Fotografia antiga de Cachoeira, extraída da internet. Ao centro a estação ferroviária e, ao fundo a Margem Esquerda.
Até a segunda década do século XIX, toda a área que corresponde ao
chamado “Vale Histórico”, além das cidades de Queluz, Lavrinhas, Piquete,
Cruzeiro e Cachoeira Paulista, integrava a Vila de Lorena. Emancipada da Vila
de Guaratingüetá em 1788, a
antiga Hepacaré, ou Guaipacaré, teve seu nome alterado em homenagem ao
Capitão-General da Capitania de São Paulo, Bernardo José de Lorena. À nova Vila
coube a responsabilidade de administrar o trecho paulista do Caminho Novo da
Piedade, inaugurado em 1778. Para incentivar a povoação e garantir a manutenção
do referido caminho, a Coroa passou a distribuir sesmarias ao longo do mesmo,
beneficiando em sua maioria os construtores ou aqueles que haviam cedido
escravos e recursos para o itinerário. Tais sesmarias iriam dar origens às
cidades que conhecemos atualmente no Vale Histórico e que, ao longo do século
XIX garantiu o reinado absoluto da rubiácea, proporcionando aos proprietários
rurais vultosas fortunas, luxo e ostentação.
A primeira
“mutilação” do grande município lorenense ocorreu ainda no domínio lusitano, no
reinado de D. João VI, quando o Brasil tornou-se sede do Reino Unido, junto com
Portugal e Algarves. A Freguesia de Sant’Anna das Areias foi levada à Vila pelo
próprio monarca em 1816, com o nome de São Miguel das Areias. Objetivava Dom
João VI, entre outras coisas, a homenagear o “filho” Dom Miguel, irmão de Dom
Pedro I. Apesar da homenagem e o afeto que o rei lhe devotava, Dom Miguel era
filho de Carlota Joaquina, rainha, com o Marquês de Marialva. Outras
emancipações ocorreriam: Bananal em 1832, Silveiras e Queluz em 1842, São José
do Barreiro em 1859, Cruzeiro em 1871, Bocaina em 1880, Pinheiros (Lavrinhas)
em 1881 e Piquete em 1891. Porém, vamos focalizar nossa análise em dois
municípios que um dia fizeram parte da Vila de Lorena, e que apesar de
possuírem históricos diferentes, vivenciaram praticamente meio século de
disputas políticas e territoriais, sendo que a origem de um deles integra a
esfera político-administrativa do outro.
Durante a fase
das bandeiras, inicialmente de preagem, os aventureiros, partindo da Vila São
Paulo ou da de Taubaté, percorriam o caminho, pela margem direita do Rio
Paraíba, acompanhando o seu curso. O destino era a Garganta do Embaú, na Serra
da Mantiqueira, a qual depois de transposta dava acesso ao Sertão dos
Cataguases, onde em fins do século XVII, foram descobertas as primeiras jazidas
de ouro. A caminhada era realizada até um ponto onde o Rio Paraíba era vadeável,
donde se cruzava o mesmo, prosseguindo o itinerário até a serra. O local da
travessia ficou conhecido como Porto da Cachoeira, devido ao fato de neste
trecho, o rio apresentar corredeiras, interpretadas como “cachoeiras”. Do
referido “porto”, os bandeirantes, aventureiros, desbravadores, etc, seguindo
rumo norte, atingiram uma região de várzea, onde habitavam grandes número de
índios Puris, estando a aldeia principal próximo ao Rio Embaú. A maioria desses
silvícolas foi escravizada e outros mortos; os que sobreviviam à fúria das
bandeiras internavam-se nas matas. Com a descoberta do ouro e inicio da
atividade mineradora, o caminho entre as minas e o Vale do Paraíba, passando pelo
Embaú, conheceu uma intensa circulação de pessoas e mercadorias. Isso fez com
que o local se tornasse um entreposto, ou ponto de parada obrigatória para
reabastecimento para quem ia e vinha das Gerais. Paralelamente, o Porto da
Cachoeira passou a ter movimentação constante, devido à travessia do Rio
Paraíba nos dois sentidos. Em ambos as localidades, começaram a surgir os
primeiros indícios de núcleos habitacionais, aglutinadas pela presença de
capelas. De acordo com a análise do Profº. Hilton Federici, após a construção
das capelas os habitantes se aglutinavam ao redor das mesmas, “daí partindo
para a tomada de consciência de que já constituíam um aglomerado com problemas
que afetavam igualmente a todos os membros dessa mesma coletividade.” Porém,
não seria a vida rural que iria incutir na mentalidade conjunta tal conceito,
pois, ainda citando Federici, era ”na missa ou em outro encontro propiciados
pela prática da vida religiosa, que a capela ia acentuando o seu papel
aglutinador e dando a todos a nítida consciência de que a povoação, de que
faziam parte poderia ter também a sua expressão política”.
Sendo assim, em
1781 Dom Frei Manuel de Ressurreição, 3º. Bispo de São Paulo autoriza a
construção de uma capela, em louvor a Nossa Senhora da Conceição, no arraial do
Embaú. O Bispo atendia assim uma solicitação do Sargento-Mor Antônio Lopes da
Lavre e, em 1787, a
capela é inaugurada com missa solene celebrada pelo Padre Manuel Gomes Loureiro,
de Lorena, no dia 7 de outubro. Quase ao mesmo, no arraial do Porto da Cachoeira
Manoel da Silva Caldas e a esposa Ângela Maria de Jesus, fazem doação em 1784,
de uma área para patrimônio da capela do Bom Jesus da Cana Verde, cuja
construção iniciara-se em 1780. Segundo Agostinho Ramos, no dia 23 de agosto de
1786, a
capela do Bom Jesus, “foi benzida pelo Padre Bauher em presença dos vigários de
Lorena, padres Manoel Bitencourt, e Nazareth Gonçalves da Silva.” Mesmo com o
reconhecimento do poder eclesiástico, os dois povoados ainda iriam esperar
quase um século, para evoluírem politicamente. Através da Lei nº. 281, de 19 de
fevereiro de 1846, o Presidente da Província de São Paulo, Manoel da Fonseca Lima
e Silva cria a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Embaú, equivalente ao
atual Distrito. Trinta anos mais tarde, com a Lei Provincial nº. 37, de 29 de
março de 1876, o antigo Porto da Cachoeira é elevado à Freguesia, com o nome de
Santo Antônio da Cachoeira. Nesse período, os trilhos da E. F. Dom Pedro II já haviam
atingido Cachoeira em 1875. Com a intensa atividade econômica proporcionada
pela ferrovia, a sede administrativa instalou-se na Margem Direta do Rio
Paraíba, em detrimento da Margem Esquerda. Com o deslocamento do fluxo
econômico, até o santo padroeiro foi “trocado”. Conforme o relato do saudoso
Agostinho Ramos, juntamente com a movimentação das ferrovias, ocorreu a doação
para patrimônio de uma nova igreja; tal patrimônio, “ em terras oferecido a
Santo Antônio, na Margem Direta a
movimentação das estradas de ferro que ai se encontravam , o intenso comercio
e, ainda mais, a topografia do terreno, foram a causa da criação da Freguesia.”
Nesse
ínterim, a Freguesia do Embaú já tinha sido elevada à condição de Município. No
dia 06 de março de 1871, através da Lei nº8, o Presidente da Província de São
Paulo, Antônio Costa Pinto e Silva, criou a Vila de Nossa Senhora da Conceição
do Cruzeiro, cuja sede instala-se no Embaú com a posse dos vereadores eleitos
para a Câmara Municipal, ocorrida no dia 08 de janeiro de 1873. Os primeiros
edis do Município de Cruzeiro, com sede no Embaú, foram: Capitão Mariano
Ferreira da Silva, Alferes Antônio Muniz Barreto, Tenente Galdino Teixeira
Coelho, Tenente Antônio Nunes Duarte, Francisco Salustiano de Souza Júnior,
Jordão Pinto de Castilho e Alferes José Modesto Pinto. Como previa a legislação
imperial, por ter sido o mais votado coube ao Capitão Mariano Ferreira da Silva
a presidência da Câmara Municipal. Com a criação da nova Vila, o Embaú agora
com o nome de Cruzeiro (não confundir com a atual cidade do mesmo nome), é
desmembrado da Vila de Lorena, levando consigo bairros ou povoados isolados; enquanto
isso o Porto da Cachoeira permanece sob a esfera político-administrativa lorenense. Porém, como afirmamos
anteriormente, as ferrovias alavancam o rápido desenvolvimento da Freguesia de
Santo Antônio da Cachoeira e, em menos de quatro anos a mesma é também elevada
à condição de Município, Com a Lei nº 5 de 09 de março de 1880, o Presidente da
Província de São Paulo, Laurindo Abelardo de Brito, autoriza a criação da Vila
de Santo Antônio da Bocaína, sendo desmembrada da Vila de Lorena. Como não
possuísse uma sede própria a Câmara foi instalada em uma das torres da estação ferroviária,
sendo empossados os vereadores Tenente Domiciano Rodrigues Pinto, Manoel Saturnino
de Seixas, Joaquim dos Santos Pinto Júnior, Tenente Joaquim José Rodrigues da Mota,
Joaquim Cândido Pinto, Joaquim Luiz de Freitas e Joaquim Pedro Babosa. A cerimônia
de posse ocorreu no dia 08 de janeiro de 1883. Emancipados de Lorena, os dois
municípios tiveram seus limites mantidos, quando da demarcação decorrente da
criação da Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira. Em obra conceituada, o
Profº. Agostinho Ramos cita o ato do
Governo Provincial de São Paulo, quando fixou as referidas divisas no dia 24 de
julho de 1876. De acordo com o documento oficial, tais divisas “começarão na
barra de um pequeno córrego que deságua no Rio Paraíba, pouco abaixo da ponte
de ferro de D. Pedro II no mesmo rio Paraíba, da dita barra devem seguir por um
espigão que fica ao lado Sul, a procurar um valo das divisas da fazenda de José
Maria de Macedo, que vai ter a um pequeno córrego; por este abaixo até onde faz
barra em outro córrego que verte dos sítios dos herdeiros do finado Antonio
Francisco de Castilho; por este acima até encontrar com terras do Patrimônio do
Senhor Bom Jesus; pelo rumo do mesmo Patrimônio com a fazenda do Drº. Antonio
José da Costa Júnior até ao rio Paraíba e por este abaixo até ao primeiro ponto
de partida”. Embora o documento citado não mencione os nomes dos córregos e das
fazendas, está bem claro que a fronteira com o Embaú era bem próxima da Margem
Esquerda, até ser modificada em 1934, como veremos a seguir.
Pouco antes da
instalação da Câmara Municipal da Vila da Bocaína, uma lei aprovada na
Assembléia Provincial, iniciou um litígio entre as duas vilas desmembradas de
Lorena que se arrastaria por 52 anos. Tal lei era a de nº. 44, de 03 de abril
de 1882, a
qual anexou à Vila do Cruzeiro, ou seja, ao Embaú, parte de terrenos encravados
em uma das fazendas de Antônio José da Costa Júnior. Segundo a análise de
Agostinho Ramos, os referidos terrenos, “vinham morrer na Margem Esquerda,
parte da rua 29 de março, onde Cruzeiro cobrava impostos municipais”. Diante da
situação a edilidade da Vila da Bocaína leva o caso à Assembléia Provincial e,
através da Comissão de Estatística, é elaborada o Projeto nº. 190, o qual
decide que a Lei nº. 44 deveria ser revogada, voltando as divisas à situação de
antes de tal lei. O projeto apresentado em 09 de março de 1885 foi, porém,
rejeitado e a municipalidade de Cruzeiro continuava cobrando impostos na Margem
Esquerda, inclusive de prédios urbanos. A querela prosseguia e, nos primórdios da
República, o Presidente do Estado de São Paulo, Prudente de Morais cria, por
decreto, de 27 de maio de 1890, o Têrmo da Bocaína, incluindo Cruzeiro. Com a
Lei nº. 80, de 25 de agosto de 1892, Bernardino de Campos, Presidente do Estado
de São Paulo, cria a Comarca da Bocaína, mantendo o Município de Cruzeiro na
dependência jurídica em relação à Cachoeira, mas não alterou as divisas.
Revoltados, os políticos do Embaú resolvem reivindicar a sua própria comarca,
sem discutir a questão dos limites, junto ao Executivo e Legislativo estadual,
sem terem sucesso.
Entrementes, a
Vila de Cruzeiro, vivia sua crise política e econômica internamente. Desde a
inauguração de ferrovia “Minas and Rio”, o povoado surgido ao redor da estação,
conheceu um rápido desenvolvimento, em detrimento da própria sede, que começou
a definhar. O referido povoado passou a disputar com o Embaú a sede
administrativa do município. Surgiu assim, a questão dos dois “Cruzeiros”: o
Povoado do Estado do Cruzeiro e a Vila de Nossa Senhora da Conceição do
Cruzeiro, sendo que o primeiro suplantou o segundo. Após a malograda criação da
Vila Novaes, de duração efêmera, criada em 1891 e extinta em 1892, os herdeiros
políticos do Major Novaes conseguem da Assembléia Estadual a aprovação da Lei
nº. 789, de 02 de outubro de 1901, que transferia a sede municipal do Embaú
para o Povoado da Estação, para desgosto e revolta dos correligionários do
Major Chispim Bastos, contrários à medida. Com a referida transferência, o Embaú
volta ao status de Freguesia, agora denominada Distrito e no Povoado da Estação
tem inicio a atual cidade de Cruzeiro.
Entretanto,
resolvida a questão interna, os cruzeirenses continuavam a pleitear a sua
comarca nos primeiras décadas do século XX. No início da década de 1930, a situação começa a
se modificar, tendo em vista o cenário nacional, após a tomada do poder por Getúlio
Vargas na Revolução de outubro do mesmo ano. Em 1931, seguindo orientações de
Vargas, o Interventor Federal em
São Paulo , Coronel João Alberto comunica que os municípios
que obtivessem renda inferior a 100:000$000 anuais, seriam extintos e
incorporados a outros maiores. A medida só foi aplicada em 1934, devido ao
levante paulista contra Vargas em 1932. Em março de 1934, um grupo de moradores
da Rua Campos Sales, na Margem Esquerda, compareceu no gabinete do então
Prefeito Agostinho Ramos e entregaram várias cobranças de impostos lançados
pela Prefeitura de Cruzeiro.
A longa disputa
chegou ao fim com o Decreto nº. 6.448, de 21 de setembro de 1934, no governo de
Armando de Sales Oliveira, quando houve a extinção do Jataí , como município e
sua incorporação à Cachoeira, em sua maior parte. Em setembro é criada a
Comarca de Cruzeiro e as divisas foram retificadas estabelecendo como limite
natural o Rio Embaú. Para Agostinho Ramos, “Cruzeiro obteve sua desejada, justa,
oportuna comarca e Cachoeira afastou suas divisas para bem longe, aumentando,
grandemente, a área do seu município”. Com a incorporação do Jataí, foram
anexados à Cachoeira os bairros do Quilombo, Embauzinho e o próprio Embaú,
célula-mater de Cruzeiro, nas palavras de Hilton Federici. A posse do Embaú
ocorreu no dia 19 de agosto de 1934, quando a comitiva do Prefeito Agostinho
Ramos foi solenemente recebida com todas as honras no posto policial local,
através de um discurso proferido por José de Oliveira Montenegro, tio-avô do
autor do presente relato. Em seguida, discursou também, saudando as autoridades
cachoeirenses, a Profª. Maria Aparecida Godoy. Após as formalidades oficiais, a
comitiva dirigiu-se à sede da Fazenda Godoy, sendo recebida pela proprietária
Ricarda de Castro Fleming. Entre o final de 1947 e 1948, alguns habitantes do
Embaú e Quilombo, promoveram um abaixo assinado, solicitando a reincorporação à
cidade de Cruzeiro. Um plebiscito foi realizado em 24 de outubro de 1948 e,
Cachoeira, na época chamada de Valparaíba estava perto da derrota, quando o
caso foi para a Assembléia Legislativa novamente. Porém, o Deputado Castro
Neves, pró Cruzeiro, apontou que um dia antes fora aprovada a emenda 103, de
autoria do Deputado Ulisses Guimarães, que impedia a permuta de um território
de uma comarca para outra. As pretensões de reincorporarão à Cruzeiro foram
sepultadas definitivamente. Até a próxima.
Eddy Carlos.
Dicas para consulta.
FEDERICI, Hilton. História
de Cruzeiro. 2 volumes. Publicações da Academia Campinense de Letras. Campinas, 1974 e
1978.
FÉLIX, Sandra Regina (Org.). Cachoeira
Paulista. Fé, História e Tradição. Noovha América. São Paulo, 2005.
RAMOS, Agostinho. Cachoeira
Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971.
TOLEDO, Francisco Sodero. Estrada
Real. Caminho Novo da Piedade. Ed. Alínea. Campinas, 2009.
E-mail: eddycarlos@ymail.com
Blog:
redescobrindoovale.blogspot.com.br
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