quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O Saque ao Cofre.

    Fotografia ilustrativa, extraída da internet; site: www.a12.com.          
            
                    Em qualquer sociedade, desde tempos remotos, a organização do sistema religioso é baseada, além da crença, na contribuição dos fiéis. Já nas povoações primitivas, tal contribuição variava desde serviços prestados a doação de parte de seus bens ou fruto de seu trabalho. Outras, já se utilizando do sistema monetário, contribuíam em espécie para a manutenção deste ou daquele culto e, conseqüentemente, de quem seria responsável. Nos Estados teocráticos isso se torna mais evidente, mas mesmo em sociedades laicas, a classe sacerdotal ou clerical exercia forte influência em toda a nação, usufruindo daí, muitos privilégios. Assim foi nos reinos mesopotâmicos, no Antigo Egito, entre os hebreus, filisteus, arameus, gregos, romanos, árabes, etc. Em outros casos, mesmo o Estado não sendo teocrático, assumia a responsabilidade pela administração da religião e dos donativos ou contribuições arrecadadas e repassadas ao clero. Mas sempre que podiam, ou simplesmente desejassem muitos governantes utilizavam-se dos recursos financeiros dos templos como bem entendessem. Dessa forma, um fiel que contribuía com a sua religião, acabava financiando atos de governos, pagando duas vezes, uma vez que já pagava impostos. Sem mencionarmos as inúmeras guerras em que o vencedor saqueava os tesouros, tanto profanos como sacros, em muitos casos os líderes de uma nação saqueavam o seu próprio povo, através do mero confisco dos donativos ofertados a alguma divindade. Em outras situações, além dos governantes, praticavam o ato ilícito os administradores nomeados tanto pelo Estado como pelas lideranças religiosas. É o que ocorreu no Brasil entre o fim do período colonial e durante o Império, envolvendo o maior símbolo religioso da população brasileira.
              A Revolução Francesa abalou os alicerces do Antigo Regime na Europa e com a ascensão de Napoleão Bonaparte as cabeças coroadas começam a ser derrubadas. Espremido entre a França e a Inglaterra, Portugal estava ameaçado de invasão por ambas as potências militares. Pela França que decretara o Bloqueio Continental, para enfraquecer os ingleses, e atacava quem não cumprisse a determinação; e pela Inglaterra que ameaçava da mesma forma se obedecesse a Napoleão. A solução encontrada pela Corte lusitana, já sabemos, foi a fuga para o Brasil, escoltada pela Armada Real Inglesa. Dessa forma, em 1808, o Príncipe Regente Dom João e toda a nobreza lusa chegam ao Brasil. Mesmo com a abertura dos portos, favorecendo os ingleses, a Corte de Dom João necessitava de financiamento para se manter; tinham também que pagar o “favor” que a Inglaterra lhes fizera, escoltando-os até os trópicos. Enquanto reduzia quase a zero as taxas para os ingleses, a tributação sobre portugueses e brasileiros era elevada, face a guerra, comandada pelos anglos, contra as forças de ocupação francesas em Portugal. Outros gastos vão se manifestando. Para vingar-se da “afronta” sofrida na Europa, Dom João ordena a invasão e ocupação da Guiana Francesa ainda em 1808. E em 1811 invade a Banda Oriental, então possessão da Espanha, aliada dos franceses. Anexada como Província Cisplatina, torna-se independente em 1828, com o nome de República Oriental do Uruguai, após o fim da guerra entre a Argentina e o Brasil.
               Para termos uma ideia da quantidade de pessoas que integravam a Corte portuguesa recorremos ao jornalista Laurentino Gomes. O escritor afirma que, “além da família real, 276 fidalgos e dignatários régios recebiam verba anual de custeio e representação, paga em moedas de ouro e prata retiradas do tesouro real do Rio de Janeiro. (...) mais 2000 funcionários e indivíduos exercendo funções relacionadas à Coroa, setecentos padres, quinhentos advogados, duzentos praticantes de Medicina e entre 4000 e 5000 militares”. Somente o padre confessor da rainha D. Maria I, a Louca, recebia um ordenado equivalente hoje a R$14.000,00. Como o próprio Laurentino resume, era “uma corte cara, perdulária e voraz”, que consumia aproximadamente 90 dúzias de ovos e, entre 513 galinhas, frangos, perús e pombos, por dia. Tudo à custa do Erário Real. O governo arcava ainda com os gastos com músicos, arquitetos, artistas e cientistas estrangeiros, incluindo aí os integrantes das missões científicas, francesa e austríaca. Havia ainda a corrupção, troca de favores, subornos, propinas, etc. Só a arrecadação tributária, mesmo elevadíssima, não era suficiente e o défict crescia enormemente. Segundo Laurentino Gomes, nos treze anos em que a Corte lusa permaneceu no Brasil, o “buraco no orçamento tinha aumentado mais de vinte vezes—de 10 contos de réis para 239 contos de réis”. Sem alternativas, o governo recorre a empréstimos junto aos ingleses, primeiro para pagar a viagem do Atlântico; outra saída foi a criação de um banco estatal para emissão de papel-moeda. Sem controle e com aumento excessivo de gastos, a “vaca foi para o brejo” de vez. Mas havia uma fonte inesgotável de dinheiro que poderia ser utilizada em “casos extremos”. E foi utilizada, não só por Dom João VI, como por demais políticos ao longo do período imperial.
             Desde que a imagem da santa Aparecida foi encontrada por pescadores no Rio Paraíba em 1717, os fiéis passaram, além de venerá-la, contribuir com parte de seus parcos recursos, para manutenção da pequena capela. Em 1743 o Pe. José Alves Vilela resolve construir uma capela maior no Morro dos Coqueiros, inaugurando-a em 1745. Com os milagres atribuídos à santa, aumentam os devotos e romarias, vindos de todos os cantos do Brasil.Com a inauguração da ferrovia em 1877, o número de peregrinos intensifica-se ainda mais. Assim, pagando uma promessa ou simplesmente visitando a capela, era rotina os fiéis depositarem, principalmente dinheiro, para o patrimônio da santa Aparecida. Para administrar tais rendimentos constantes, o clero fazia-o diretamente em raras ocasiões; na maioria das ocasiões as autoridades públicas indicavam um administrador. De olho nas ofertas muitos fazendeiros e potentados políticos conseguiam ser nomeados, ou que fossem nomeados alguém de sua confiança. Como no Brasil vigorava o sistema do padroado, o Estado assumia então esse “pesado” encargo. O jornalista Rodrigo Alvarez afirma que “no regime do padroado era o rei que mandava nos padres”. Com a independência, o Império do Brasil manteria intacto tal regime que só acabaria com o advento da República. Sendo assim, a Santa Sé não só não reclamou como concordou com uma determinação de Dom João em 1805. Nesse mesmo ano exercia o cargo de Capitão-Mor da Vila de Guaratinguetá Jerônimo Francisco Guimarães, que também era o tesoureiro do cofre da capela da santa Aparecida desde 1803. Também em 1805, durante um inventário realizado, segundo Rodrigo Alvarez, “a diocese encarregada de cuidar da santinha contabilizava terras, casa, vasos sagrados, escravos e, o mais importante, um cofre, que por mais que o esvaziassem, logo se enchia outra vez”. As contribuições constantes e infindáveis deixadas pelos romeiros despertava a cobiça de tesoureiros, políticos, monarcas e, até mesmo de alguns padres.
              No dia 19 de outubro de 1800, o governo português baixa a Resolução Régia, decidindo que, conforme Alvarez, “todo o dinheiro das paróquias de Portugal e de suas colônias, entre elas o Brasil, passaria a ser do próprio rei”. E, lembremos Dom João só seria coroado rei em 1815, mas já resolvera que os donativos dos fiéis ficariam melhores em seu “bolso”. Na realidade, enfrentando problemas financeiros, como já abordado, embora antes da pressão anglo-francesa, Dom João e a nobreza que o rodeava, perceberam como “brotava” dinheiro nas igrejas lusas e brasileiras. A capela de Aparecida não foi a única, mas devido a sua importância no catolicismo brasileiro e, com certeza a que mais recebia doações, fosse a mais visada. Diante desse quadro teve início o confisco do dinheiro depositado no cofre da santa Aparecida. O primeiro confisco ocorreu já em 1805 e os valores levados a Lisboa foi usado pelo Príncipe Regente para bancar “custas pessoais”. Em 1809, já residindo no Rio de Janeiro, o monarca determina que o tesoureiro Jerônimo “limpasse” o cofre e o dinheiro foi usado para amenizar as dívidas da família real, cada vez mais “pobre”. Oficialmente, Dom João “requisitou” o dinheiro do cofre da santa somente em 1805 e 1809. Rodrigo Alvarez destaca, no entanto, que “ao longo dos 85 anos em que os representantes do império tomaram conta do dinheiro santo, eles se encarregaram de só deixar aos padres de Aparecida o mínimo necessário para a manutenção da igreja e dos prédios religiosos”. Teoricamente os recursos confiscados serviriam para custear obras públicas, tanto em Portugal como no Brasil. Na prática, o dinheiro era embolsado pelos representantes da Coroa ou de seus sequazes. Como o exemplo vinha de cima, os tesoureiros também agiam contra a fé dos romeiros, enganando ao mesmo tempo a santa e o rei. Chegavam a bloquear a boca da caixinha das doações, fazendo com que os fiéis deixassem seus donativos à vista; em seguida tudo era embolsado descaradamente.
            Durante mais de duas décadas o Capitão-Mor Jerônimo “cuidou” da tesouraria da capela de Aparecida, empregando o dinheiro da melhor maneira que achasse e sem contestação. Com a independência e a ascensão de Dom Pedro I a situação se modifica. Adotando, inicialmente, uma postura diferente da de seu pai, o imperador inicia um governo mais austero e resolve acabar com alguns privilégios. Um dos que se tornaram alvo de Dom Pedro I, foi justamente o tesoureiro da capela de Aparecida. No início de 1824, assina uma provisão determinando a remoção do Capitão Jerônimo da tesouraria da capela. Ainda que afastado, Jerônimo consegue burlar a ordem imperial e reelege-se para o cargo novamente, continuando a “cuidar” do cofre. Seis meses depois outra ordem sai da pena do imperador, anulando a reeleição de Jerônimo. Mas como no Brasil sempre se dá um “jeitinho”, Jerônimo só é afasto de vez do cargo no início de 1826. O jornalista Alvarez afirma que isso ocorreu “quando o obrigaram a vender o belíssimo sobrado onde morava para pagar os empréstimos tomados compulsoriamente do cofre da santa”. Em uma tentativa de organizar, fiscalizar e moralizar a administração da tesouraria, o Governo Imperial cria em 1844, a Mesa Administrativa dos Bens e Esmolas de Nossa Senhora d’Apparecida. Esse órgão fiscalizador era composto de um tesoureiro, um escrivão e um padre. Os dois primeiros eram indicados de acordo com “critérios políticos”, ou seja, apadrinhados. O padre, de função anódina, apenas tinha que concordar e assinar as decisões da mesa, cuja assinatura estava acompanhada da frase “voto vencido”. E a farra não só continuou como ampliou. Até 1884, 25 tesoureiros ocuparam o cobiçado cargo na Mesa Administrativa; alguns por poucos meses. Segundo Alvarez, a farra com o dinheiro dos fiéis de Aparecida só foi revelada em 1979, graças à pesquisa e análise do padre historiador Júlio Brustoloni. Apesar da roubalheira houve protestos, corajosos e enérgicos.
            Em 1878 o Juiz José de Barros Franco tentou por ordem na casa, ou melhor, na igreja. Nomeando Inácio de Loiola Freire, o magistrado pretendia afastar os corruptos e estancar a sangria financeira, que atrapalhava as obras de ampliação da própria capela de Aparecida. O novo tesoureiro fica no cargo pouco mais de um ano; os antigos tesoureiros retornam e o roubo prossegue. Nesse ínterim, o padre Joaquim do Monte Carmelo, mais conhecido como Dom Carmelo, inicia uma campanha virulenta contra a roubalheira das doações dos fiéis.  Em uma carta enviada para um senador da Província de São Paulo, em 1884, Dom Carmelo acusa o tesoureiro Joaquim Carlos Fragoso. Apurada a denúncia, confirmadas as irregularidades, como além de saquear o cofre, vender objetos de ex-votos para comerciantes locais, Fragoso foi demitido. Entretanto, e a prática já era comum, por uma determinação judicial, Joaquim Fragoso foi reconduzido ao cargo. Outro denunciado por Dom Carmelo foi Antônio Theodósio. Antes de ser tesoureiro era professor e após ser demitido passou a viver de emprestar dinheiro a juros; hoje seria chamado de agiota, mas naquele tempo quem exercia tal função era conhecido como capitalista. A ira de Dom Carmelo atinge também seus confrades. Alguns padres são acusados publicamente por solicitar esmolas para os fiéis e usar os donativos em benefício próprio. Rodrigo Alvarez cita uma frase de Dom Carmelo sobre os ladrões de batina: “Todas essas imoralidades e mil outras que se dão em Apparecida prendem-se ao grande princípio que ali domina: o mundo é de quem mais goza”. A situação se agrava ainda mais quando o Deputado Provincial José Vicente de Azevedo (de Lorena), muito bem informado das falcatruas por uma carta de Dom Carmelo, propõe um Decreto-Lei na Assembleia Provincial de São Paulo, para sanar as contas da capela. As autoridades, então oficialmente, tomavam conhecimento do escândalo que era a “festa” com o dinheiro da santa. De 40:000$000 (quarenta contos de réis) arrecadados anualmente, apenas 2:000$000 (dois contos de réis), ou seja, 5%, ficavam na capela de Aparecida. A questão foi, todavia, parar nos tribunais. No início de 1886, a Justiça da Província de São Paulo dá ganho de causa a Dom Carmelo. Não sabemos de que forma ocorreu, mas segundo o jornalista Alvarez, Dom Carmelo recebeu o dinheiro devido e, enfim, retomou a obra de ampliação da capela. Em 1888 ela é inaugurada a nova igreja, conhecida atualmente como Basílica Velha.
            Menos de dois anos depois, a Monarquia é deposta pelo movimento republicano. Instalada a República, ocorre a separação entre o Estado e a Igreja. Os assuntos religiosos ficavam restritos ao clero e os demais sob a responsabilidade dos novos governantes. Em 1894 chegam os padres redentoristas, vindos da Alemanha, para assumir a administração da capela e demais bens religiosos. E os políticos, governantes e seus asseclas não saquearam mais o cofre da santa Aparecida. Até a próxima.
                                                                                                           Eddy Carlos.

Dicas para consulta.
ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida. A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. Globo Livros. São Paulo, 2014.

BARBOSA, Alexandre Lourenço (Org.). Aparecida. A Multiplicidade do Olhar. Gráfica Imagem. Taubaté, 2000.

FREITAS, Oswaldo Carvalho. Aparecida, Capital Mariana do Brasil. Editora Santuário. Aparecida, 1978.

GOMES, Laurentino. 1808. Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Editora Planeta. São Paulo, 2007.


Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

   

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