sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A Longa Querela.

Fotografia antiga de Cachoeira, extraída da internet. Ao centro a estação ferroviária e, ao fundo a                                                                       Margem Esquerda.


         Até a segunda década do século XIX, toda a área que corresponde ao chamado “Vale Histórico”, além das cidades de Queluz, Lavrinhas, Piquete, Cruzeiro e Cachoeira Paulista, integrava a Vila de Lorena. Emancipada da Vila de Guaratingüetá em 1788, a antiga Hepacaré, ou Guaipacaré, teve seu nome alterado em homenagem ao Capitão-General da Capitania de São Paulo, Bernardo José de Lorena. À nova Vila coube a responsabilidade de administrar o trecho paulista do Caminho Novo da Piedade, inaugurado em 1778. Para incentivar a povoação e garantir a manutenção do referido caminho, a Coroa passou a distribuir sesmarias ao longo do mesmo, beneficiando em sua maioria os construtores ou aqueles que haviam cedido escravos e recursos para o itinerário. Tais sesmarias iriam dar origens às cidades que conhecemos atualmente no Vale Histórico e que, ao longo do século XIX garantiu o reinado absoluto da rubiácea, proporcionando aos proprietários rurais vultosas fortunas, luxo e ostentação.
            A primeira “mutilação” do grande município lorenense ocorreu ainda no domínio lusitano, no reinado de D. João VI, quando o Brasil tornou-se sede do Reino Unido, junto com Portugal e Algarves. A Freguesia de Sant’Anna das Areias foi levada à Vila pelo próprio monarca em 1816, com o nome de São Miguel das Areias. Objetivava Dom João VI, entre outras coisas, a homenagear o “filho” Dom Miguel, irmão de Dom Pedro I. Apesar da homenagem e o afeto que o rei lhe devotava, Dom Miguel era filho de Carlota Joaquina, rainha, com o Marquês de Marialva. Outras emancipações ocorreriam: Bananal em 1832, Silveiras e Queluz em 1842, São José do Barreiro em 1859, Cruzeiro em 1871, Bocaina em 1880, Pinheiros (Lavrinhas) em 1881 e Piquete em 1891. Porém, vamos focalizar nossa análise em dois municípios que um dia fizeram parte da Vila de Lorena, e que apesar de possuírem históricos diferentes, vivenciaram praticamente meio século de disputas políticas e territoriais, sendo que a origem de um deles integra a esfera político-administrativa do outro.
            Durante a fase das bandeiras, inicialmente de preagem, os aventureiros, partindo da Vila São Paulo ou da de Taubaté, percorriam o caminho, pela margem direita do Rio Paraíba, acompanhando o seu curso. O destino era a Garganta do Embaú, na Serra da Mantiqueira, a qual depois de transposta dava acesso ao Sertão dos Cataguases, onde em fins do século XVII, foram descobertas as primeiras jazidas de ouro. A caminhada era realizada até um ponto onde o Rio Paraíba era vadeável, donde se cruzava o mesmo, prosseguindo o itinerário até a serra. O local da travessia ficou conhecido como Porto da Cachoeira, devido ao fato de neste trecho, o rio apresentar corredeiras, interpretadas como “cachoeiras”. Do referido “porto”, os bandeirantes, aventureiros, desbravadores, etc, seguindo rumo norte, atingiram uma região de várzea, onde habitavam grandes número de índios Puris, estando a aldeia principal próximo ao Rio Embaú. A maioria desses silvícolas foi escravizada e outros mortos; os que sobreviviam à fúria das bandeiras internavam-se nas matas. Com a descoberta do ouro e inicio da atividade mineradora, o caminho entre as minas e o Vale do Paraíba, passando pelo Embaú, conheceu uma intensa circulação de pessoas e mercadorias. Isso fez com que o local se tornasse um entreposto, ou ponto de parada obrigatória para reabastecimento para quem ia e vinha das Gerais. Paralelamente, o Porto da Cachoeira passou a ter movimentação constante, devido à travessia do Rio Paraíba nos dois sentidos. Em ambos as localidades, começaram a surgir os primeiros indícios de núcleos habitacionais, aglutinadas pela presença de capelas. De acordo com a análise do Profº. Hilton Federici, após a construção das capelas os habitantes se aglutinavam ao redor das mesmas, “daí partindo para a tomada de consciência de que já constituíam um aglomerado com problemas que afetavam igualmente a todos os membros dessa mesma coletividade.” Porém, não seria a vida rural que iria incutir na mentalidade conjunta tal conceito, pois, ainda citando Federici, era ”na missa ou em outro encontro propiciados pela prática da vida religiosa, que a capela ia acentuando o seu papel aglutinador e dando a todos a nítida consciência de que a povoação, de que faziam parte poderia ter também a sua expressão política”.
            Sendo assim, em 1781 Dom Frei Manuel de Ressurreição, 3º. Bispo de São Paulo autoriza a construção de uma capela, em louvor a Nossa Senhora da Conceição, no arraial do Embaú. O Bispo atendia assim uma solicitação do Sargento-Mor Antônio Lopes da Lavre e, em 1787, a capela é inaugurada com missa solene celebrada pelo Padre Manuel Gomes Loureiro, de Lorena, no dia 7 de outubro. Quase ao mesmo, no arraial do Porto da Cachoeira Manoel da Silva Caldas e a esposa Ângela Maria de Jesus, fazem doação em 1784, de uma área para patrimônio da capela do Bom Jesus da Cana Verde, cuja construção iniciara-se em 1780. Segundo Agostinho Ramos, no dia 23 de agosto de 1786, a capela do Bom Jesus, “foi benzida pelo Padre Bauher em presença dos vigários de Lorena, padres Manoel Bitencourt, e Nazareth Gonçalves da Silva.” Mesmo com o reconhecimento do poder eclesiástico, os dois povoados ainda iriam esperar quase um século, para evoluírem politicamente. Através da Lei nº. 281, de 19 de fevereiro de 1846, o Presidente da Província de São Paulo, Manoel da Fonseca Lima e Silva cria a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Embaú, equivalente ao atual Distrito. Trinta anos mais tarde, com a Lei Provincial nº. 37, de 29 de março de 1876, o antigo Porto da Cachoeira é elevado à Freguesia, com o nome de Santo Antônio da Cachoeira. Nesse período, os trilhos da E. F. Dom Pedro II já haviam atingido Cachoeira em 1875. Com a intensa atividade econômica proporcionada pela ferrovia, a sede administrativa instalou-se na Margem Direta do Rio Paraíba, em detrimento da Margem Esquerda. Com o deslocamento do fluxo econômico, até o santo padroeiro foi “trocado”. Conforme o relato do saudoso Agostinho Ramos, juntamente com a movimentação das ferrovias, ocorreu a doação para patrimônio de uma nova igreja; tal patrimônio, “ em terras oferecido a Santo Antônio, na Margem Direta  a movimentação das estradas de ferro que ai se encontravam , o intenso comercio e, ainda mais, a topografia do terreno, foram a causa da criação da Freguesia.”
              Nesse ínterim, a Freguesia do Embaú já tinha sido elevada à condição de Município. No dia 06 de março de 1871, através da Lei nº8, o Presidente da Província de São Paulo, Antônio Costa Pinto e Silva, criou a Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro, cuja sede instala-se no Embaú com a posse dos vereadores eleitos para a Câmara Municipal, ocorrida no dia 08 de janeiro de 1873. Os primeiros edis do Município de Cruzeiro, com sede no Embaú, foram: Capitão Mariano Ferreira da Silva, Alferes Antônio Muniz Barreto, Tenente Galdino Teixeira Coelho, Tenente Antônio Nunes Duarte, Francisco Salustiano de Souza Júnior, Jordão Pinto de Castilho e Alferes José Modesto Pinto. Como previa a legislação imperial, por ter sido o mais votado coube ao Capitão Mariano Ferreira da Silva a presidência da Câmara Municipal. Com a criação da nova Vila, o Embaú agora com o nome de Cruzeiro (não confundir com a atual cidade do mesmo nome), é desmembrado da Vila de Lorena, levando consigo bairros ou povoados isolados; enquanto isso o Porto da Cachoeira permanece sob a esfera político-administrativa  lorenense. Porém, como afirmamos anteriormente, as ferrovias alavancam o rápido desenvolvimento da Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira e, em menos de quatro anos a mesma é também elevada à condição de Município, Com a Lei nº 5 de 09 de março de 1880, o Presidente da Província de São Paulo, Laurindo Abelardo de Brito, autoriza a criação da Vila de Santo Antônio da Bocaína, sendo desmembrada da Vila de Lorena. Como não possuísse uma sede própria a Câmara foi instalada em uma das torres da estação ferroviária, sendo empossados os vereadores Tenente Domiciano Rodrigues Pinto, Manoel Saturnino de Seixas, Joaquim dos Santos Pinto Júnior, Tenente Joaquim José Rodrigues da Mota, Joaquim Cândido Pinto, Joaquim Luiz de Freitas e Joaquim Pedro Babosa. A cerimônia de posse ocorreu no dia 08 de janeiro de 1883. Emancipados de Lorena, os dois municípios tiveram seus limites mantidos, quando da demarcação decorrente da criação da Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira. Em obra conceituada, o Profº.  Agostinho Ramos cita o ato do Governo Provincial de São Paulo, quando fixou as referidas divisas no dia 24 de julho de 1876. De acordo com o documento oficial, tais divisas “começarão na barra de um pequeno córrego que deságua no Rio Paraíba, pouco abaixo da ponte de ferro de D. Pedro II no mesmo rio Paraíba, da dita barra devem seguir por um espigão que fica ao lado Sul, a procurar um valo das divisas da fazenda de José Maria de Macedo, que vai ter a um pequeno córrego; por este abaixo até onde faz barra em outro córrego que verte dos sítios dos herdeiros do finado Antonio Francisco de Castilho; por este acima até encontrar com terras do Patrimônio do Senhor Bom Jesus; pelo rumo do mesmo Patrimônio com a fazenda do Drº. Antonio José da Costa Júnior até ao rio Paraíba e por este abaixo até ao primeiro ponto de partida”. Embora o documento citado não mencione os nomes dos córregos e das fazendas, está bem claro que a fronteira com o Embaú era bem próxima da Margem Esquerda, até ser modificada em 1934, como veremos a seguir.
            Pouco antes da instalação da Câmara Municipal da Vila da Bocaína, uma lei aprovada na Assembléia Provincial, iniciou um litígio entre as duas vilas desmembradas de Lorena que se arrastaria por 52 anos. Tal lei era a de nº. 44, de 03 de abril de 1882, a qual anexou à Vila do Cruzeiro, ou seja, ao Embaú, parte de terrenos encravados em uma das fazendas de Antônio José da Costa Júnior. Segundo a análise de Agostinho Ramos, os referidos terrenos, “vinham morrer na Margem Esquerda, parte da rua 29 de março, onde Cruzeiro cobrava impostos municipais”. Diante da situação a edilidade da Vila da Bocaína leva o caso à Assembléia Provincial e, através da Comissão de Estatística, é elaborada o Projeto nº. 190, o qual decide que a Lei nº. 44 deveria ser revogada, voltando as divisas à situação de antes de tal lei. O projeto apresentado em 09 de março de 1885 foi, porém, rejeitado e a municipalidade de Cruzeiro continuava cobrando impostos na Margem Esquerda, inclusive de prédios urbanos. A querela prosseguia e, nos primórdios da República, o Presidente do Estado de São Paulo, Prudente de Morais cria, por decreto, de 27 de maio de 1890, o Têrmo da Bocaína, incluindo Cruzeiro. Com a Lei nº. 80, de 25 de agosto de 1892, Bernardino de Campos, Presidente do Estado de São Paulo, cria a Comarca da Bocaína, mantendo o Município de Cruzeiro na dependência jurídica em relação à Cachoeira, mas não alterou as divisas. Revoltados, os políticos do Embaú resolvem reivindicar a sua própria comarca, sem discutir a questão dos limites, junto ao Executivo e Legislativo estadual, sem terem sucesso.
            Entrementes, a Vila de Cruzeiro, vivia sua crise política e econômica internamente. Desde a inauguração de ferrovia “Minas and Rio”, o povoado surgido ao redor da estação, conheceu um rápido desenvolvimento, em detrimento da própria sede, que começou a definhar. O referido povoado passou a disputar com o Embaú a sede administrativa do município. Surgiu assim, a questão dos dois “Cruzeiros”: o Povoado do Estado do Cruzeiro e a Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro, sendo que o primeiro suplantou o segundo. Após a malograda criação da Vila Novaes, de duração efêmera, criada em 1891 e extinta em 1892, os herdeiros políticos do Major Novaes conseguem da Assembléia Estadual a aprovação da Lei nº. 789, de 02 de outubro de 1901, que transferia a sede municipal do Embaú para o Povoado da Estação, para desgosto e revolta dos correligionários do Major Chispim Bastos, contrários à medida. Com a referida transferência, o Embaú volta ao status de Freguesia, agora denominada Distrito e no Povoado da Estação tem inicio a atual cidade de Cruzeiro.
            Entretanto, resolvida a questão interna, os cruzeirenses continuavam a pleitear a sua comarca nos primeiras décadas do século XX. No início da década de 1930, a situação começa a se modificar, tendo em vista o cenário nacional, após a tomada do poder por Getúlio Vargas na Revolução de outubro do mesmo ano. Em 1931, seguindo orientações de Vargas, o Interventor Federal em São Paulo, Coronel João Alberto comunica que os municípios que obtivessem renda inferior a 100:000$000 anuais, seriam extintos e incorporados a outros maiores. A medida só foi aplicada em 1934, devido ao levante paulista contra Vargas em 1932. Em março de 1934, um grupo de moradores da Rua Campos Sales, na Margem Esquerda, compareceu no gabinete do então Prefeito Agostinho Ramos e entregaram várias cobranças de impostos lançados pela Prefeitura de Cruzeiro.
            A longa disputa chegou ao fim com o Decreto nº. 6.448, de 21 de setembro de 1934, no governo de Armando de Sales Oliveira, quando houve a extinção do Jataí , como município e sua incorporação à Cachoeira, em sua maior parte. Em setembro é criada a Comarca de Cruzeiro e as divisas foram retificadas estabelecendo como limite natural o Rio Embaú. Para Agostinho Ramos, “Cruzeiro obteve sua desejada, justa, oportuna comarca e Cachoeira afastou suas divisas para bem longe, aumentando, grandemente, a área do seu município”. Com a incorporação do Jataí, foram anexados à Cachoeira os bairros do Quilombo, Embauzinho e o próprio Embaú, célula-mater de Cruzeiro, nas palavras de Hilton Federici. A posse do Embaú ocorreu no dia 19 de agosto de 1934, quando a comitiva do Prefeito Agostinho Ramos foi solenemente recebida com todas as honras no posto policial local, através de um discurso proferido por José de Oliveira Montenegro, tio-avô do autor do presente relato. Em seguida, discursou também, saudando as autoridades cachoeirenses, a Profª. Maria Aparecida Godoy. Após as formalidades oficiais, a comitiva dirigiu-se à sede da Fazenda Godoy, sendo recebida pela proprietária Ricarda de Castro Fleming. Entre o final de 1947 e 1948, alguns habitantes do Embaú e Quilombo, promoveram um abaixo assinado, solicitando a reincorporação à cidade de Cruzeiro. Um plebiscito foi realizado em 24 de outubro de 1948 e, Cachoeira, na época chamada de Valparaíba estava perto da derrota, quando o caso foi para a Assembléia Legislativa novamente. Porém, o Deputado Castro Neves, pró Cruzeiro, apontou que um dia antes fora aprovada a emenda 103, de autoria do Deputado Ulisses Guimarães, que impedia a permuta de um território de uma comarca para outra. As pretensões de reincorporarão à Cruzeiro foram sepultadas definitivamente. Até a próxima.

                                                                                               Eddy Carlos.


Dicas para consulta.
FEDERICI, Hilton. História de Cruzeiro. 2 volumes. Publicações da Academia     Campinense de Letras. Campinas, 1974 e 1978. 

FÉLIX, Sandra Regina (Org.). Cachoeira Paulista. Fé, História e Tradição. Noovha América. São Paulo, 2005.

RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971.

TOLEDO, Francisco Sodero. Estrada Real. Caminho Novo da Piedade. Ed. Alínea. Campinas, 2009.

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Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br


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