1916, o Bispo de Niterói, Dom Agostinho Benassi, celebra as exéquias pelas vitimas da barca Sétima. Nesse ano, uma rua do bairro Santa Rosa, é denominada de “Rua Profº Otacílio”, pela Prefeitura de Niterói. Outra homenagem é a inauguração do retrato de Otacílio Nunes no Colégio Santa Rosa, ofertado pelos salesianos de Campinas. No primeiro aniversário da tragédia, o Diretor do Santa Rosa, Pe. Antônio Dalla Via escreveu sobre o homenageado: “Deploramos ainda hoje a morte prematura do inolvidável irmão, que dá a todos nós uma lição e um exemplo, --- e os 27 alumnos, tenras flores, que a SS. Virgem, no centenário de sua festa, quis transplantar para o céu”. O aluno do 4º Ano, Adrião Caminha também faz uma homenagem ao mestre: “Octacílio Nunes, refulge como um heróe; não um heróe que haja angariado glorias nas batalhas, nos torneios, nas festas do saber, e sim, um heróe, e mais que heróe, um martyr do amor, da consciencia e do dever”. O episódio da barca Sétima ainda é lembrado com muita tristeza na comunidade salesiana. Em resposta a uma carta enviada em meados de 2012, de São José dos Campos, o Pe. Josué Francisco da Natividade, diz para Maria das Dores, sobrinha-neta de Otacílio Nunes e mãe do autor deste relato, que o lamentável episódio “nos remete a um passado triste, um naufrágio, episódio este, que reforçou a retidão de caráter deste professor, que salvou a vida de muitos de nossos alunos e na História Salesiana, se tornou um herói”. O mesmo autor encerra este relato, recordando das histórias contadas pela avó materna, Maria da Glória, sobrinha de Otacílio, no Embaú na década de 1970, sobre a tragédia da barca Sétima e o ato de heroísmo de Otacílio Nunes. Histórias, por sua vez, contadas pela sua mãe, Ângela Nunes, irmã do herói da barca. Até a próxima.
                                                                                                            Eddy Carlos.

Dicas para consulta.
MAYA, Maria Aparecida Vitta. O Naufrágio da Barca Sétima. Editora Letras e Letras. São Paulo, 1997.
SALESIANA, Revista. Homenagem as Saudosas Victimas da Barca “Setima”. Escola Typ. Salesiana. Nictheroy, 1916.
TOLEDO, Francisco Sodero. Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior: A Faculdade Salesiana de Lorena. Cabral Editora. Taubaté, 2003.


Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

Um comentário:

  1. UM DOS HERÓIS DE VERDADE, ESQUECIDOS! RELEMBREM E CONTEM A HISTÓRIA AOS JOVENS!

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