sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Ex-Mercenário.

                                 Imagem de Karl von Koseritz (1830-1890); extraída da internet.

                 
               Durante três séculos, Portugal e Espanha, rivais na Europa, transferiram sua animosidade e disputas às suas colônias na América Meridional. Alguns episódios marcantes dessa beligerância nos trópicos foram a fundação da Colônia do Sacramento em 1680 e a invasão da Capitania de São Pedro do Rio Grande (Rio Grande do Sul) pelo General Dom Pedro de Cevallos. Até o final do século XVIII, diversos tratados foram assinados pelas metrópoles ibéricas, no sentido de manter a estabilidade entre as suas respectivas possessões ultramarinas, cujas fronteiras nunca foram definidas. Com a vinda da família real lusa em 1808 para o Brasil, as tensões se acentuaram, principalmente após a decisão de Dom João VI de invadir e anexar a Banda Oriental do Rio da Prata em 1817. Ao proclamar a Independência em 1822, Dom Pedro I manteria a região anexada ao Império do Brasil, com o nome de Província Cisplatina.
            Porém, independente desde 1816, a Argentina não aceita a anexação da Banda Oriental e, em 1825, entra em guerra com o Brasil. Manipulado pela Inglaterra, o conflito termina em 1828, sem que, nem o Brasil e nem a Argentina garantissem a posse sobre o território sendo, então, criada a República Oriental do Uruguai. Na realidade, criou-se um Estado-tampão para inibir pretensões expansionistas, tanto do Brasil, como da Argentina. O conflito configurou, também, como uma reprise, ou continuidade, das disputas entre Espanha e Portugal. A criação do Estado do Uruguai, no entanto, não encerrou a hostilidades herdadas das metrópoles. Tanto na Argentina, como no Uruguai, haviam duas facções políticas antagônicas, os “blancos” e os “colorados”. A partir de 1829, com a ascensão de Juan Manuel Rosas na Argentina, os “blancos” consolidam a sua hegemonia, influenciando os seus congêneres no Uruguai. Dessa forma, o General Manuel Oribe, instigado por Rosas conspira contra o Presidente Frutuoso Rivera e monta um cerco de dez anos à capital uruguaia, Montevidéu; ordena também o ataque às estâncias de brasileiros, tanto no Uruguai como no Rio Grande do Sul. Para romper o referido cerco, o embaixador uruguaio no Brasil, Andrés Lamas, busca auxílio no Rio de Janeiro, junto às autoridades imperiais brasileiras. Articulado pelo Marquês de Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, e contando com o apoio financeiro de Irineu Evangelista de Sousa, futuro Barão de Mauá, o apoio do Brasil foi decisivo para resolver a questão platina. Contando com a neutralidade da Inglaterra, que “infernizara” o Brasil até a aprovação da Lei Eusébio de Queiróz, que suprimiu o tráfico negreiro, as tropas brasileiras, comandadas por Luís Alves de Lima e Silva, o Conde de Caxias, chegam à Montevidéu em meados de 1851.
            Todavia, o Marquês de Paraná utilizou da diplomacia, convencendo Oribe a mudar de lado, rendendo-se ao governo legítimo uruguaio, além de comprometer-se a combater Rosas. Para garantir a vitória diplomática, o referido Marquês, convenceu ainda José Justo Urquiza, Presidente da Província argentina de Entre Rios, a aliar-se ao Brasil e a Oribe, junto com o Uruguai contra o Presidente Rosas. Segundo a análise de Jorge Caldeira, em fevereiro de 1852, após um único combate, em Monte Caseros, o exército rosista foi desbaratado. O ditador nem sequer tentou estender a resistência na capital. Pediu asilo aos ingleses, embarcou na fragata “Conflict”, e dali assistiu ao desfile das tropas argentinas, uruguaias e brasileiras nas ruas de Buenos Aires. Apesar do peso da posição brasileira na questão platina e, mesmo da habilidade política do Marquês de Paraná, o resultado final, que resultou na incorporação ao Rio Grande do Sul de 1/5 do território do Uruguai, a mesma questão só foi bem sucedida pela presença de Irineu Evangelista de Sousa. Para Jorge Caldeira, coube ao futuro barão, à garantia logística da intervenção na zona de conflito e, no dia 6 de setembro de 1850, quando foi assinado o tratado de auxílio militar, junto com os governos do Brasil e Uruguai, “Irineu se comprometeu a fornecer dinheiro e armas para os uruguaios, supervisionar a contratação de mercenários na Europa, saldar algumas das dívidas antigas do governo de Montevidéu, conseguir peças de artilharia e navios para a guerra”. A utilização de mercenários sempre foi uma constante, tanto na Europa, como na América Latina. No Brasil, para garantir a independência, Dom Pedro I contratou os serviços do inglês John Grenfell e do francês Pierre Labatut. A justificativa era de que o exército nacional ainda não estava formado e treinado para os conflitos internacionais e, em 1852, o Governo Imperial do Brasil, apesar de contar com um efetivo de 16 mil homens para atuar no “baralho” platino, decide optar ainda pelos mercenários, ficando a responsabilidade, como citado, para Irineu Evangelista de Sousa. Este por sua vez, delega a incumbência do serviço na Europa, a Sebastião do Rego Barros. Dentre os diversos mercenários contratados para servir o Império do Brasil na crise platina, destacamos os prussianos, conhecidos pela sua rigorosa disciplina militar e eficiência na arte da guerra. Agrupados sob as ordens de Grenfell, os prussianos prestaram os seus serviços na Armada, durante toda a crise platina descrita acima, juntamente com soldados de outras nacionalidades, incluindo a própria brasileira.
            No entanto, depois de encerrado o conflito, poucos mercenários prussianos retornaram à Europa, preferindo permanecer no Brasil, em particular no Rio Grande do Sul; além de alguns que estabeleceram residência no Rio de Janeiro. O fato talvez fosse resultado do contato com as colônias alemãs nas duas localidades e à instabilidade política reinante na Europa, durante a segunda metade do século XIX. Um desses soldados mercenários da Prússia, que preferiu permanecer nos trópicos foi Karl Julius Adalbert Heinrich Ferdinand von Koseritz, filho do Barão de Koseritz, nascido em 1830 na cidade alemã de Dessau. Aos 21 anos de idade ingressou no corpo mercenário atuando como canhoneiro do 2º Regimento de Artilharia. Prefaciando a obra de Koseritz, lançada no Brasil em 1941, Afonso Arinos de Melo Franco, afirma que o contingente mercenário, após a derrota de Rosas, dispersou-se; “alguns terão regressado, enquanto muitos se enraizaram na terra, trabalhando no campo ou no comércio. Koseritz sentiu-se mais atraído pelo trabalho intelectual. Cinco anos depois de chegar ao Brasil, já redigia, na cidade de Pelotas, um jornal, o ‘Noticiador’, e de então para diante foi fundador ou redator de mais de dez folhas provincianas, de todos os gêneros: diários ou periódicas; literária, políticas, humorísticas, maçônicas...”. Dos diversos jornais fundados por Koseritz, o mais importante, segundo Afonso Arinos, foi o “Koseritz Deutsche Zeitung”, que circulou entre 1864 e 1885, alcançando grande difusão nas Províncias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. O referido jornal representou, também, “o verdadeiro órgão de expressão do pensamento e das reivindicações dos alemães no Brasil meridional”. Além do mais, o antigo combatente tornou-se também, professor, cientista, literato, político e um anticlerical. Ainda mencionando Afonso Arinos, Koseritz ocupou-se com as idéias políticas e religiosas e “ele escreveu vários opúsculos de combate à igreja Romana e aos dogmas, nos quais defende, ao mesmo tempo, o positivismo de Comte e o evolucionismo de Darwin”.
            Em 1883, Koseritz deixa o Rio Grande do Sul, rumo à capital do Império para uma viagem de cunho jornalístico, extendendo-a à Província de São Paulo, cujos relatos são enviados ao “Koseritz Deustsche Zeitung”; acaba reencontrando alguns dos antigos companheiros da crise platina, na maioria seus patrícios. A viagem de navio, a bordo do “Rio de Janeiro”, passou por Paranaguá e até ancorar na capital imperial, durou sete dias (de 12 a 19 de abril de 1883). Após um retorno rápido à terra gaúcha em junho do mesmo ano, Koseritz chega novamente ao Rio de Janeiro em 12 de julho; na sua permanência na cidade, juntamente a família, frequenta o ambiente da elite imperial, sendo recepcionado por Dom Pedro II várias vezes, no Palácio de São Cristóvão e em Petrópolis. Entre agosto e outubro de 1883 acompanha a visita do príncipe alemão Henrique, neto do imperador do II Reich, Guilherme I, o qual estava em viagem de treinamento militar. E no dia 5 de novembro de 1883, Koseritz e a sua família iniciam a viagem para São Paulo, pela Estrada de Ferro Dom Pedro II. Em seu relato afirma que na Estação Central, no Campo de Sant’Ana, tinha-se uma impressão européia pois a ordem era modelar, não entrando ninguém, “além dos passageiros, dos empregados e dos carregadores numerados, que são  severamente fiscalizados”. Viajando em vagão de 1ª classe, Koseritz observa as paisagens ao longo da ferrovia, dentre as quais as próximas de Barra do Piraí e do Rio Paraíba do Sul, ainda em território da Província do Rio de Janeiro. As anotações prosseguem, acompanhado o itinerário da viagem até Cachoeira (atual Cachoeira Paulista), ponto terminal da E. F. Dom Pedro II, Depois de Volta Redonda, chega a Barra Mansa, onde há “uma grande estação e bonitas casas. Bem junto à estação se via um magnífico jardim de gosto francês, em cujo fundo se achava um verdadeiro palácio”. Em seguida, vem a estação Surubi e Resende, a qual é considerada uma cidade bonita. Paralelamente à descrição das cidades e estações, Koseritz observa que as mesmas têm “os seus armazéns repletos de sacas de café, e ao longo da linha os morros de café se sucedem”. Adentrando a Província de São Paulo chegam à Queluz, atingindo logo Lavrinhas, e em seguida “Cruzeiro”.
            Contudo, apesar do nome, o que Koseritz vislumbrou foi a Estação do Cruzeiro que, ainda não havia sido inaugurada, mas já servia aos fazendeiros da Vila do Cruzeiro, cuja sede municipal, o Embaú, estava a 12Km  de distância. Além do mais, Koseritz talvez não tenha observado, ou ignorou, era de que, na referida estação já havia um entroncamento, de onde partia a Estrada de Ferro Minas and Rio Railway, cujo destino era a cidade mineira de Três Corações, que seria entregue ao tráfego em 1884. Finalmente a composição atinge Cachoeira, após atravessar a ponte sobre o Rio Paraíba, e viajar por 266 quilômetros em 7 horas. Diferente de outros viajantes europeus que transitaram pelo Vale do Paraíba ao longo do século XIX, Koseritz afirma no seu relato que Cachoeira “é uma boa cidade já com visível caráter paulista. Sobre a colina há um hotel no qual os passageiros que não trouxeram provisões almoçam habitualmente”. A preocupação do ex-soldado mercenário é agora acomodar a bagagem no vagão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio de Janeiro, ou Estrada do Norte, devido à diferença de bitola com relação à “Dom Pedro II”. A diferença, porém não ficava só nos bitolas, pois segundo Koseritz, “é chocante a diferença entre a amabilidade e a prestabilidade dos empregados da Estrada D. Pedro II e a grosseria, a indiferença e a brutalidade dos empregados da Estrada do Norte. A bitola é estreita e por isto os carros também o são (...). Arranjamos com grande dificuldade a nossa bagagem miúda e o carro se encheu de tal forma que nos estávamos como sardinhas em lata”. Partindo de Cachoeira, os viajantes chegam à Vila de Lorena, considerada também uma bonita cidade e possuindo uma bela igreja. Tal igreja tem toda a probabilidade de ser a de São Benedito, então recém-construída por Joaquim José Moreira Lima Júnior, o Conde de Moreira Lima, pois está situada próxima à estação ferroviária de Lorena e a única visível por Koseritz, durante a curta parada. Reiniciada a marcha, em quinze minutos chegam a Guaratinguetá. Para o jornalista alemão, depois de “Barra-Mansa é a mais bonita localidade nesse percurso de 294 quilômetros”. Após uma rápida parada em Aparecida, cujo monumento mais importante era “a grande e velha igreja”, e passada a pequenina estação de Roseira, o trem chega a Pindamonhangaba. Koseritz lamenta o fato de não poder visitar na cidade, com o curto tempo que dispõe, o fazendeiro Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo, o Barão Homem de Melo, antigo conhecido, que queria colonizar a propriedade, devido à falta de mão-de-obra, por causa do movimento abolicionista e a crise da produção de café na região. Pindamonhangaba é bem conceituada no relato de Koseritz, causando uma impressão agradável. Na seqüência, após 343 quilômetros, a partir do Rio de Janeiro, chegam a Taubaté, o qual também é “uma cidade relativamente importante, mas dela pouco vi, pois a estação, muito grande, barrava a vista”. Dez minutos depois de Taubaté, param por pouco tempo em Caçapava, que na opinião de Koseritz, “é um velho lugar com casas estragadas e sem jardins. A única coisa notável que ali vi foi uma quantidade de urubus, que (...) pousavam sobre os tetos dos quais pareciam ao longe ser um ornamento negro”.  Em São José do Paraíba, koseritz relata que nem a vila, nem a pequena estação oferecem algo de notável ou interessante e chegam à Vila de Jacareí, a qual apesar de possuir uma estação pequena, é uma grande, bonita e animada cidade. Na seqüência da descrição de seu relato, koseritz comete um equívoco ao mencionar a chegada à Guararema. Saindo de Jacareí, o renomado professor, cientista e jornalista afirma que já “nos aproximávamos do Tietê e a zona ficava de novo montanhosa. Logo passamos um túnel e chegamos diante do Tietê, o qual atravessamos em uma boa ponte de ferro. Pelas 4 horas e 12 minutos passamos na estação de Guararema, que não tem nada de interessante. O lugar é  pequeno e há pouca vida na estação”. Na realidade, a composição ferroviária atravessa o Rio Paraíba, no trecho vindo de Paraibuna, sentido Sudoeste até a chamada “curva de Guararema”; é provável que talvez Koseritz desconhecesse a geografia da região. Prosseguindo o itinerário, o trem chega a Mogi das Cruzes, completando 450 quilômetros de viagem, considerada como uma grande localidade, devido ao fato de possuir três grandes igrejas. Às 18 horas, finalmente, a viagem terrestre de Koseritz chega ao fim, com a parada na Estação do Norte em São Paulo, e com a duração total, de aproximadamente 13 horas. Depois de visitar a colônia alemã em São Paulo e cumprir os compromissos de seu jornal e da Província do Rio Grande do Sul, Koseritz embarca novamente em um trem; desta vez para Santos, onde rumaria para o Sul por mar, até chegar a Porto Alegre. Todo o relato da viagem de koseritz foi publicado na Alemanha em 1885, revelando mais uma vez para a Europa “civilizada”, os costumes, hábitos, história e cultura do Brasil, em particular do Vale do Paraíba.
            Todavia, mesmo tendo servido fielmente a pátria que conhecera em 1851, tornando-se admirado e respeitado nos meios políticos, intelectuais acadêmicos e da imprensa no período imperial, logo após o movimento que depôs a monarquia, Koseritz foi hostilizado pela nova ordem vigente, republicana, a mesma que defendia os direitos do homem e do cidadão, além da liberdade de imprensa. No dia 14 de maio de 1890, estando hospedado na chácara de José Vicente da Silva Teles, recebeu voz de prisão de Bibiano Dias de Castro, Sub-Delegado de Pedras Brancas, supostamente ordenado pelo novo governador do Rio Grande do Sul, General Júlio Anacleto Falcão da Frota. Em meio a desencontros de ordens e contraordens, Koseritz e sua família permaneceram em cárcere privado por oito dias e, após a libertação escreve um manifesto onde anuncia a partida para a Alemanha, depois de “35 anos de incansável trabalho, em bem de seu progresso (do Rio Grande do Sul) e que representei em 4 legislaturas em sua assembléia  legislativa”. Embora tenha atribuído o incidente da prisão ao jornal rival “A Federação”, nada foi comprovado e inesperadamente, repentinamente e misteriosamente, Karl von Koseritz foi encontrado morto poucas horas após a redação de seu manifesto e a intenção de se retirar para a Europa em nome da segurança de sua família. O legado do ex-mercenário Koseritz para o Vale do Paraíba foi a divulgação de um cenário diferente dos demais viajantes, ainda que sua viagem fosse realizada de trem, sendo então, muito mais curta que seus antecessores. O ponto comum entre todos é a visão européia a respeito do restante do mundo, tornando-a um padrão que todos deveriam seguir para serem considerados “civilizados”. Até a próxima.

               Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
BUENO, Eduardo. (Org.). História do Brasil. Publifolha. São Paulo, 1997.

CALDEIRA, Jorge. Mauá, Empresário do Império. Companhia das Letras. São Paulo, 1995.

CHUSTER, Vítor. São José dos Micuins. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos Campos, 2011.

RODRIGUES, Antônio da Gama. O Conde de Moreira Lima. Coleção Lorenense, Vol IX. Lorena, 2006.

KOSERITZ, Carl von. Imagens do Brasil. Livraria Martins Editora/Edusp. São Paulo, 1972.

VASCONCELOS, Genserico de. História Militar do Brasil. Impressa Militar. Rio de Janeiro, 1920.



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