Imagem de Karl von Koseritz (1830-1890); extraída da internet.
Durante três séculos, Portugal e Espanha, rivais na Europa,
transferiram sua animosidade e disputas às suas colônias na América Meridional.
Alguns episódios marcantes dessa beligerância nos trópicos foram a fundação da
Colônia do Sacramento em 1680 e a invasão da Capitania de São Pedro do Rio
Grande (Rio Grande do Sul) pelo General Dom Pedro de Cevallos. Até o final do
século XVIII, diversos tratados foram assinados pelas metrópoles ibéricas, no
sentido de manter a estabilidade entre as suas respectivas possessões
ultramarinas, cujas fronteiras nunca foram definidas. Com a vinda da família
real lusa em 1808 para o Brasil, as tensões se acentuaram, principalmente após
a decisão de Dom João VI de invadir e anexar a Banda Oriental do Rio da Prata
em 1817. Ao proclamar a Independência em 1822, Dom Pedro I manteria a região
anexada ao Império do Brasil, com o nome de Província Cisplatina.
Porém,
independente desde 1816, a
Argentina não aceita a anexação da Banda Oriental e, em 1825, entra em guerra
com o Brasil. Manipulado pela Inglaterra, o conflito termina em 1828, sem que,
nem o Brasil e nem a Argentina garantissem a posse sobre o território sendo,
então, criada a República Oriental do Uruguai. Na realidade, criou-se um Estado-tampão
para inibir pretensões expansionistas, tanto do Brasil, como da Argentina. O
conflito configurou, também, como uma reprise, ou continuidade, das disputas
entre Espanha e Portugal. A criação do Estado do Uruguai, no entanto, não
encerrou a hostilidades herdadas das metrópoles. Tanto na Argentina, como no
Uruguai, haviam duas facções políticas antagônicas, os “blancos” e os
“colorados”. A partir de 1829, com a ascensão de Juan Manuel Rosas na
Argentina, os “blancos” consolidam a sua hegemonia, influenciando os seus
congêneres no Uruguai. Dessa forma, o General Manuel Oribe, instigado por Rosas
conspira contra o Presidente Frutuoso Rivera e monta um cerco de dez anos à
capital uruguaia, Montevidéu; ordena também o ataque às estâncias de
brasileiros, tanto no Uruguai como no Rio Grande do Sul. Para romper o referido
cerco, o embaixador uruguaio no Brasil, Andrés Lamas, busca auxílio no Rio de
Janeiro, junto às autoridades imperiais brasileiras. Articulado pelo Marquês de
Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, e contando com o apoio financeiro de
Irineu Evangelista de Sousa, futuro Barão de Mauá, o apoio do Brasil foi
decisivo para resolver a questão platina. Contando com a neutralidade da
Inglaterra, que “infernizara” o Brasil até a aprovação da Lei Eusébio de Queiróz,
que suprimiu o tráfico negreiro, as tropas brasileiras, comandadas por Luís
Alves de Lima e Silva, o Conde de Caxias, chegam à Montevidéu em meados de
1851.
Todavia, o Marquês
de Paraná utilizou da diplomacia, convencendo Oribe a mudar de lado,
rendendo-se ao governo legítimo uruguaio, além de comprometer-se a combater
Rosas. Para garantir a vitória diplomática, o referido Marquês, convenceu ainda
José Justo Urquiza, Presidente da Província argentina de Entre Rios, a aliar-se
ao Brasil e a Oribe, junto com o Uruguai contra o Presidente Rosas. Segundo a
análise de Jorge Caldeira, em fevereiro de 1852, após um único combate, em
Monte Caseros, o exército rosista foi desbaratado. O ditador nem sequer tentou
estender a resistência na capital. Pediu asilo aos ingleses, embarcou na
fragata “Conflict”, e dali assistiu ao desfile das tropas argentinas, uruguaias
e brasileiras nas ruas de Buenos Aires. Apesar do peso da posição brasileira na
questão platina e, mesmo da habilidade política do Marquês de Paraná, o
resultado final, que resultou na incorporação ao Rio Grande do Sul de 1/5 do
território do Uruguai, a mesma questão só foi bem sucedida pela presença de
Irineu Evangelista de Sousa. Para Jorge Caldeira, coube ao futuro barão, à
garantia logística da intervenção na zona de conflito e, no dia 6 de setembro
de 1850, quando foi assinado o tratado de auxílio militar, junto com os
governos do Brasil e Uruguai, “Irineu se comprometeu a fornecer dinheiro e
armas para os uruguaios, supervisionar a contratação de mercenários na Europa,
saldar algumas das dívidas antigas do governo de Montevidéu, conseguir peças de
artilharia e navios para a guerra”. A utilização de mercenários sempre foi uma
constante, tanto na Europa, como na América Latina. No Brasil, para garantir a independência,
Dom Pedro I contratou os serviços do inglês John Grenfell e do francês Pierre
Labatut. A justificativa era de que o exército nacional ainda não estava
formado e treinado para os conflitos internacionais e, em 1852, o Governo
Imperial do Brasil, apesar de contar com um efetivo de 16 mil homens para atuar
no “baralho” platino, decide optar ainda pelos mercenários, ficando a
responsabilidade, como citado, para Irineu Evangelista de Sousa. Este por sua
vez, delega a incumbência do serviço na Europa, a Sebastião do Rego Barros.
Dentre os diversos mercenários contratados para servir o Império do Brasil na
crise platina, destacamos os prussianos, conhecidos pela sua rigorosa
disciplina militar e eficiência na arte da guerra. Agrupados sob as ordens de
Grenfell, os prussianos prestaram os seus serviços na Armada, durante toda a
crise platina descrita acima, juntamente com soldados de outras nacionalidades,
incluindo a própria brasileira.
No entanto,
depois de encerrado o conflito, poucos mercenários prussianos retornaram à
Europa, preferindo permanecer no Brasil, em particular no Rio Grande do Sul;
além de alguns que estabeleceram residência no Rio de Janeiro. O fato talvez
fosse resultado do contato com as colônias alemãs nas duas localidades e à
instabilidade política reinante na Europa, durante a segunda metade do século
XIX. Um desses soldados mercenários da Prússia, que preferiu permanecer nos trópicos
foi Karl Julius Adalbert Heinrich Ferdinand von Koseritz, filho do Barão de
Koseritz, nascido em 1830 na cidade alemã de Dessau. Aos 21 anos de idade
ingressou no corpo mercenário atuando como canhoneiro do 2º Regimento de
Artilharia. Prefaciando a obra de Koseritz, lançada no Brasil em 1941, Afonso
Arinos de Melo Franco, afirma que o contingente mercenário, após a derrota de
Rosas, dispersou-se; “alguns terão regressado, enquanto muitos se enraizaram na
terra, trabalhando no campo ou no comércio. Koseritz sentiu-se mais atraído
pelo trabalho intelectual. Cinco anos depois de chegar ao Brasil, já redigia,
na cidade de Pelotas, um jornal, o ‘Noticiador’, e de então para diante foi
fundador ou redator de mais de dez folhas provincianas, de todos os gêneros:
diários ou periódicas; literária, políticas, humorísticas, maçônicas...”. Dos
diversos jornais fundados por Koseritz, o mais importante, segundo Afonso
Arinos, foi o “Koseritz Deutsche Zeitung”, que circulou entre 1864 e 1885,
alcançando grande difusão nas Províncias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná. O referido jornal representou, também, “o verdadeiro órgão de expressão
do pensamento e das reivindicações dos alemães no Brasil meridional”. Além do
mais, o antigo combatente tornou-se também, professor, cientista, literato,
político e um anticlerical. Ainda mencionando Afonso Arinos, Koseritz ocupou-se
com as idéias políticas e religiosas e “ele escreveu vários opúsculos de
combate à igreja Romana e aos dogmas, nos quais defende, ao mesmo tempo, o
positivismo de Comte e o evolucionismo de Darwin”.
Em 1883, Koseritz
deixa o Rio Grande do Sul, rumo à capital do Império para uma viagem de cunho
jornalístico, extendendo-a à Província de São Paulo, cujos relatos são enviados
ao “Koseritz Deustsche Zeitung”; acaba reencontrando alguns dos antigos
companheiros da crise platina, na maioria seus patrícios. A viagem de navio, a
bordo do “Rio de Janeiro”, passou por Paranaguá e até ancorar na capital
imperial, durou sete dias (de 12 a 19 de abril de 1883). Após um retorno rápido
à terra gaúcha em junho do mesmo ano, Koseritz chega novamente ao Rio de
Janeiro em 12 de julho; na sua permanência na cidade, juntamente a família, frequenta
o ambiente da elite imperial, sendo recepcionado por Dom Pedro II várias vezes,
no Palácio de São Cristóvão e em Petrópolis. Entre agosto e outubro de 1883
acompanha a visita do príncipe alemão Henrique, neto do imperador do II Reich,
Guilherme I, o qual estava em viagem de treinamento militar. E no dia 5 de
novembro de 1883, Koseritz e a sua família iniciam a viagem para São Paulo, pela
Estrada de Ferro Dom Pedro II. Em seu relato afirma que na Estação Central, no Campo
de Sant’Ana, tinha-se uma impressão européia pois a ordem era modelar, não
entrando ninguém, “além dos passageiros, dos empregados e dos carregadores
numerados, que são severamente
fiscalizados”. Viajando em vagão de 1ª classe, Koseritz observa as paisagens ao
longo da ferrovia, dentre as quais as próximas de Barra do Piraí e do Rio
Paraíba do Sul, ainda em território da Província do Rio de Janeiro. As
anotações prosseguem, acompanhado o itinerário da viagem até Cachoeira (atual
Cachoeira Paulista), ponto terminal da E. F. Dom Pedro II, Depois de Volta
Redonda, chega a Barra Mansa, onde há “uma grande estação e bonitas casas. Bem
junto à estação se via um magnífico jardim de gosto francês, em cujo fundo se achava
um verdadeiro palácio”. Em seguida, vem a estação Surubi e Resende, a qual é
considerada uma cidade bonita. Paralelamente à descrição das cidades e
estações, Koseritz observa que as mesmas têm “os seus armazéns repletos de sacas
de café, e ao longo da linha os morros de café se sucedem”. Adentrando a
Província de São Paulo chegam à Queluz, atingindo logo Lavrinhas, e em seguida
“Cruzeiro”.
Contudo, apesar
do nome, o que Koseritz vislumbrou foi a Estação do Cruzeiro que, ainda não
havia sido inaugurada, mas já servia aos fazendeiros da Vila do Cruzeiro, cuja
sede municipal, o Embaú, estava a 12Km de distância. Além do mais, Koseritz talvez
não tenha observado, ou ignorou, era de que, na referida estação já havia um
entroncamento, de onde partia a Estrada de Ferro Minas and Rio Railway, cujo destino
era a cidade mineira de Três Corações, que seria entregue ao tráfego em 1884.
Finalmente a composição atinge Cachoeira, após atravessar a ponte sobre o Rio
Paraíba, e viajar por 266
quilômetros em 7 horas. Diferente de outros viajantes
europeus que transitaram pelo Vale do Paraíba ao longo do século XIX, Koseritz
afirma no seu relato que Cachoeira “é uma boa cidade já com visível caráter
paulista. Sobre a colina há um hotel no qual os passageiros que não trouxeram
provisões almoçam habitualmente”. A preocupação do ex-soldado mercenário é
agora acomodar a bagagem no vagão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio de Janeiro,
ou Estrada do Norte, devido à diferença de bitola com relação à “Dom Pedro II”.
A diferença, porém não ficava só nos bitolas, pois segundo Koseritz, “é
chocante a diferença entre a amabilidade e a prestabilidade dos empregados da
Estrada D. Pedro II e a grosseria, a indiferença e a brutalidade dos empregados
da Estrada do Norte. A bitola é estreita e por isto os carros também o são
(...). Arranjamos com grande dificuldade a nossa bagagem miúda e o carro se
encheu de tal forma que nos estávamos como sardinhas em lata”. Partindo de Cachoeira,
os viajantes chegam à Vila de Lorena, considerada também uma bonita cidade e
possuindo uma bela igreja. Tal igreja tem toda a probabilidade de ser a de São
Benedito, então recém-construída por Joaquim José Moreira Lima Júnior, o Conde
de Moreira Lima, pois está situada próxima à estação ferroviária de Lorena e a
única visível por Koseritz, durante a curta parada. Reiniciada a marcha, em
quinze minutos chegam a Guaratinguetá. Para o jornalista alemão, depois de
“Barra-Mansa é a mais bonita localidade nesse percurso de 294 quilômetros ”.
Após uma rápida parada em Aparecida, cujo monumento mais importante era “a
grande e velha igreja”, e passada a pequenina estação de Roseira, o trem chega
a Pindamonhangaba. Koseritz lamenta o fato de não poder visitar na cidade, com
o curto tempo que dispõe, o fazendeiro Francisco Inácio Marcondes Homem de
Melo, o Barão Homem de Melo, antigo conhecido, que queria colonizar a
propriedade, devido à falta de mão-de-obra, por causa do movimento
abolicionista e a crise da produção de café na região. Pindamonhangaba é bem
conceituada no relato de Koseritz, causando uma impressão agradável. Na
seqüência, após 343 quilômetros ,
a partir do Rio de Janeiro, chegam a Taubaté, o qual também é “uma cidade relativamente
importante, mas dela pouco vi, pois a estação, muito grande, barrava a vista”.
Dez minutos depois de Taubaté, param por pouco tempo em Caçapava, que na
opinião de Koseritz, “é um velho lugar com casas estragadas e sem jardins. A
única coisa notável que ali vi foi uma quantidade de urubus, que (...) pousavam
sobre os tetos dos quais pareciam ao longe ser um ornamento negro”. Em São José do Paraíba, koseritz relata que nem a vila,
nem a pequena estação oferecem algo de notável ou interessante e chegam à Vila
de Jacareí, a qual apesar de possuir uma estação pequena, é uma grande, bonita
e animada cidade. Na seqüência da descrição de seu relato, koseritz comete um
equívoco ao mencionar a chegada à Guararema. Saindo de Jacareí, o renomado
professor, cientista e jornalista afirma que já “nos aproximávamos do Tietê e a
zona ficava de novo montanhosa. Logo passamos um túnel e chegamos diante do
Tietê, o qual atravessamos em uma boa ponte de ferro. Pelas 4 horas e 12
minutos passamos na estação de Guararema, que não tem nada de interessante. O
lugar é pequeno e há pouca vida na
estação”. Na realidade, a composição ferroviária atravessa o Rio Paraíba, no
trecho vindo de Paraibuna, sentido Sudoeste até a chamada “curva de Guararema”;
é provável que talvez Koseritz desconhecesse a geografia da região. Prosseguindo
o itinerário, o trem chega a Mogi das Cruzes, completando 450 quilômetros de
viagem, considerada como uma grande localidade, devido ao fato de possuir três
grandes igrejas. Às 18 horas, finalmente, a viagem terrestre de Koseritz chega
ao fim, com a parada na Estação do Norte em São Paulo , e com a
duração total, de aproximadamente 13 horas. Depois de visitar a colônia alemã em São Paulo e cumprir os
compromissos de seu jornal e da Província do Rio Grande do Sul, Koseritz
embarca novamente em um trem; desta vez para Santos, onde rumaria para o Sul
por mar, até chegar a Porto Alegre. Todo o relato da viagem de koseritz foi
publicado na Alemanha em 1885, revelando mais uma vez para a Europa
“civilizada”, os costumes, hábitos, história e cultura do Brasil, em particular
do Vale do Paraíba.
Todavia, mesmo
tendo servido fielmente a pátria que conhecera em 1851, tornando-se admirado e
respeitado nos meios políticos, intelectuais acadêmicos e da imprensa no
período imperial, logo após o movimento que depôs a monarquia, Koseritz foi
hostilizado pela nova ordem vigente, republicana, a mesma que defendia os
direitos do homem e do cidadão, além da liberdade de imprensa. No dia 14 de
maio de 1890, estando hospedado na chácara de José Vicente da Silva Teles,
recebeu voz de prisão de Bibiano Dias de Castro, Sub-Delegado de Pedras Brancas,
supostamente ordenado pelo novo governador do Rio Grande do Sul, General Júlio
Anacleto Falcão da Frota. Em meio a desencontros de ordens e contraordens,
Koseritz e sua família permaneceram em cárcere privado por oito dias e, após a
libertação escreve um manifesto onde anuncia a partida para a Alemanha, depois
de “35 anos de incansável trabalho, em bem de seu progresso (do Rio Grande do
Sul) e que representei em 4 legislaturas em sua assembléia legislativa”. Embora tenha atribuído o
incidente da prisão ao jornal rival “A Federação”, nada foi comprovado e
inesperadamente, repentinamente e misteriosamente, Karl von Koseritz foi
encontrado morto poucas horas após a redação de seu manifesto e a intenção de
se retirar para a Europa em nome da segurança de sua família. O legado do
ex-mercenário Koseritz para o Vale do Paraíba foi a divulgação de um cenário
diferente dos demais viajantes, ainda que sua viagem fosse realizada de trem,
sendo então, muito mais curta que seus antecessores. O ponto comum entre todos
é a visão européia a respeito do restante do mundo, tornando-a um padrão que
todos deveriam seguir para serem considerados “civilizados”. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
BUENO, Eduardo. (Org.). História do Brasil. Publifolha. São
Paulo, 1997.
CALDEIRA, Jorge. Mauá,
Empresário do Império. Companhia das Letras. São Paulo, 1995.
CHUSTER, Vítor. São José
dos Micuins. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos Campos, 2011.
RODRIGUES, Antônio da Gama.
O Conde de Moreira Lima. Coleção Lorenense, Vol IX. Lorena, 2006.
KOSERITZ, Carl von. Imagens
do Brasil. Livraria Martins Editora/Edusp. São Paulo, 1972.
VASCONCELOS, Genserico de.
História Militar do Brasil. Impressa Militar. Rio de Janeiro, 1920.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog:
redescobrindoovale.blogspot.com.br
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