terça-feira, 30 de setembro de 2014

Os Redutos de Lázaro.




            Na natureza, de todos os seres vivos, principalmente os animais, o ser humano é o mais frágil, sendo desprovido de recursos contra a variação climática e de sistema de defesa próprios. Para adaptar-se ao meio ambiente e sobreviver a todas as dificuldades, os primeiros hominídeos confeccionavam roupas a partir de peles de animais e armas de pedra lascada, passando a de pedra polida até a era dos metais. Com o desenvolvimento do cérebro ao longo do período evolutivo, o homem passou a usar da razão para adaptar a natureza ao seu conforto, tornando-se sedentário, e vivendo em comunidades organizadas em sistema de “pré-estado”, o homem passou a dominar não só a natureza e os seres vivos, mas também os seus semelhantes. Porém, a despeito de se destacar dentre os demais seres vivos, devido à racionalidade e ao desenvolvimento da cultura, o homem sempre esteve vulnerável às mais variadas espécies de enfermidades, muitas mortais. Uma das doenças mais temidas e que se manifesta entre os humanos desde épocas remotas é a lepra, denominada também de morféia, possuindo caráter crônico. Conhecida desde os tempos bíblicos foi somente em 1874 que o médico norueguês Gerhard Armauer Hansen (1841-1912) descobriu que a mesma era causa por um bacilo, batizado de Mycobacterium leprae, mais conhecido como “Bacilo de Hansen”.  Devido à ação do médico, a doença ficou conhecida até os dias atuais como hanseníase. Segundo a Enciclopédia Barsa, a doença apresenta duas formas principais chamadas lepra cutânea e lepra nervosa, sendo que, em geral, aquela se associa a esta, sobretudo na fase inicial. A moléstia é considerada levemente contagiosa nos dias atuais, ao contrário do que os povos antigos supunham, donde o pavor à proximidade de qualquer enfermo. As principais características são as manchas brancas ou avermelhadas na pele, onde não há sensibilidade, não suam e não coçam. No estágio avançado ou terminal, ocorrem, segundo a Barsa, “lesões ósseas e articulares, mutilações pela destruição e queda de parte ou totalidade dos dedos. São também freqüentes a úlcera da sola do pé e atrofias dos músculos da face”. Os portadores de tal doença eram chamados de leprosos desde os tempos antigos; foram denominados também de morféticos e atualmente são diagnosticados com a denominação de hansenianos. Como mencionado, a doença era muito temida e os doentes quando descobertos eram segregados das aldeias e cidades para um local bem distante para esperarem pela morte que os aliviaria de tal padecimento.
            Como afirmamos anteriormente, os povos antigos principalmente os citados na Bíblia Sagrada temiam a lepra de tal forma que ela constava na Lei de Moisés. No livro de Levítico 13, 45-46, do Antigo Testamento, está determinado que o “leproso atacado de lepra trará suas vestes estraçalhadas e deixará em desordem seus cabelos, cobrirá sua barba e gritará: ‘Impuro! impuro’. Por todo o tempo que durar sua chaga, será impuro. Ele é impuro: habitará sozinho; sua morada será fora do acampamento”. O texto acima foi direcionado para os hebreus que vagavam pelo Deserto do Sinai, após a saída do Egito, e já norteava aos filhos de Israel, como proceder em caso de manifestação da moléstia. A Bíblia narra diversos casos de lepra, onde os doentes só se curavam após o arrependimento de alguma falta seguida da intervenção divina. No livro dos Números 12, 1-16, é narrado o episódio da lepra de Mírian, irmã de Moisés, punida por levantar-se contra o irmão. No livro 2 Reis 5, 1-27, o texto bíblico narra o episódio de Naaman, general do exército de Ben-Hadad II, rei de Aram ( atual Síria). Tendo adquirido a lepra, o general, aconselhado por israelitas cativos dos arameus, procura o profeta Eliseu, que o aconselha a mergulhar sete vezes no Rio Jordão, ficando assim curado. Ainda em 2 Reis 15,1-7, consta como o Rei Azarias, de Judá, foi punido com a lepra por ousar queimar o incenso no altar, função exclusiva do Sumo Sacerdote.
            Entretanto, é no Novo Testamento, principalmente nos Evangelhos, que encontramos as mais conhecidas narrativas históricas da ocorrência da lepra em especial entre os judeus, então dominado pelo jugo do Império Romano. Um dos episódios mais conhecidos é o de quando Jesus Cristo ao passar em um povoado na fronteira entre as províncias da Samaria e da Galiléia encontrou dez leprosos que vinham ao seu encontro, implorando-lhe a cura, conforme descrito no Evangelho de São Lucas 17,11-19. Após a cura obtida, apenas um teria retornado para agradecer a graça alcançada e o que chama a atenção é de que se tratava de um samaritano, grupo étnico-religioso odiado pelos judeus da época. Outro episódio marcante no Novo Testamento é do encontro de Jesus com Simão, o Leproso, que hospedou o rabino em sua residência, o que causou indignação entre a elite religiosa judaica submissa à Roma, conforme narrado no Evangelho de São Marcos 14, 3-9. Mas o que marcou de forma significativa a doutrina cristã foi o conto  narrado na parábola do rico avarento e do pobre Lázaro. Segundo a narrativa de São Lucas 16, 19-22, havia “um homem rico que se vestia de púrpura e linho, e se banqueteava esplendidamente todos os dias. E jazia prostrado junto ao seu portão, um mendigo de nome Lázaro, todo coberto de chagas, que desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava, e os cães iam lamber-lhe as chagas. Lázaro morreu e foi levado ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi para o inferno”. Esse Lázaro citado na parábola de Cristo não deve ser confundido com o sujeito homônimo, morador na cidade de Betânia, irmão de Marta e Maria. O personagem da parábola é fictício ao passo que o segundo de fato existiu, e de acordo com a narrativa bíblica morreu por outros motivos e foi ressuscitado por Jesus Cristo.
            Todavia, com a expansão do cristianismo do Oriente para a Europa, atrelado à hegemonia da Igreja após a queda do Império Romano, diversos personagens fictícios e na maioria verídicos foram canonizados, tornando-se santos. Dentre os vários santos católicos, destacamos, São Lázaro, referente ao personagem da parábola. Cultuado na Europa, em particular no Reino de Portugal, São Lázaro tem a sua festa litúrgica, comemorada no dia 21 de junho. Com o advento das grandes navegações, conquista e colonização do continente americano, os reinos ibéricos trouxeram também a religião católica e todo o seu panteão de santos, dentre os quais o já mencionado São Lázaro Junto com o domínio luso no Brasil, veio além da fé católica, diversas enfermidades, inclusive a lepra. De acordo com Cláudio Bertolli Filho, desde os primórdios da colonização nos trópicos, houve uma confusão ao diagnosticar determinadas dermatoses não contagiosas, a sífilis e a lepra. O primeiro registro da tão temida doença ocorreu em 1768 na Capitania de São Paulo. Nesse ano, segundo Cláudio Bertolli, “devido ao acelerado aumento do número de casas, cogitou-se a instalação de um lazareto na Vila de Parnaíba. Como esta medida não se concretizou os amedrontados paulistanos apenas se mobilizaram para expulsar os lázaros dos núcleos urbanos, decisão repetida em todos as vilas populosas”. Ou seja, repetia-se no Brasil colônia, as velhas práticas segregacionistas dos tempos bíblicos. Além do mais, da mesma forma que ocorria na Antigüidade e na Idade Média, “os enfermos eram tidos como pecadores vis, enquanto que a moléstia era representada coletivamente como expressão da punição divina”. Cláudio Bertolli afirma que ao expulsar os enfermos do convívio urbano, os paulistanos equipavam os doentes com trapos e com algum alimento para alguns dias. Após a expulsão os homens de “bem” traziam para a rua ou praça a imagem do santo padroeiro e junto com o Vigário rezavam para a purificação do ar, atribuído como causa da enfermidade. O referido historiador cita uma dessas orações, extraída da obra de Flávio Maurano: “Em nome do Ds. Padre Em nome do Ds.f.  Em nome do espírito Santo Ar vivo, Ar morto, ar de estupor, ar de perlezia, ar arenegado, ar escomungado, eu te arenego. Em nome da Santíssima Trindade q. sayas do corpo desta criatura, e q. vas parar no mar sagrado pa. q. viva sam e alliviado”. 
            Concomitantemente, o número de doentes expulsos elevou-se de tal forma que o Capitão-General da Capitania de São Paulo, Dom Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, demonstrou o interesse em combater a epidemia de lepra. Para a autoridade colonial, as causas da lepra variavam desde a escassez de víveres até a falta de higiene. Havia ainda o fato de que não foi alterado em nada o hábito das pessoas de dormir no chão de terra batida, sem proteção alguma para a pele. Porém, mesmo as autoridades incentivando o estabelecimento de área afastada para os leprosos, a Câmara Municipal da Vila de Santos determinou e derrubada do rancho em uma chácara de uma cigana leprosa, além de proibí-la de se banhar nos córregos próximos à área urbana. Mesmo não sendo expulsa, a idéia ficou implícita na demolição de sua moradia. Ainda segundo Cláudio Bertolli, o isolamento dos enfermos deveria “ocorrer em local o mais longe possível dos povoados e dos caminhos dos viajantes, isto é, nas proximidades do sertão. Nesta situação, os enfermos continuavam desamparados, pois a eles próprios caberia a responsabilidade de conseguir alimentação e tratamento de saúde”. Por outro lado, popularizou-se o costume de relacionar o nome próprio “Lázaro”, com a doença, daí resultando a afirmação de que o nome citado signifique leproso.
            Entrementes, em 1820, o Capitão-General Visconde de Oeynhausen encarregou José Arouche de Toledo Rendon de realizar um censo de leprosos que habitavam a Província de São Paulo. Mesmo com falhas, o censo apurou 564 morféticos. Conforme Bertolli, desse total, “371 casos (65,8%) foram localizados na região vale-paraibana, sendo que Taubaté contava com 92 leprosos ou 16,3% dos enfermos que peregrinavam pelo território paulista”. Os dados acima registrados a respeito de Taubaté indicam que, apesar de os leprosos serem expulsos para áreas remotas, desde meados do século XVIII, eles concentravam-se justamente nas imediações dos centros urbanos. Diante de tal cenário, o futuro patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrade e Silva solicita ao Visconde de Oeynhausen, a instalação de um novo lazareto, em ofício de 10 de julho de 1820. Em outro ofíicio, de 30 de maio de 1822, Bonifácio cobra da autoridade provincial, o lazareto que não foi instalado. Como visto, a solução mais “fácil” era a exclusão e o isolamento. Praticamente, no mesmo período, ou seja, terceira década do século XIX, a Vila de Lorena registrava a presença dos morféticos. De acordo com a análise de José Geraldo Evangelista, em 1826, através de ofício de 28 de janeiro, o Presidente da Câmara Municipal comunica ao Governo Provincial, que não havia sido possível reenviar para o Hospital da Capital, os leprosos que haviam fugido de lá e nem os que perambulavam pelas ruas e caminhos da Vila de Lorena. Em 1850, novamente a questão dos “lázaros” é evocada, desta vez pelo Vigário,  que em suas prédicas mencionava o grupo de leprosos, na maioria, negros, que iam e voltavam de Guaratinguetá para Lorena, através da Estrada Geral, ficando a pedir esmolas aos sábados e domingos na vila lorenense. O pároco alerta para o perigo do contato dos morféticos com os escravos e pede a transferência dos enfermos para o Hospital da Capital.
            Ao abordar também a questão, o historiador Carlos Eugênio Marcondes de Moura afirma que a necessidade urgente de um hospital próprio para os morféticos fez com que o Presidente da Província Manuel Machado Nunes sugerisse “o emprego dos rendimentos da Capela de Aparecida na construção de um hospital junto à mesma, em 1840. Dois anos mais tarde o projeto de um asylo de Lázaros (sic.) permanecia apenas formulado”. Ainda segundo Moura, em data não especificada, um grupo de leprosos teria atacado o Sr. Joaquim de Assis Oliveira Borges, filho do Visconde de Guaratinguetá, próximo á Fazenda Senhora do Carmo de sua propriedade, derrubando-o do cavalo e cobrindo-o de mordidas. Conforme Carlos Eugênio, era crença entre os morféticos, “que se mordessem sete pessoas sadias se livrariam da doença”. Em 1860 ao passar por Guaratinguetá e descrever as necessidades que a vila necessitava, o jornalista e viajante luso-brasileiro Augusto Emílio Zaluar afirma que uma das mais urgentes era “a criação de um hospital de Misericórdia, e providências eficazes para a remoção de grande número de morféticos, tanto de Minas como de outras províncias, que habitam em toda a extensão a estrada até S. Paulo”. Ainda em Guaratinguetá, Zaluar visita a capela de Nossa Senhora Aparecida e ao narrar as diversas graças e milagres atribuídas à santa, afirma que as “muitas curas que tem operado nos enfermos do mal de S. Lázaro, que tanto abundam neste ponto da província de S. Paulo e na de Minas, (...) são o incentivo à maior parte das romarias que o povo faz a este templo solitário e à protetora imagem da Senhora da Aparecida”. Quando informado que os fiéis planejavam edificar um templo mais amplo para abrigar os romeiros, Zaluar se opõe à medida, alegando que ao invés de uma igreja deveria ser construído um hospital sob a invocação da mesma santa, “consagrada a recolher a grande quantidade de morféticos que infestam as estradas e os caminhos de quase todo o norte da província, oferecendo aos olhos do povo” um triste espetáculo. Ainda segundo o viajante que se revolta com o descaso, “compunge o coração ver esses desgraçados dentro de suas choupanas de palha, coberto de andrajos e de lepra estenderem a mão a quem passa, pedindo-lhe um óbulo para matarem a fome. É realmente um quadro este que não tem perdão nem desculpa em pleno século XIX”. Na opinião de Zaluar, o reduto dos morféticos era também utilizado como abrigo para escravos fugidos de seus senhores, ocasionando em muitas vezes de contraírem a moléstia, e a solução definitiva seria a criação de em hospital de lázaros, pois assim, além de homenagear a divindade, aliviaria os sofrimentos dos doentes. Em Pindamonhangaba, o jornalista levanta novamente a questão ao defender para a vila a principal solução, que é, “como em Guaratinguetá, remover os morféticos, que em chusmas invadem a cidade aos domingos a solicitar a caridade pública”.
            O conjunto de choupanas de leprosos descrito por Zaluar representaria um tipo de arraial ou aldeia, o qual consta em um ofício da Câmara Municipal da Vila de Lorena e datado de 11 de novembro de 1863. Citado por José Geraldo Evangelista, tal ofício denunciava que, aproximadamente 30 morféticos, “que residem em uma espécie de aldeia entre Guaratinguetá e a Capela de Aparecida, que vêm todo sábado tirar esmola em Lorena, embriagando-se, brigando e fazendo algazarra, estavam a exigir uma providência que não se sabia qual poderia ser”. A afirmação de que os leprosos embriagavam-se e promoviam baderna em Lorena serviria de justificativa para as autoridades expulsá-los do convívio urbano. Isto significa que, apesar da “boa” vontade das autoridades políticas e de parte da sociedade, a receita para os morféticos era sempre o isolamento e a rejeição; eles eram excluídos da sociedade porque eram indesejáveis. Apesar das conclamações de líderes políticos, estadistas, jornalistas e viajantes, como era o caso de Zaluar, não foi construído um hospital próprio para os portadores do mal de São Lázaro no Vale do Paraíba. Além do Hospital da Capital em São Paulo, houve apenas um destino aos leprosos em Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro, inaugurado em 1884, no crepúsculo do Império.
            Ao longo do século XX, graça à descoberta de Hansen, a lepra ou como é denominada atualmente, a hanseníase foi sendo pesquisada e o tratamento para a referida moléstia foi desenvolvido. Além da educação sanitária, ideal para a prevenção, o tratamento consiste também, em casos consolidados, de processos com substâncias químicas, em especial as chamadas sulfonas, segundo a Enciclopédia Barsa. Atualmente, no início do século XXI, a comunidade científica e médica orientam para a prevenção e o diagnóstico precoce, como ocorre nos casos de câncer. Em quaisquer situações, contudo, todas as medidas no sentido de combater a enfermidade, deviam ser tomadas ou orientadas por pessoal altamente especializado. O preconceito e a discriminação infelizmente ainda ocorrem e, passados mais de 150 anos podemos fazer eco às palavras de Augusto Emilio Zaluar, mantendo, porém, as devidas proporções. Ou seja, em pleno século XXI, com todos os avanços da medicina e da ciência, a primeira atitude que tomamos, ao nos depararmos com um hanseniano, ou leproso, é a de mantermos distância, apesar de comprovado cientificamente que a mera presença de um “morfético” não resulte no contágio direto como a doença. O autor do presente artigo encerra, enviando um forte abraço ao grande amigo, colega de trabalho e eminente Teólogo, o Sr. Lázaro Marinho Barreto, residente na cidade de São José dos Campos. Até a próxima.


                                                                                              Eddy Carlos



Dicas para consultas.

BARSA, Enciclopédia. Volume 8. Infecção. Encyclopaedia Britannica Editora / Cia. Melhoramento. São Paulo, 1973.

DUTRA, Cônego Antônio de Paula. História de Jesus. Série Sagrada. Edição Especial. EBAL. Rio de Janeiro, 1955.

EVANGELISTA, José Geraldo. Lorena no Século XIX. Coleção Paulística. Vol. VII. Imprensa Oficial. São Paulo, 1978.

FILHO, Cláudio Bertolli. Vale do Paraíba: Saúde e Sociedade (1750-1822). UNIVAP. São José dos Campos, 1995.

Moura, Carlos Eugênio Marcondes de. O Visconde de Guaratinguetá. Um titular do café no Vale do Paraíba. Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia. Governo do Estado. São Paulo, 1976.

ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Biblioteca Histórica Paulista. Vol. II, Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976


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