Fotografia ilustrativa, extraída da internet; site: www.a12.com.
Em
qualquer sociedade, desde tempos remotos, a organização do sistema religioso é
baseada, além da crença, na contribuição dos fiéis. Já nas povoações
primitivas, tal contribuição variava desde serviços prestados a doação de parte
de seus bens ou fruto de seu trabalho. Outras, já se utilizando do sistema
monetário, contribuíam em espécie para a manutenção deste ou daquele culto e,
conseqüentemente, de quem seria responsável. Nos Estados teocráticos isso se
torna mais evidente, mas mesmo em sociedades laicas, a classe sacerdotal ou
clerical exercia forte influência em toda a nação, usufruindo daí, muitos
privilégios. Assim foi nos reinos mesopotâmicos, no Antigo Egito, entre os
hebreus, filisteus, arameus, gregos, romanos, árabes, etc. Em outros casos,
mesmo o Estado não sendo teocrático, assumia a responsabilidade pela
administração da religião e dos donativos ou contribuições arrecadadas e
repassadas ao clero. Mas sempre que podiam, ou simplesmente desejassem muitos
governantes utilizavam-se dos recursos financeiros dos templos como bem
entendessem. Dessa forma, um fiel que contribuía com a sua religião, acabava
financiando atos de governos, pagando duas vezes, uma vez que já pagava
impostos. Sem mencionarmos as inúmeras guerras em que o vencedor saqueava os tesouros,
tanto profanos como sacros, em muitos casos os líderes de uma nação saqueavam o
seu próprio povo, através do mero confisco dos donativos ofertados a alguma
divindade. Em outras situações, além dos governantes, praticavam o ato ilícito
os administradores nomeados tanto pelo Estado como pelas lideranças religiosas.
É o que ocorreu no Brasil entre o fim do período colonial e durante o Império,
envolvendo o maior símbolo religioso da população brasileira.
A
Revolução Francesa abalou os alicerces do Antigo Regime na Europa e com a
ascensão de Napoleão Bonaparte as cabeças coroadas começam a ser derrubadas.
Espremido entre a França e a Inglaterra, Portugal estava ameaçado de invasão
por ambas as potências militares. Pela França que decretara o Bloqueio
Continental, para enfraquecer os ingleses, e atacava quem não cumprisse a
determinação; e pela Inglaterra que ameaçava da mesma forma se obedecesse a Napoleão.
A solução encontrada pela Corte lusitana, já sabemos, foi a fuga para o Brasil,
escoltada pela Armada Real Inglesa. Dessa forma, em 1808, o Príncipe Regente
Dom João e toda a nobreza lusa chegam ao Brasil. Mesmo com a abertura dos
portos, favorecendo os ingleses, a Corte de Dom João necessitava de
financiamento para se manter; tinham também que pagar o “favor” que a
Inglaterra lhes fizera, escoltando-os até os trópicos. Enquanto reduzia quase a
zero as taxas para os ingleses, a tributação sobre portugueses e brasileiros
era elevada, face a guerra, comandada pelos anglos, contra as forças de
ocupação francesas em Portugal. Outros gastos vão se manifestando. Para
vingar-se da “afronta” sofrida na Europa, Dom João ordena a invasão e ocupação
da Guiana Francesa ainda em 1808. E em 1811 invade a Banda Oriental, então
possessão da Espanha, aliada dos franceses. Anexada como Província Cisplatina,
torna-se independente em 1828, com o nome de República Oriental do Uruguai,
após o fim da guerra entre a Argentina e o Brasil.
Para
termos uma ideia da quantidade de pessoas que integravam a Corte portuguesa
recorremos ao jornalista Laurentino Gomes. O escritor afirma que, “além da
família real, 276 fidalgos e dignatários régios recebiam verba anual de custeio
e representação, paga em moedas de ouro e prata retiradas do tesouro real do
Rio de Janeiro. (...) mais 2000 funcionários e indivíduos exercendo funções
relacionadas à Coroa, setecentos padres, quinhentos advogados, duzentos
praticantes de Medicina e entre 4000 e 5000 militares”. Somente o padre
confessor da rainha D. Maria I, a Louca, recebia um ordenado equivalente hoje a
R$14.000,00. Como o próprio Laurentino resume, era “uma corte cara, perdulária
e voraz”, que consumia aproximadamente 90 dúzias de ovos e, entre 513 galinhas,
frangos, perús e pombos, por dia. Tudo à custa do Erário Real. O governo arcava
ainda com os gastos com músicos, arquitetos, artistas e cientistas
estrangeiros, incluindo aí os integrantes das missões científicas, francesa e
austríaca. Havia ainda a corrupção, troca de favores, subornos, propinas, etc.
Só a arrecadação tributária, mesmo elevadíssima, não era suficiente e o défict
crescia enormemente. Segundo Laurentino Gomes, nos treze anos em que a Corte
lusa permaneceu no Brasil, o “buraco no orçamento tinha aumentado mais de vinte
vezes—de 10 contos de réis para 239 contos de réis”. Sem alternativas, o
governo recorre a empréstimos junto aos ingleses, primeiro para pagar a viagem
do Atlântico; outra saída foi a criação de um banco estatal para emissão de
papel-moeda. Sem controle e com aumento excessivo de gastos, a “vaca foi para o
brejo” de vez. Mas havia uma fonte inesgotável de dinheiro que poderia ser
utilizada em “casos extremos”. E foi utilizada, não só por Dom João VI, como
por demais políticos ao longo do período imperial.
Desde que a imagem da santa Aparecida foi
encontrada por pescadores no Rio Paraíba em 1717, os fiéis passaram, além de
venerá-la, contribuir com parte de seus parcos recursos, para manutenção da
pequena capela. Em 1743 o Pe. José Alves Vilela resolve construir uma capela
maior no Morro dos Coqueiros, inaugurando-a em 1745. Com os milagres atribuídos
à santa, aumentam os devotos e romarias, vindos de todos os cantos do
Brasil.Com a inauguração da ferrovia em 1877, o número de peregrinos
intensifica-se ainda mais. Assim, pagando uma promessa ou simplesmente
visitando a capela, era rotina os fiéis depositarem, principalmente dinheiro,
para o patrimônio da santa Aparecida. Para administrar tais rendimentos
constantes, o clero fazia-o diretamente em raras ocasiões; na maioria das
ocasiões as autoridades públicas indicavam um administrador. De olho nas
ofertas muitos fazendeiros e potentados políticos conseguiam ser nomeados, ou
que fossem nomeados alguém de sua confiança. Como no Brasil vigorava o sistema
do padroado, o Estado assumia então esse “pesado” encargo. O jornalista Rodrigo
Alvarez afirma que “no regime do padroado era o rei que mandava nos padres”.
Com a independência, o Império do Brasil manteria intacto tal regime que só
acabaria com o advento da República. Sendo assim, a Santa Sé não só não reclamou
como concordou com uma determinação de Dom João em 1805. Nesse mesmo ano
exercia o cargo de Capitão-Mor da Vila de Guaratinguetá Jerônimo Francisco
Guimarães, que também era o tesoureiro do cofre da capela da santa Aparecida
desde 1803. Também em 1805, durante um inventário realizado, segundo Rodrigo
Alvarez, “a diocese encarregada de cuidar da santinha contabilizava terras,
casa, vasos sagrados, escravos e, o mais importante, um cofre, que por mais que
o esvaziassem, logo se enchia outra vez”. As contribuições constantes e
infindáveis deixadas pelos romeiros despertava a cobiça de tesoureiros,
políticos, monarcas e, até mesmo de alguns padres.
No dia 19
de outubro de 1800, o governo português baixa a Resolução Régia, decidindo que,
conforme Alvarez, “todo o dinheiro das paróquias de Portugal e de suas
colônias, entre elas o Brasil, passaria a ser do próprio rei”. E, lembremos Dom
João só seria coroado rei em 1815, mas já resolvera que os donativos dos fiéis
ficariam melhores em seu “bolso”. Na realidade, enfrentando problemas
financeiros, como já abordado, embora antes da pressão anglo-francesa, Dom João
e a nobreza que o rodeava, perceberam como “brotava” dinheiro nas igrejas lusas
e brasileiras. A capela de Aparecida não foi a única, mas devido a sua
importância no catolicismo brasileiro e, com certeza a que mais recebia
doações, fosse a mais visada. Diante desse quadro teve início o confisco do
dinheiro depositado no cofre da santa Aparecida. O primeiro confisco ocorreu já
em 1805 e os valores levados a Lisboa foi usado pelo Príncipe Regente para
bancar “custas pessoais”. Em 1809, já residindo no Rio de Janeiro, o monarca
determina que o tesoureiro Jerônimo “limpasse” o cofre e o dinheiro foi usado
para amenizar as dívidas da família real, cada vez mais “pobre”. Oficialmente,
Dom João “requisitou” o dinheiro do cofre da santa somente em 1805 e 1809.
Rodrigo Alvarez destaca, no entanto, que “ao longo dos 85 anos em que os
representantes do império tomaram conta do dinheiro santo, eles se encarregaram
de só deixar aos padres de Aparecida o mínimo necessário para a manutenção da
igreja e dos prédios religiosos”. Teoricamente os recursos confiscados
serviriam para custear obras públicas, tanto em Portugal como no Brasil. Na
prática, o dinheiro era embolsado pelos representantes da Coroa ou de seus
sequazes. Como o exemplo vinha de cima, os tesoureiros também agiam contra a fé
dos romeiros, enganando ao mesmo tempo a santa e o rei. Chegavam a bloquear a
boca da caixinha das doações, fazendo com que os fiéis deixassem seus donativos
à vista; em seguida tudo era embolsado descaradamente.
Durante
mais de duas décadas o Capitão-Mor Jerônimo “cuidou” da tesouraria da capela de
Aparecida, empregando o dinheiro da melhor maneira que achasse e sem
contestação. Com a independência e a ascensão de Dom Pedro I a situação se
modifica. Adotando, inicialmente, uma postura diferente da de seu pai, o
imperador inicia um governo mais austero e resolve acabar com alguns
privilégios. Um dos que se tornaram alvo de Dom Pedro I, foi justamente o
tesoureiro da capela de Aparecida. No início de 1824, assina uma provisão
determinando a remoção do Capitão Jerônimo da tesouraria da capela. Ainda que
afastado, Jerônimo consegue burlar a ordem imperial e reelege-se para o cargo
novamente, continuando a “cuidar” do cofre. Seis meses depois outra ordem sai
da pena do imperador, anulando a reeleição de Jerônimo. Mas como no Brasil
sempre se dá um “jeitinho”, Jerônimo só é afasto de vez do cargo no início de
1826. O jornalista Alvarez afirma que isso ocorreu “quando o obrigaram a vender
o belíssimo sobrado onde morava para pagar os empréstimos tomados
compulsoriamente do cofre da santa”. Em uma tentativa de organizar, fiscalizar
e moralizar a administração da tesouraria, o Governo Imperial cria em 1844, a
Mesa Administrativa dos Bens e Esmolas de Nossa Senhora d’Apparecida. Esse
órgão fiscalizador era composto de um tesoureiro, um escrivão e um padre. Os
dois primeiros eram indicados de acordo com “critérios políticos”, ou seja,
apadrinhados. O padre, de função anódina, apenas tinha que concordar e assinar
as decisões da mesa, cuja assinatura estava acompanhada da frase “voto
vencido”. E a farra não só continuou como ampliou. Até 1884, 25 tesoureiros
ocuparam o cobiçado cargo na Mesa Administrativa; alguns por poucos meses.
Segundo Alvarez, a farra com o dinheiro dos fiéis de Aparecida só foi revelada
em 1979, graças à pesquisa e análise do padre historiador Júlio Brustoloni.
Apesar da roubalheira houve protestos, corajosos e enérgicos.
Em 1878 o
Juiz José de Barros Franco tentou por ordem na casa, ou melhor, na igreja.
Nomeando Inácio de Loiola Freire, o magistrado pretendia afastar os corruptos e
estancar a sangria financeira, que atrapalhava as obras de ampliação da própria
capela de Aparecida. O novo tesoureiro fica no cargo pouco mais de um ano; os
antigos tesoureiros retornam e o roubo prossegue. Nesse ínterim, o padre
Joaquim do Monte Carmelo, mais conhecido como Dom Carmelo, inicia uma campanha
virulenta contra a roubalheira das doações dos fiéis. Em uma carta enviada para um senador da
Província de São Paulo, em 1884, Dom Carmelo acusa o tesoureiro Joaquim Carlos
Fragoso. Apurada a denúncia, confirmadas as irregularidades, como além de
saquear o cofre, vender objetos de ex-votos para comerciantes locais, Fragoso
foi demitido. Entretanto, e a prática já era comum, por uma determinação
judicial, Joaquim Fragoso foi reconduzido ao cargo. Outro denunciado por Dom
Carmelo foi Antônio Theodósio. Antes de ser tesoureiro era professor e após ser
demitido passou a viver de emprestar dinheiro a juros; hoje seria chamado de
agiota, mas naquele tempo quem exercia tal função era conhecido como
capitalista. A ira de Dom Carmelo atinge também seus confrades. Alguns padres
são acusados publicamente por solicitar esmolas para os fiéis e usar os
donativos em benefício próprio. Rodrigo Alvarez cita uma frase de Dom Carmelo sobre
os ladrões de batina: “Todas essas imoralidades e mil outras que se dão em
Apparecida prendem-se ao grande princípio que ali domina: o mundo é de quem
mais goza”. A situação se agrava ainda mais quando o Deputado Provincial José
Vicente de Azevedo (de Lorena), muito bem informado das falcatruas por uma
carta de Dom Carmelo, propõe um Decreto-Lei na Assembleia Provincial de São
Paulo, para sanar as contas da capela. As autoridades, então oficialmente,
tomavam conhecimento do escândalo que era a “festa” com o dinheiro da santa. De
40:000$000 (quarenta contos de réis) arrecadados anualmente, apenas 2:000$000
(dois contos de réis), ou seja, 5%, ficavam na capela de Aparecida. A questão
foi, todavia, parar nos tribunais. No início de 1886, a Justiça da Província de
São Paulo dá ganho de causa a Dom Carmelo. Não sabemos de que forma ocorreu,
mas segundo o jornalista Alvarez, Dom Carmelo recebeu o dinheiro devido e,
enfim, retomou a obra de ampliação da capela. Em 1888 ela é inaugurada a nova
igreja, conhecida atualmente como Basílica Velha.
Menos de
dois anos depois, a Monarquia é deposta pelo movimento republicano. Instalada a
República, ocorre a separação entre o Estado e a Igreja. Os assuntos religiosos
ficavam restritos ao clero e os demais sob a responsabilidade dos novos
governantes. Em 1894 chegam os padres redentoristas, vindos da Alemanha, para
assumir a administração da capela e demais bens religiosos. E os políticos,
governantes e seus asseclas não saquearam mais o cofre da santa Aparecida. Até
a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida.
A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada
pelos políticos e conquistou o Brasil. Globo Livros. São Paulo, 2014.
BARBOSA, Alexandre Lourenço (Org.). Aparecida. A Multiplicidade do Olhar. Gráfica Imagem. Taubaté,
2000.
FREITAS, Oswaldo Carvalho. Aparecida, Capital Mariana do Brasil. Editora Santuário. Aparecida,
1978.
GOMES, Laurentino. 1808.
Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram
Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Editora Planeta. São
Paulo, 2007.
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br
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