quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O Trem da Serra.

          
            Em artigo anterior, afirmamos que a ferrovia revolucionou os meios de transporte terrestre, tornando-se sucesso nos países europeus, principalmente a Inglaterra, e nos Estados Unidos da América. O chamado mundo “civilizado” vivia a euforia causada pela Revolução Industrial, cujo ápice foi a invenção da máquina a vapor em fins do século XVIII, ocorrida na mesma Inglaterra. Com o acelerado processo de industrialização no Ocidente e a implantação de indústrias, primeiro nas metrópoles e, em seguida nas colônias, ou em países com atraso econômico e tecnológico, o escoamento da produção – tanto industrial como agrícola – necessitava de maior rapidez e diminuição dos custos dos transportes. Na esteira da máquina a vapor, surge a locomotiva, criada por George Stephenson na segunda década do século XIX, conforme já mencionado no referido artigo anterior.
          Entrementes, baseado nas teorias de Adam Smith, o sistema capitalista consolida-se com a já citada Revolução Industrial, a qual ajuda a acentuar a ideia da economia de mercado, relacionada com a produção exclusivamente em função do mesmo mercado, propriedade privada e trabalho assalariado. De acordo com a análise das professoras Vera Vilhena de Toledo, Maria Odette Brancatelli e Helena Lopes, o século XIX “foi, por excelência, o século de afirmação do sistema capitalista e da ferrovia”. A ferrovia, atendendo às características do capitalismo, foi um “investimento rentável porque permitiu maior precisão no horário e encurtou as distâncias, barateando o custo dos transportes”. Com o “boom” ferroviário na Europa, que proporcionou lucros vultosos para os acionistas das diversas companhias de estradas de ferro, bem como para seus respectivos governos, o modelo de transporte por via férrea é exportado para as nações periféricas, subdesenvolvidas, exclusivamente agrícolas ou meras colônias. Com isso, os capitalistas almejavam – e conseguiram – aumentar ainda mais os seus lucros, explorando mão de obra barata, além de usufruir de privilégios concedidos por governos onde se instalassem as ferrovias.
           No Brasil, a implantação da ferrovia coube à iniciativa do empresário Irineu Evangelista de Souza, posteriormente agraciado pelo Império com os títulos de Barão e Visconde de Mauá, ainda que atuando em conjunto com investidores estrangeiros. A estrada de ferro, porém, chegava um pouco tarde, pois em 1854, quando Mauá inaugura a Imperial Companhia de Estrada de Ferro de Petrópolis, com a viagem da “Baroneza”, países como Argentina, México, Peru, Chile e, até Cuba, então colônia da Espanha, já construíam suas respectivas ferrovias e os EUA já haviam construído mais de 14 mil quilômetros de caminhos férreos. Mesmo assim, o sistema ferroviário no Brasil alavancou, atendendo a diversos interesses de grupos como o dos fazendeiros, que desejavam o rápido escoamento de sua produção, principalmente o café; o dos políticos, que apoiavam a construção de ferrovias nas suas províncias, almejando apoio e prestígio e, particularmente o dos acionistas, tanto nacionais, no caso, Mauá, como de estrangeiros, que esperavam um retorno rápido com a garantia de juros concedida pelas autoridades. Investidores ingleses, franceses, belgas, alemães, etc, obtiveram lucros astronômicos com o sucesso do sistema ferroviário. Sendo assim, várias estradas de ferro foram construídas no Brasil, entre o final do Império e o início da República, como a E.F. Pedro II, a E.F Santos-Jundiaí, a Cia. Paulista de Estradas de Ferro, a Minas and Rio Railway, a E.F. São Paulo-Rio de Janeiro, etc. Quando o Governo Republicano se consolida, a E.F. Pedro II e a São Paulo-Rio são unificadas, formando a Central do Brasil, enquanto que a Minas and Rio passa a integrar a Rede Sul-Mineira, mais tarde Rede Mineira de Viação.
             Todavia, se por um lado a ferrovia dinamizou o transporte de mercadorias, ela garantiu também aos acionistas e ao Estado um sucesso com o transporte de passageiros, que viam no trem o símbolo e a imagem do progresso e civilização, comparando-se com a Europa, no que diz respeito a então chamada “belle epoque”. Algumas localidades, no entanto ficaram sem a presença redentora e fascinante da ferrovia, sendo que poucas conseguiram seus próprios ramais, hoje extintos quase que totalmente.  No Vale do Paraíba, em especial no trecho paulista foram construídos ramais ou estradas que se entroncavam com a Central do Brasil, ligando-a com cidades distantes do eixo ferroviário principal. É o caso de Bananal, que com a Estrada de Ferro Bananalense, construída pelos senhores do café, ligava a então capital econômica do Império a Estação da Saudade, no município fluminense de Barra Mansa, entroncando-se com a Estrada de Ferro Pedro II (Central do Brasil). Antes de Bananal, que inaugurara sua ferrovia em 1889, é inaugurada a Estrada de Ferro Minas and Rio Railway, a qual tinha início na Vila do Cruzeiro (cuja sede era então no Embaú), em terras da Fazenda Boa Vista, de propriedade de Manoel de Freitas Novaes, fazendo entroncamento com a “Pedro II” no Km 252. Na realidade, trata-se de uma nova estrada e, não apenas de um ramal, pois após 170 km de percurso, atinge o ponto final na cidade de Três Corações em Minas Gerais. E temos também mais dois exemplos: O Ramal de Benfica, ligando Lorena a Piquete e a Estrada de Ferro Campos do Jordão. Algumas cidades tiveram seus projetos de construção para integrarem-se no eixo férreo entre o Rio de Janeiro e São Paulo, o que não se concretizou devido ao fracasso dos planos, conforme abordamos no já citado artigo anterior. Para termos uma ideia da exclusão da ferrovia em determinadas regiões, citemos o caso da transferência da sede municipal em Cruzeiro em 1901 e, na decadência do Vale Histórico com as suas “Cidades Mortas” parafraseando aqui o ilustre escritor Monteiro Lobato, mesmo Bananal já estar inserida no sistema ferroviário, como mencionado  anteriormente.
          Entretanto, se por um lado majoritário, o sistema ferroviário atendeu às necessidades econômicas, representadas no caso  ora estudado, pelo café que, segundo Hilton Federici, “ampliou a necessidade de melhores condições de circulação de bens e mercadorias”, por outro em pequena escala atendeu a outras funções, como a de transportar doentes para regiões de clima propício à saúde humana. Para ilustrar esse exemplo, citemos a Estrada de Ferro Campos do Jordão, citada acima, que liga a cidade de Pindamonhangaba à região serrana. Segundo a análise de Acrilson de Carvalho e Levy Tenório da Costa, os planos para essa via férrea remontam ao ano de 1892, quando chegou a ser constituída uma empresa para gerenciar as obras, sem apresentar nenhum resultado positivo. Apesar de São José dos Campos ser considerada na época, cidade de clima saudável para o tratamento de doenças pulmonares, principalmente a tuberculose, Campos do Jordão, acabou por arrebatar-lhe, em pouco tempo, seu status. No ano de 1911, o cidadão Emílio Marcondes Ribas, renomado médico sanitarista, famoso pela descoberta do método de transmissão da febre amarela, lança uma campanha em prol da retomada da ideia de uma ferrovia, de Pindamonhangaba a Campos do Jordão, então Distrito de Jaguaribe, pertencente ao Município de São Bento do Sapucaí. Mesmo prosseguindo os estudos sobre a tuberculose e a lepra, o médico Emílio Ribas renova os esforços para a tão almejada estrada de ferro, sendo auxiliado por outro colega da medicina, o Dr.Vitor Godinho. Ambos alcançam êxito quando a Câmara Municipal de Pindamonhangaba concede autorização para o referido empreendimento. Logo em seguida, conseguem também a autorização do Congresso Estadual para levarem os trilhos até a futura Campos do Jordão. Aproveitemos o espaço para explicar ao leitor que até 1930, as Assembléias Estaduais eram bicamerais, isto é, cada Estado possuía a Câmara dos Deputados Estaduais e, também do Senado Estadual, idêntico ao Congresso Nacional. Tal sistema legislativo nos Estados iniciou-se com o período republicano, chegando ao seu epílogo com a Revolução de 1930, a qual levou Getúlio Vargas ao Catete. Retornando à ferrovia, conferimos que, ainda em 1911 é elaborado o projeto inicial para a obra, por Mário Roxo, projeto esse que seria alterado, no entanto, pela Lei Estadual, de n° 1.265-A, datada de 28 de outubro de 1911. No dia 27 de abril de 1912, durante cerimônia pública, realizada com a presença de altos dignatários do Estado de São Paulo e do Município de Pindamonhangaba, é fincada a estaca inicial do traçado ferroviário. Porém, as obras só começam efetivamente em outubro de 1912, pois o empreiteiro português, Sebastião de Oliveira Damas, contratado no Velho Mundo, exclusivamente para o referido projeto, assinou o contrato no mês de julho.
             Sendo assim, as obras para a concretização do ideal de Emílio Marcondes Ribas, duram, aproximadamente dois anos, sendo orientado pelo engenheiro Antônio Prudente de Morais, sendo por sua vez auxiliado, pelos também engenheiros José Antônio Salgado e Guilherme Winther. No dia 15 de novembro de 1914, finalmente é inaugurada a ferrovia com a viagem na locomotiva “Prudente de Morais”. Movida a vapor, a referida composição parte de Pindamonhangaba, no entroncamento com a Central do Brasil, e após percorrer 47 km chega ao seu destino, em meio à enormes festividades. Em obra conceituada, as professoras Vera Vilhena de Toledo, Maria Odete Brancatelli e Helena Lopes afirmam que as festas populares que eram realizadas com a chegada do trem simbolizavam o progresso e crescimento das cidades, pois com a inauguração dos caminhos de ferro “desenvolveram-se oficinas de reparo de material ferroviário, hotéis, armazéns”, etc. Também surgiram “quarteirões industriais e bairros proletários junto às estações e às margens dos trilhos. As estações também criaram ou atraíram os centros comerciais”. Mesmo sendo um transporte para doentes pulmonares, a chegada dos trilhos à futura “Suíça” brasileira impulsionou atividades econômicas, em particular, a comercial que, mais tarde alavancaria o turismo, como iremos mencionar adiante. Nesse ínterim, o primeiro diretor da nova ferrovia, foi o engenheiro José Mascarenhas Neves, segundo a análise de Acrilson de Carvalho e Levy Tenório da Costa que afirmam também que, inicialmente “o tráfego era feito com três locomotivas a vapor, dois automóveis (sic.) e trinta vagões”. Os autores João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo afirmam por sua vez que a ferrovia era operada inicialmente por apenas duas locomotivas, a Piracuama e a Catarina, ambas movidas a vapor. Porém, pouco tempo após a inauguração, a Estrada de Ferro Campos do Jordão passou a enfrentar dificuldades financeiras, sendo por isso encampada pelo Estado, através da Lei n°1.486, de 15 de dezembro de 1915, iniciando, então alguns projetos de melhoria e modernização. Em 1916, por exemplo, as locomotivas a vapor foram substituídos por composições impulsionadas a gasolina. Outra transformação ocorre através da Lei n°1.940, datada de 21 de dezembro de 1922, com a eletrificação de todo o percurso férreo, o qual foi solenemente inaugurado em dezembro de 1924 com a presença de Carlos de Campos, Presidente do Estado de São Paulo. Com a eletrificação, as locomotivas movidas a gasolina, são substituídas, de acordo com João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo, por “automotrizes elétricas e posteriormente pelos bondes que vieram do extinto Tramway do Guarujá, que trafegam na Estrada de Ferro Campos do Jordão até hoje”.  Conhecida, no início, pejorativamente como “trem dos tuberculosos”, a ferrovia realizava o seu trajeto, com o trem partindo da Estação de Pindamonhangaba, no entroncamento com a Estrada de Ferro Central do Brasil, como já afirmamos acima; percorria 47 Km até o seu destino, na antiga Estação Campos do Jordão, atualmente denominada  Abernéssia. Desse ponto em diante, havia um ramal exclusivo para o bairro de Sanatórios que, como o próprio nome diz, indicava o local dos estabelecimentos médicos para os doentes; na década de 1940, o local contava com aproximadamente 14 desses estabelecimentos, além de pensões que hospedavam enfermos à espera de vagas. Com a mencionada eletrificação, os trilhos chegam até a Estação Emílio Ribas, atual Capivari. Um fato curioso é o nome “Abnérssia” que, segundo Gerodetti e Cornejo, é derivado “da junção de partes das palavras Aberdeen, Inverness e Escócia, regiões de origem de dois cidadãos escoceses, filho e pai, dentre as primeiras pessoas que ali residiram”. Até o final da década de 1940, a ferrovia que, além da função inicial passou a transportar passageiros comuns, transitava entre Pindamonhangaba e Campos do Jordão, passando por 27 estações entre grandes e pequenas. Além da Estação da Central haviam a Mombaça, Cerâmica São Geraldo, Agente Hely, Expedicionária, Quilômetro 16, Quilômetro 18, Pedreira da Estrada, Piracuama, Quilômetro 25, Eugênio Lefréve (em Santo Antônio do Pinhal ), Pagé, Renópolis, Quilômetro 33, Quilômetro 34, Sapé, Gavião Gonzaga, Cacique – este o  ponto culminante de todas as ferrovias do Brasil, a 1.743 metros de altitude -  , Toriba,  São Cristóvão, Sanatórios, Fracalanza, Campos do Jordão (Abernéssia), Jaguaribe, Grande Hotel, Damas e Emílio Ribas ( Capivari). Entre os anos de 1922 e 1924, é construído um prédio para abrigar os escritórios da administração da EFCJ, próximo à Estação da Central em Pindamonhangaba. Tal edifício passou a funcionar como estação única da EFCJ, a partir de 1971, com a decadência dos trens da Central entre o Rio de Janeiro e São Paulo.
              Contudo, a partir da década de 1950, com o avanço da medicina para a cura das moléstias pulmonares, como a já citada tuberculose, o fator do clima puro e saudável deixou de ser condição sine-quanon para o pleno restabelecimento da saúde. A cidade de São José dos Campos há muito deixara de ser considerada para tal e, em Campos do Jordão, as clínicas, hospitais e pensões foram sendo fechadas gradativamente. A cidade, porém, diversificou a sua função, buscando – e conseguindo – no turismo a receita de seu sucesso, tornando-se um dos principais centros turísticos e de lazer não só do Estado de São Paulo, mas de todo o Brasil. Com a mudança ocorrida, a ferrovia sobreviveu à extinção de sua função primordial e, nas mãos do Governo do Estado de São Paulo desde 1915, passou a ser administrada pela Secretária de Esportes e Turismo, tornando-se uma empresa rentável e eficiente, mesmo com o fim dos trens regulares de passageiros no Brasil. Com a atividade exclusiva turística, a EFCJ escapou do período hediondo  das privatizações no setor ferroviário da década de 1990 e, atualmente a viagem em finais de semana e feriados é realizada com litorinas de luxo, incluindo serviço de bordo e um guia para informações históricas e geográficas. Em todo o percurso, o Trem da Serra faz somente duas paradas, sendo a primeira em Piracuama, no Reino das Águas Claras e a segunda em Santo Antônio  do Pinhal; dessa cidade parte um circuito especial de ida e volta a Campos do Jordão. Na área urbana de Campos do Jordão a EFCJ, opera o serviço de bondes que fazem o trajeto ligando as estações de São Cristóvão, Abernéssia, Jaguaribe e Capivari. O sucesso da Estrada de Ferro Campos do Jordão, como empresa volta à exploração do turismo e administrada pelo Estado é prova de que a atividade turística deveria ser impulsionada, principalmente onde existem fatores propícios para isso. No caso do turismo ferroviário, no Vale do Paraíba, poderíamos citar, por exemplo, a reativação do trecho principal Rio-São Paulo e, através de Cruzeiro, o Sul de Minas Gerais, aproveitando o potencial do turismo religioso proporcionado pelas cidades de Aparecida, Guaratinguetá e Cachoeira Paulista. Não custa sonhar, quem sabe um dia...  Até a próxima.
                                                                                     Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
CARVALHO e COSTA, Acrilson de e Levy Tenório da. A Ferrovia no Vale do Paraíba. Opulência eDecadência. Trabalho de Graduação em História pela UNIVAP. Edição mimeografada. São José dos Campos, 1996.

FEDERICI, Hilton. História de Cruzeiro. Vol.II. Da instalação do Município até a transferência da sua sede (1873-1901). Academia Campinense de Letras. Campinas, 1979.

GERODETTI e CORNEJO, João Emílio e Carlos. As Ferrovias do Brasil, nos Cartões-Postais e Álbuns de Lembrança. Solaris Edições Culturais. São Paulo, 2005.

SOBRINHO, Alves Motta. A Civilização do Café. Editora Brasiliense. São Paulo, 1978.

TOLEDO, BRANCATELLI e LOPES, Vera Vilhena de, Maria Odette e Helena. A Riqueza nos Trilhos. História das ferrovias no Brasil. Editora Moderna. São Paulo, 1998.


E-mail: eddycarlos@ymail.com



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