Desde que o
ser humano descobriu que o excedente de produtos agrícolas, manufaturados, etc.,
poderia ser utilizado para a obtenção de dividendos financeiros, com o intuito
de acumular riquezas, passou a utilizar-se de outros seres vivos para atingir
tal objetivo. A exploração da força natural de animais como o boi e o cavalo,
vinha já no preparo da terra com o arado para o plantio de cereais, passando ao
transporte das colheitas e materiais diversos como madeiras e pedras para
construções variadas. No Oriente, Ásia Menor e no Norte da África, os
primitivos comerciantes utilizavam-se do camelo e do dromedário, além de elefantes,
enquanto que os povos nativos da América tinham à sua disposição o lhama e a
alpaca. A Europa, Medieval e Moderna, herdou dos romanos o carro-de-bois como
meio de transporte de mercadorias e de pessoas. No século XVI, Portugal
introduziria esse modelo no Brasil Colônia para atender às necessidades dos
engenhos de açúcar, estendendo-o para outras atividades. Nos dois primeiros
séculos da colonização o carro-de-bois “reinou” absoluto no Brasil. Porém no
século XVIII começou a sofrer concorrência de outros meios de transporte.
Bernardino José de Souza afirma que nesse período surgiram “as famosas tropas,
principalmente de muares---mais vigorosos, mais seguros, mais sóbrios que todos
os outros animais de carga”. Mesmo sendo preferido em larga escala para o
transporte de carga, em que se organizavam até 12 juntas de bois, o
carro-de-bois, além de lento, era praticamente impossível de transitar em
terrenos montanhosos, de topografia acidentada, como muitas regiões do Brasil.
Daí a opção pelos muares.
Os muares são seres híbridos, resultante
do cruzamento do jumento com égua, e são muito mais resistentes e fortes do que
os cavalos, além de inteligentes, pois possuem uma percepção e sensibilidade
bem aguçadas. Tanto o burro como a mula foram empregados no transporte de
cargas desde o século XVIII. A procura por burros e mulas impulsionou um grande
mercado de muares, cujo ponto culminante era a feira de Sorocaba, onde eram
negociados milhares de animais anualmente. As mulas vinham de Cruz Alta, considerada
o berço do tropeirismo, na então Capitania de São Pedro do Rio Grande (Rio
Grande do Sul). Mas a primeira viagem de muares para o Brasil, considerada como
oficial ocorreu em 1731, saindo da Colônia do Sacramento, então território
espanhol, conduzida por Cristóvão Pereira de Abreu. O objetivo inicial era
atender a região das minas para o transporte de mantimentos, artigos variados
e, obviamente o ouro extraído. Com a decadência das jazidas, ainda assim os
muares se tornaram indispensáveis no dia-a-dia dos colonos. O historiador Caio
Prado Júnior define a tropa de muares como uma empresa, pois seu “proprietário
é o tropeiro, homem às vezes de grandes recursos e senhor de muitas tropas
empregadas no transporte. Os trajetos são prefixados com datas certas de
chegada e partida, bem como com tabelas estabelecidas de fretes. Uma empresa,
enfim, regularmente organizada”.
Todavia, os muares ocupavam dois cenários nos
períodos colonial e imperial. Para suprir a demanda de burros e mulas nas
fazendas e vilas, os negociantes os adquiriam no Sul, como já foi afirmado, e
faziam uma longa viagem terrestre pelos atuais Estados do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná, até chegar à Vila de Sorocaba. Cada viagem, de vários
negociantes, podia agrupar até duas mil cabeças de muares. Em 1861, o viajante
luso-brasileiro, Augusto Emílio Zaluar, visitou a localidade na época da famosa
feira e, encantado com o que viu, cita em sua obra, o depoimento do Profº
Francisco Luís d’Abreu Medeiros, residente na Vila: “À feira de Sorocaba
concorrem, todos os anos, de quarenta a cinquenta mil bestas, que produzem mais
ou menos quatro mil contos de réis, as quais são conservadas no campo em
derredor da cidade, e rondadas por camaradas, até serem vendidas e seguirem seu
destino”. O outro cenário é a própria tropa de mercadorias, que por mais de
dois séculos predominou nas paisagens rurais e urbanas brasileiras. Segundo
Caio Prado Júnior, cada tropa variava de quantidade, podendo ser de 20 a 50
animais, “sob a direção geral do arrieiro, como se diz em Minas, ou arreiador,
em S. Paulo; ele segue montado, e comanda os tocadores, às vezes escravos, que
vão a pé e se encarregam cada qual de um lote de 7 bestas”. Com o fim da
escravidão, as tropas passaram a contar com trabalhadores livres. E mesmo com o
advento da ferrovia, os tropeiros continuaram imprescindíveis na sociedade
brasileira até meados do século XX.
Contudo, a
atuação das tropas de muares ficou mais evidente no Vale do Paraíba, entre as
serras do Mar e da Mantiqueira, além da região sul de Minas Gerais. Pesquisando
amplamente o folclore e a história valeparaibanos, Tom Maia e Thereza Regina de
Camargo Maia, analisaram minuciosamente a estrutura, organização e logística de
uma tropa de muares. Anotando informações preciosas de ex-tropeiros ou de
indivíduos ligados ao tropeirismo no início da década de 1980, nas cidades de
São Luiz do Paraitinga, Lagoinha, Cunha, Silveiras, Areias, São José do
Barreiro e Bananal, Tom Maia e Thereza Maia reuniram um farto e excelente
material de pesquisa sobre as tropas de muares. Conforme os autores citados, o
arreamento da tropa era composto de: cabresto, feito em couro cru, para
conduzir o animal; cangalha, feita artesanalmente de madeira, contendo os
suadores, estes por sua vez cobertos “por uma capa de couro conhecida como
talabardão”; retranca, feita de couro, contornando a traseira do animal,
sustentada pela “aranha”, que fica sobre o dorso; capa, que serve para cobrir o
arção com o suador, feita de couro; cilha, usada para fixar a capa da cangalha
ao corpo do animal e também fabricada em couro; peitoral, composta de duas
correias, “que saem de cada um dos lados do arção dianteiro, na curva superior
dos ganchos”; bruacas, grandes “malas” de couro com tampa, para carga e que a
protegia das chuvas; jacás, cestas ou balaios feitos de bambu, com formas e
finalidades variadas, como para queijos e galinhas; ligal, peça de couro para
cobrir toda a carga e a cangalha; sobrecarga, cinta que se prende ao ligal;
arrocho, instrumento de madeira roliça para apertar a sobrecarga no ligal. Com
o arreamento completo e a carga a ser transportada cada burro ou mula carregava
em torno de 120 quilos. A tropa contava ainda com três homens em cada lote, com
funções específicas: madrinheiro, geralmente um menino de 8 a 15 anos de idade,
montado em uma égua e descalço, alternando a função de guia e cozinheiro; tocador,
em geral o madrinheiro que se especializou, e era o responsável pela condução
do lote e carga, além de viajar a pé e descalço; arreador; era o chefe ou o
dono da tropa, montado em uma mula bem arreada e era o único a viajar calçado.
Entretanto,
outros profissionais eram necessários para o sucesso de uma tropa, mas nem
sempre precisavam viajar junto. Eram os artesãos, responsáveis pelos apetrechos
e equipamentos: cangalheiro, o que fabricava a cangalha, sempre de madeira;
seleiro, aquele que confeccionava as peças que compunham o arreamento para os
animais, tanto de carga como de sela; trançador, responsável pela confecção dos
itens de couro, desde laços, rédeas, peitorais, chicotes, etc.; jacazeiro, que
fabricava os diversos jacás, cestos ou balaios; funileiro, muito requisitado,
trabalhava em oficinas com forja, bigorna, alicates, martelo, tesouras e
confeccionava os cincerros, a ciculateira, canecas de cobre, panelas de ferro,
etc.; ferreiro, trabalhava também com bigornas e forja, fabricando ferraduras;
ferrador, exclusivo para ferrar o animal, utilizando-se ainda do pito, um
utensílio semelhante a um compasso, com o qual apertava o focinho do animal
para “acalmá-lo”. Pronta uma tropa era hora de seguir viagem que durava meses,
dependendo da distância. Partindo antes do amanhecer, uma tropa percorria em
torno de três léguas por dia. Conforme a análise de Tom e Thereza Maia,
ganhando a estrada, “a tropa seguia, indo à frente, montado na égua com seu
sininho, o menino madrinheiro. Mais atrás, batendo o peitoral de cincerros, a
besta dianteira (também chamada de madrinha). Depois, uma a uma, as bestas de
carga, indo por último a culatreira (esta sempre levava os utensílios de
cozinha). Um pouco distante, na besta melhor arreada, e exibindo suas botinas
ferradas, cavalgava o arreador. Iam todos passo a passo. A carga era pesada, e
longa era a jornada”. Percorrendo trilhas e caminhos montanhosos e íngremes, os
acidentes eram inevitáveis, como a queda em um desfiladeiro, mordidas de
cobras, ferimentos que juntavam bichos (bicheiras), etc. Também na travessia de
pontes e rios, acontecia tanto de animais como de homens morrerem afogados.
Por outro
lado, a atividade de tropeiros, embora penosa, enriqueceu alguns, os donos das
tropas, obviamente. Durante a Guerra do Paraguai, o tropeiro Davi dos Santos
Pacheco, da cidade da Lapa, Paraná, então integrante da Província de São Paulo,
cedeu 150 homens e diversos muares para o Império. Em 1880 Dom Pedro II
concedeu-lhe o título de Barão dos Campos Gerais, nome como o Paraná era
conhecido. No Vale do Paraíba temos um exemplo de tropeiro que se tornou
fazendeiro, político e membro da Guarda Nacional. Nascido em 1829, em Pinheiros
(Lavrinhas) Manoel de Freitas Novaes foi tropeiro, mas atuava mais como o
financista da tropa. Viúvo de Eusébia Maria Couto de Magalhães casa-se com
Fortunata Joaquina do Nascimento, viúva por sua vez, de Antônio Dias Telles de
Castro. Fortunata era dona da Fazenda Boa Vista então localizada em terras do
Embaú e que mais tarde daria origem à atual cidade de Cruzeiro. Sem filhos e
falecendo logo, Fortunata deixa a fazenda para o marido. Em 1868, o mesmo é
nomeado pelo imperador como Major da Guarda Nacional. Nesse cenário, o tropeiro
é identificado também como o agente por excelência do ramo comercial, além de
ser considerado o emissário oficial, o correio, o portador de bilhetes. Sempre
era com ansiedade que a população de uma vila ou fazenda aguardava sua chegada.
De acordo com Gleise Ferreira Sobreiro de Oliveira, “o tropeiro era sempre bem
recebido nas casas senhoriais, sendo-lhes conferidas as mais importantes
missões pela confiança que inspirava e conquistava onde quer que passasse.
(...). O seu prestígio econômico e social acabava por lhes abrir as portas da
política”. Tal como ocorrera com o Major Novaes, que se tornou político
conservador, polêmico e contraditório até a morte em 1898.
Entrementes,
não podemos nos esquecer de que, apesar de tudo, durante a viagem, a estadia
dos integrantes, incluindo o próprio tropeiro, era precária. Parando sempre em
ranchos localizados à margem das estradas e próximos a um curso de água, o
tropeiro armava a trempe, acendia o fogo e cozinhava a sua comida. Após a
refeição, os integrantes da tropa dispunham de um tempo para o lazer, entre
conversas, jogo de baralho e melodias tiradas da viola que sempre “viajava”
junto. Ao longo das estradas, por onde passasse as tropas, os ranchos se
multiplicavam; geralmente amplo, sustentando o imenso telhado em toras de
madeira, os referidos ranchos não possuíam paredes, sendo livre o acesso de
homens e animais. Muitos desses abrigos de tropeiros ficaram famosos,
tornando-se em pouco tempo embriões de futuras cidades. É o caso do Rancho dos
Silveiras, localizado às margens do Caminho Novo da Piedade, que fazia a
ligação da Vila de Lorena até o Rio de Janeiro. Em torno desse pouso de
tropeiro floresceu um povoado, assim como muitos no Brasil, elevado à município
em 1842 com o nome de Vila dos Silveiras. Nesse ínterim, lembremos que o Vale
do Paraíba foi o cenário da saga tropeira durante boa parte da fase colonial,
do Império, atravessando mais de seis décadas do período republicano.
Bernardino José de Souza destaca a importância do tropeiro na integração
nacional, citando Pandiá Calógeras, o qual afirma que mesmo “ocorrendo o risco
de pilhérias intuitivas, não há como negar a imensa dívida do Brasil para com o
burro, elemento de prosperidade e de progresso de norte a sul do território.
Mas onde a sua influência reinou, sem contraste, foi na região das serras do
mar, da Mantiqueira, das vertentes, no Brasil do sul e do centro em suma”.
No
entanto, para garantir um controle maior sobre suas mercadorias, principalmente
o café, muitas fazendas tinham sua própria tropa de muares. Carlos Eugênio
Marcondes de Moura, em levantamento sobre as fazendas cafeeiras valeparaibanas,
constatou a prática através dos inventários analisados. Em Areias, o inventário
de Mariana Antônia dos Santos, de 1825, arrolou 28 muares, entre burros e
mulas, na Fazenda da Picada. Outros dois casos em Areias foram a Fazenda São
Domingos com 32 muares, revelados no inventário de Maria do Carmo em 1826; e a
Fazenda Mundéu com 28 muares arreados. Nessa foi analisado o inventário de Inês
Maria do Nascimento em 1844. O inventário de Luciano José de Almeida, de
Bananal, em 1854 arrolou 78 muares na Fazenda Boa Vista e 69 na Fazenda Campo
Alegre. Também em Bananal, o inventário de Manoel de Aguiar Vallim, de 1878,
apontou 31 bestas de carga na Fazenda Resgate. Em São José do Barreiro, o
inventário de Roque Álvares de Magalhães, de 1866, apontou a existência de 32
muares, entre machos e fêmeas. Porém, o maior número foi registrado no
inventário do Coronel João Ferreira de Sousa, de 1858; foram 115 muares, entre
burros e mulas, na Fazenda Pau d’Alho.
Após a década
de 1960, as tropas, que continuavam ativas, mesmo com o advento da ferrovia,
passaram a sofrer a concorrência de caminhões e automóveis, além das estradas
pavimentadas. Aos poucos as tropas vão desaparecendo, ficando restritas ao
perímetro rural de fazendas e sítios. Ainda assim, tenta-se resgatar a figura e
memória do tropeirismo, como ocorre em Silveiras. A cidade mantém até os dias
atuais o espírito do tropeiro, sobretudo após o trabalho de resgate cultural organizado
pelo sociólogo Ocílio Ferraz entre o final da década de 1970 e início da de
1980. Sendo assim, em 1981 tem início em Silveiras a 1ª Festa do Tropeiro, que
se expande por todo o Vale do Paraíba. Em outras frentes, alguns tropeiros
ainda atuavam no Vale do Paraíba, dando sua contribuição cultural, como Josias
Mendes (falecido em 2014), na própria Silveiras. Outros se tornam ícones
culturais. Zé Mira, que exerceu a função em Jambeiro e São José dos Campos,
ganhou notoriedade com as festas de Moçambique e rodas de violeiros. Ernesto
Villela foi tropeiro na década de 1950 no sul de Minas Gerais e São José dos
Campos, onde se radicou; tornou-se mestre calangueiro e junto com Zé Mira
passou a percorrer o Vale do Paraíba, divulgando a cultura caipira e tropeira.
Ambos, infelizmente, já faleceram.
Conseqüentemente, o progresso “cobra” o seu preço e, junto com o
carro-de-bois, as tropas de muares acabam ficando no passado. Com muito custo
alguns conseguem manter viva a memória do tropeirismo, como fazem Tom Maia,
Thereza Maia e Ocílio Ferraz. Os utensílios e “tralhas” dos tropeiros hoje só são
vistos em museus e centros culturais, exceto quando são organizados eventos
culturais específicos sobre o tema do tropeirismo. O autor do presente relato encerra,
relembrando de seu avô paterno, Sr. José Vicente de Matos, que foi trançador
nas fazendas em que trabalhou na área rural de Cruzeiro (Brejetuba e Rio
Monteiro), de 1946 a 1979. Mesmo aposentado ainda fazia rédeas, cabrestos e
chicotes de couro para quem solicitasse seus ofícios. Assim foi até o ano de
2007, quando falece. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consultas.
FERRAZ, Ocílio José Azevedo. Voltando às origens. CESP/Fundação Nacional em Defesa do
Tropeirismo. Caçapava, 1984.
JÚNIOR, Caio Prado. Formação
do Brasil Contemporâneo. Colônia. Livraria Martins Editora. São Paulo,
1942.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.). Fazendas de Café do Vale do Paraíba. O que
os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo. São
Paulo, 2014.
OLIVEIRA, Gleise Ferreira Sobreiro de. Do Cincerro das Madrinhas das Tropas de Burros ao Silvo das
Locomotivas: o município de Cruzeiro. Editora Átomo. Campinas, 2006.
SOUZA, Bernardino José de. Ciclo do Carro de Bois no Brasil. Cia. Editora Nacional. São Paulo,
1958.
ZALUAR, augusto Emílio. Peregrinação
pela Província de São Paulo. (1860-1861). Biblioteca Histórica Paulista.
Vol. II. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
Excelente trabalho, pelo conteúdo é pela elegância e precisão da linguagem. Lembrou-me as narrativas de Saint Hilaire.
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