segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A Era dos Muares.


          
                                                                                                     
  
           Desde que o ser humano descobriu que o excedente de produtos agrícolas, manufaturados, etc., poderia ser utilizado para a obtenção de dividendos financeiros, com o intuito de acumular riquezas, passou a utilizar-se de outros seres vivos para atingir tal objetivo. A exploração da força natural de animais como o boi e o cavalo, vinha já no preparo da terra com o arado para o plantio de cereais, passando ao transporte das colheitas e materiais diversos como madeiras e pedras para construções variadas. No Oriente, Ásia Menor e no Norte da África, os primitivos comerciantes utilizavam-se do camelo e do dromedário, além de elefantes, enquanto que os povos nativos da América tinham à sua disposição o lhama e a alpaca. A Europa, Medieval e Moderna, herdou dos romanos o carro-de-bois como meio de transporte de mercadorias e de pessoas. No século XVI, Portugal introduziria esse modelo no Brasil Colônia para atender às necessidades dos engenhos de açúcar, estendendo-o para outras atividades. Nos dois primeiros séculos da colonização o carro-de-bois “reinou” absoluto no Brasil. Porém no século XVIII começou a sofrer concorrência de outros meios de transporte. Bernardino José de Souza afirma que nesse período surgiram “as famosas tropas, principalmente de muares---mais vigorosos, mais seguros, mais sóbrios que todos os outros animais de carga”. Mesmo sendo preferido em larga escala para o transporte de carga, em que se organizavam até 12 juntas de bois, o carro-de-bois, além de lento, era praticamente impossível de transitar em terrenos montanhosos, de topografia acidentada, como muitas regiões do Brasil. Daí a opção pelos muares.
          Os muares são seres híbridos, resultante do cruzamento do jumento com égua, e são muito mais resistentes e fortes do que os cavalos, além de inteligentes, pois possuem uma percepção e sensibilidade bem aguçadas. Tanto o burro como a mula foram empregados no transporte de cargas desde o século XVIII. A procura por burros e mulas impulsionou um grande mercado de muares, cujo ponto culminante era a feira de Sorocaba, onde eram negociados milhares de animais anualmente. As mulas vinham de Cruz Alta, considerada o berço do tropeirismo, na então Capitania de São Pedro do Rio Grande (Rio Grande do Sul). Mas a primeira viagem de muares para o Brasil, considerada como oficial ocorreu em 1731, saindo da Colônia do Sacramento, então território espanhol, conduzida por Cristóvão Pereira de Abreu. O objetivo inicial era atender a região das minas para o transporte de mantimentos, artigos variados e, obviamente o ouro extraído. Com a decadência das jazidas, ainda assim os muares se tornaram indispensáveis no dia-a-dia dos colonos. O historiador Caio Prado Júnior define a tropa de muares como uma empresa, pois seu “proprietário é o tropeiro, homem às vezes de grandes recursos e senhor de muitas tropas empregadas no transporte. Os trajetos são prefixados com datas certas de chegada e partida, bem como com tabelas estabelecidas de fretes. Uma empresa, enfim, regularmente organizada”.
         Todavia, os muares ocupavam dois cenários nos períodos colonial e imperial. Para suprir a demanda de burros e mulas nas fazendas e vilas, os negociantes os adquiriam no Sul, como já foi afirmado, e faziam uma longa viagem terrestre pelos atuais Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, até chegar à Vila de Sorocaba. Cada viagem, de vários negociantes, podia agrupar até duas mil cabeças de muares. Em 1861, o viajante luso-brasileiro, Augusto Emílio Zaluar, visitou a localidade na época da famosa feira e, encantado com o que viu, cita em sua obra, o depoimento do Profº Francisco Luís d’Abreu Medeiros, residente na Vila: “À feira de Sorocaba concorrem, todos os anos, de quarenta a cinquenta mil bestas, que produzem mais ou menos quatro mil contos de réis, as quais são conservadas no campo em derredor da cidade, e rondadas por camaradas, até serem vendidas e seguirem seu destino”. O outro cenário é a própria tropa de mercadorias, que por mais de dois séculos predominou nas paisagens rurais e urbanas brasileiras. Segundo Caio Prado Júnior, cada tropa variava de quantidade, podendo ser de 20 a 50 animais, “sob a direção geral do arrieiro, como se diz em Minas, ou arreiador, em S. Paulo; ele segue montado, e comanda os tocadores, às vezes escravos, que vão a pé e se encarregam cada qual de um lote de 7 bestas”. Com o fim da escravidão, as tropas passaram a contar com trabalhadores livres. E mesmo com o advento da ferrovia, os tropeiros continuaram imprescindíveis na sociedade brasileira até meados do século XX.
           Contudo, a atuação das tropas de muares ficou mais evidente no Vale do Paraíba, entre as serras do Mar e da Mantiqueira, além da região sul de Minas Gerais. Pesquisando amplamente o folclore e a história valeparaibanos, Tom Maia e Thereza Regina de Camargo Maia, analisaram minuciosamente a estrutura, organização e logística de uma tropa de muares. Anotando informações preciosas de ex-tropeiros ou de indivíduos ligados ao tropeirismo no início da década de 1980, nas cidades de São Luiz do Paraitinga, Lagoinha, Cunha, Silveiras, Areias, São José do Barreiro e Bananal, Tom Maia e Thereza Maia reuniram um farto e excelente material de pesquisa sobre as tropas de muares. Conforme os autores citados, o arreamento da tropa era composto de: cabresto, feito em couro cru, para conduzir o animal; cangalha, feita artesanalmente de madeira, contendo os suadores, estes por sua vez cobertos “por uma capa de couro conhecida como talabardão”; retranca, feita de couro, contornando a traseira do animal, sustentada pela “aranha”, que fica sobre o dorso; capa, que serve para cobrir o arção com o suador, feita de couro; cilha, usada para fixar a capa da cangalha ao corpo do animal e também fabricada em couro; peitoral, composta de duas correias, “que saem de cada um dos lados do arção dianteiro, na curva superior dos ganchos”; bruacas, grandes “malas” de couro com tampa, para carga e que a protegia das chuvas; jacás, cestas ou balaios feitos de bambu, com formas e finalidades variadas, como para queijos e galinhas; ligal, peça de couro para cobrir toda a carga e a cangalha; sobrecarga, cinta que se prende ao ligal; arrocho, instrumento de madeira roliça para apertar a sobrecarga no ligal. Com o arreamento completo e a carga a ser transportada cada burro ou mula carregava em torno de 120 quilos. A tropa contava ainda com três homens em cada lote, com funções específicas: madrinheiro, geralmente um menino de 8 a 15 anos de idade, montado em uma égua e descalço, alternando a função de guia e cozinheiro; tocador, em geral o madrinheiro que se especializou, e era o responsável pela condução do lote e carga, além de viajar a pé e descalço; arreador; era o chefe ou o dono da tropa, montado em uma mula bem arreada e era o único a viajar calçado.
           Entretanto, outros profissionais eram necessários para o sucesso de uma tropa, mas nem sempre precisavam viajar junto. Eram os artesãos, responsáveis pelos apetrechos e equipamentos: cangalheiro, o que fabricava a cangalha, sempre de madeira; seleiro, aquele que confeccionava as peças que compunham o arreamento para os animais, tanto de carga como de sela; trançador, responsável pela confecção dos itens de couro, desde laços, rédeas, peitorais, chicotes, etc.; jacazeiro, que fabricava os diversos jacás, cestos ou balaios; funileiro, muito requisitado, trabalhava em oficinas com forja, bigorna, alicates, martelo, tesouras e confeccionava os cincerros, a ciculateira, canecas de cobre, panelas de ferro, etc.; ferreiro, trabalhava também com bigornas e forja, fabricando ferraduras; ferrador, exclusivo para ferrar o animal, utilizando-se ainda do pito, um utensílio semelhante a um compasso, com o qual apertava o focinho do animal para “acalmá-lo”. Pronta uma tropa era hora de seguir viagem que durava meses, dependendo da distância. Partindo antes do amanhecer, uma tropa percorria em torno de três léguas por dia. Conforme a análise de Tom e Thereza Maia, ganhando a estrada, “a tropa seguia, indo à frente, montado na égua com seu sininho, o menino madrinheiro. Mais atrás, batendo o peitoral de cincerros, a besta dianteira (também chamada de madrinha). Depois, uma a uma, as bestas de carga, indo por último a culatreira (esta sempre levava os utensílios de cozinha). Um pouco distante, na besta melhor arreada, e exibindo suas botinas ferradas, cavalgava o arreador. Iam todos passo a passo. A carga era pesada, e longa era a jornada”. Percorrendo trilhas e caminhos montanhosos e íngremes, os acidentes eram inevitáveis, como a queda em um desfiladeiro, mordidas de cobras, ferimentos que juntavam bichos (bicheiras), etc. Também na travessia de pontes e rios, acontecia tanto de animais como de homens morrerem afogados.
             Por outro lado, a atividade de tropeiros, embora penosa, enriqueceu alguns, os donos das tropas, obviamente. Durante a Guerra do Paraguai, o tropeiro Davi dos Santos Pacheco, da cidade da Lapa, Paraná, então integrante da Província de São Paulo, cedeu 150 homens e diversos muares para o Império. Em 1880 Dom Pedro II concedeu-lhe o título de Barão dos Campos Gerais, nome como o Paraná era conhecido. No Vale do Paraíba temos um exemplo de tropeiro que se tornou fazendeiro, político e membro da Guarda Nacional. Nascido em 1829, em Pinheiros (Lavrinhas) Manoel de Freitas Novaes foi tropeiro, mas atuava mais como o financista da tropa. Viúvo de Eusébia Maria Couto de Magalhães casa-se com Fortunata Joaquina do Nascimento, viúva por sua vez, de Antônio Dias Telles de Castro. Fortunata era dona da Fazenda Boa Vista então localizada em terras do Embaú e que mais tarde daria origem à atual cidade de Cruzeiro. Sem filhos e falecendo logo, Fortunata deixa a fazenda para o marido. Em 1868, o mesmo é nomeado pelo imperador como Major da Guarda Nacional. Nesse cenário, o tropeiro é identificado também como o agente por excelência do ramo comercial, além de ser considerado o emissário oficial, o correio, o portador de bilhetes. Sempre era com ansiedade que a população de uma vila ou fazenda aguardava sua chegada. De acordo com Gleise Ferreira Sobreiro de Oliveira, “o tropeiro era sempre bem recebido nas casas senhoriais, sendo-lhes conferidas as mais importantes missões pela confiança que inspirava e conquistava onde quer que passasse. (...). O seu prestígio econômico e social acabava por lhes abrir as portas da política”. Tal como ocorrera com o Major Novaes, que se tornou político conservador, polêmico e contraditório até a morte em 1898.
           Entrementes, não podemos nos esquecer de que, apesar de tudo, durante a viagem, a estadia dos integrantes, incluindo o próprio tropeiro, era precária. Parando sempre em ranchos localizados à margem das estradas e próximos a um curso de água, o tropeiro armava a trempe, acendia o fogo e cozinhava a sua comida. Após a refeição, os integrantes da tropa dispunham de um tempo para o lazer, entre conversas, jogo de baralho e melodias tiradas da viola que sempre “viajava” junto. Ao longo das estradas, por onde passasse as tropas, os ranchos se multiplicavam; geralmente amplo, sustentando o imenso telhado em toras de madeira, os referidos ranchos não possuíam paredes, sendo livre o acesso de homens e animais. Muitos desses abrigos de tropeiros ficaram famosos, tornando-se em pouco tempo embriões de futuras cidades. É o caso do Rancho dos Silveiras, localizado às margens do Caminho Novo da Piedade, que fazia a ligação da Vila de Lorena até o Rio de Janeiro. Em torno desse pouso de tropeiro floresceu um povoado, assim como muitos no Brasil, elevado à município em 1842 com o nome de Vila dos Silveiras. Nesse ínterim, lembremos que o Vale do Paraíba foi o cenário da saga tropeira durante boa parte da fase colonial, do Império, atravessando mais de seis décadas do período republicano. Bernardino José de Souza destaca a importância do tropeiro na integração nacional, citando Pandiá Calógeras, o qual afirma que mesmo “ocorrendo o risco de pilhérias intuitivas, não há como negar a imensa dívida do Brasil para com o burro, elemento de prosperidade e de progresso de norte a sul do território. Mas onde a sua influência reinou, sem contraste, foi na região das serras do mar, da Mantiqueira, das vertentes, no Brasil do sul e do centro em suma”.
               No entanto, para garantir um controle maior sobre suas mercadorias, principalmente o café, muitas fazendas tinham sua própria tropa de muares. Carlos Eugênio Marcondes de Moura, em levantamento sobre as fazendas cafeeiras valeparaibanas, constatou a prática através dos inventários analisados. Em Areias, o inventário de Mariana Antônia dos Santos, de 1825, arrolou 28 muares, entre burros e mulas, na Fazenda da Picada. Outros dois casos em Areias foram a Fazenda São Domingos com 32 muares, revelados no inventário de Maria do Carmo em 1826; e a Fazenda Mundéu com 28 muares arreados. Nessa foi analisado o inventário de Inês Maria do Nascimento em 1844. O inventário de Luciano José de Almeida, de Bananal, em 1854 arrolou 78 muares na Fazenda Boa Vista e 69 na Fazenda Campo Alegre. Também em Bananal, o inventário de Manoel de Aguiar Vallim, de 1878, apontou 31 bestas de carga na Fazenda Resgate. Em São José do Barreiro, o inventário de Roque Álvares de Magalhães, de 1866, apontou a existência de 32 muares, entre machos e fêmeas. Porém, o maior número foi registrado no inventário do Coronel João Ferreira de Sousa, de 1858; foram 115 muares, entre burros e mulas, na Fazenda Pau d’Alho.
          Após a década de 1960, as tropas, que continuavam ativas, mesmo com o advento da ferrovia, passaram a sofrer a concorrência de caminhões e automóveis, além das estradas pavimentadas. Aos poucos as tropas vão desaparecendo, ficando restritas ao perímetro rural de fazendas e sítios. Ainda assim, tenta-se resgatar a figura e memória do tropeirismo, como ocorre em Silveiras. A cidade mantém até os dias atuais o espírito do tropeiro, sobretudo após o trabalho de resgate cultural organizado pelo sociólogo Ocílio Ferraz entre o final da década de 1970 e início da de 1980. Sendo assim, em 1981 tem início em Silveiras a 1ª Festa do Tropeiro, que se expande por todo o Vale do Paraíba. Em outras frentes, alguns tropeiros ainda atuavam no Vale do Paraíba, dando sua contribuição cultural, como Josias Mendes (falecido em 2014), na própria Silveiras. Outros se tornam ícones culturais. Zé Mira, que exerceu a função em Jambeiro e São José dos Campos, ganhou notoriedade com as festas de Moçambique e rodas de violeiros. Ernesto Villela foi tropeiro na década de 1950 no sul de Minas Gerais e São José dos Campos, onde se radicou; tornou-se mestre calangueiro e junto com Zé Mira passou a percorrer o Vale do Paraíba, divulgando a cultura caipira e tropeira. Ambos, infelizmente, já faleceram.
              Conseqüentemente, o progresso “cobra” o seu preço e, junto com o carro-de-bois, as tropas de muares acabam ficando no passado. Com muito custo alguns conseguem manter viva a memória do tropeirismo, como fazem Tom Maia, Thereza Maia e Ocílio Ferraz. Os utensílios e “tralhas” dos tropeiros hoje só são vistos em museus e centros culturais, exceto quando são organizados eventos culturais específicos sobre o tema do tropeirismo. O autor do presente relato encerra, relembrando de seu avô paterno, Sr. José Vicente de Matos, que foi trançador nas fazendas em que trabalhou na área rural de Cruzeiro (Brejetuba e Rio Monteiro), de 1946 a 1979. Mesmo aposentado ainda fazia rédeas, cabrestos e chicotes de couro para quem solicitasse seus ofícios. Assim foi até o ano de 2007, quando falece. Até a próxima.
                                                                                                                      Eddy Carlos.

Dicas para consultas.
FERRAZ, Ocílio José Azevedo. Voltando às origens. CESP/Fundação Nacional em Defesa do Tropeirismo. Caçapava, 1984.
JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1942.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.). Fazendas de Café do Vale do Paraíba. O que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo. São Paulo, 2014.
OLIVEIRA, Gleise Ferreira Sobreiro de. Do Cincerro das Madrinhas das Tropas de Burros ao Silvo das Locomotivas: o município de Cruzeiro. Editora Átomo. Campinas, 2006.
SOUZA, Bernardino José de. Ciclo do Carro de Bois no Brasil. Cia. Editora Nacional. São Paulo, 1958.
ZALUAR, augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo. (1860-1861). Biblioteca Histórica Paulista. Vol. II. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br                                                                                                                      

                                                                                                      

Um comentário:

  1. Excelente trabalho, pelo conteúdo é pela elegância e precisão da linguagem. Lembrou-me as narrativas de Saint Hilaire.

    ResponderExcluir