domingo, 21 de julho de 2019

Os Escravos do Major.

         Fotografia do Major da Guarda Nacional,Manuel de Freitas Novaes, por volta de 1885.
            FONTE: Acervo do Museu Histórico e Pedagógico Major Novaes; Cruzeiro-SP.

         Desde épocas remotas, principalmente após o surgimento das primeiras formas de vida em comunidades, o homem tendeu a dominar e explorar o seu semelhante. Nas antigas civilizações, como a dos Sumérios, Hititas, Caldeus, Assírios, Egípcios, etc., as autoridades determinavam que os seus súditos devessem prestar serviços gratuitos ao Estado. A prática obrigatória era denominada de corvéia e consistia em calçamentos de ruas e estradas, bem como de quaisquer obras públicas, inclusive a drenagem de pântanos para diversos fins. Aos recalcitrantes aplicava-se o confisco de plantações, animais de criação, aprisionamento (também dos familiares), e a obrigação de servir por tempo indeterminado ao Estado. Outra fonte de mão-de-obra provinha das guerras, atitude comum adotada no Império Romano e nas cidades gregas. Entre os povos bíblicos como Arameus, Fenícios e Hebreus era também comum a servidão, sendo que entre os últimos, costumava-se condenar ao trabalho gratuito os devedores. Mas nesse caso o tempo da servidão duraria somente sete anos, quer a dívida fosse paga ou não, conforme descrito na Lei de Moisés.
              Com o advento do cristianismo e sua expansão pela Europa após a queda do Império Romano, a servidão adotou uma nova “roupagem”. Interpretando o trabalho braçal como uma maldição, devido ao castigo imposto a Adão e Eva, a Igreja, junto com a nobreza institui o assim chamado contrato de vassalagem. Ao rei, abençoado pelo papa, caberia o direto a terra, que por sua vez a cedia, em várias porções aos senhores ou nobres que por sua vez cediam aos servos que deveriam cultivá-la para manter a estrutura de poder. O sistema, denominado de feudalismo cristalizava a sociedade medieval em três estamentos: em primeiro, o clero, aqueles que rezam; em segundo, a nobreza, aqueles que lutam; em terceiro, os servos aqueles que trabalham; acima de todos, o rei e o papa. Dessa forma, quem estava acima era o suserano, que exercia o poder sobre o vassalo; como os servos estavam no último patamar, eles eram vassalos de todos e suserano de ninguém. Para ternos uma noção do que era o feudalismo, lembremos que o senhor exigia, na maioria das vezes, mais da metade da produção agrícola dos servos, além de impostos e taxas diversas.
             Entretanto, com a transição do feudalismo para o capitalismo, durante a fase mercantilista, as nações ibéricas que haviam se lançado ao mar em busca do caminho das Índias, acabou estabelecendo via América, então “descoberta”, as bases de uma nova estrutura de exploração econômica, dessa vez não mais com servos e, sim com escravos propriamente ditos. Inicialmente, os europeus escravizaram a população autóctone do continente americano. Como a maioria dos colonos não dispunha de capital para a aquisição de escravos, atirou-se sobre os nativos, submetendo-os a trabalhos forçados e a privação de liberdade. Quando havia resistência, a receita era a espada; na América espanhola, os conquistadores escravizaram e exterminaram as nações dos Astecas, Incas e Maias. Na colônia portuguesa os bandeirantes “caçavam” os indígenas, tanto nas selvas, como nas missões jesuíticas, praticando todo o tipo de crueldade. Ao lado dos bandeirantes paulistas, as autoridades coloniais organizavam expedições punitivas contra as silvícolas recalcitrantes. Rotulada de “guerra justa”, tais expedições exterminaram diversas nações como os Cariris, Caetés, Janduins além dos Tamoios e Tupinambás, entre outros. O historiador Júlio José Chiavenato afirma que, a Capitania de São Paulo, estava afastada, “dos centros de comércio, isolado economicamente, o que explica a liberdade com que os paulistas agiam. Diante da impossibilidade para conseguir escravos negros e como a mão-de-obra era vital, mesmo que fosse preciso fazer guerra iam pelos sertões caçando índios”.
            Todavia, após a pressão dos jesuítas e da Igreja, a Coroa proibiu a escravização dos índios e introduziu na colônia escravos capturados na África. Mesmo assim, os bandeirantes prosseguiam na preagem dos indígenas até o desastre de M’bororé em 1641. Como a caça ao silvícola só gerava lucro para os colonos, a Coroa incentivada pela Companhia de Jesus, incentivou e apoiou, por sua vez, o tráfico negreiro. Mesmo sendo monopólio da Coroa, que cedia a exploração, os traficantes negreiros lucravam alto; capturados em troca de cachaça e fumo, os negros eram baratos no continente africano. Chamados de “peças”, os escravos “retornavam” o capital investido pelos seus senhores dentro de cinco anos. Segundo Eduardo Bueno, o preço da peça vinda da África custava, na época 50$000 e “até mesmo portugueses pobres podiam ter pelo menos uma. E de fato tinham: não ter escravos no Brasil era considerado algo tão humilhante que, dentre os raros adventícios que não conseguiam adquirir o seu, muitos preferiam voltar para o reino”. Os cativos eram oriundos, inicialmente, da região da Guiné e no século XVII, inicia-se o ciclo de Angola, donde aproximadamente 600 mil escravos vieram para o Brasil. No século seguinte, os escravos são adquiridos na Costa da Mina (atuais Benin e Daomé) e a quantia de cativos sobe para 13 milhões. Os povos escravizados e vendidos no Brasil pelos traficantes negreiros eram os Bantos: Congos, Benguelas e Ovambos; e os Sudaneses: Nagôs, Gegês, Minas, Hauçás, Tapas e Bornus.
            Após a longa travessia do Oceano Atlântico, que poderia durar até dois meses, os tumbeiros (navios negreiros) desembarcavam os escravos nos portos de Pernambuco, Salvador e Rio de Janeiro. Porém a penosa viagem, os maus tratos e alimentação precária, faziam com que muitos cativos morressem antes de chegar ao Brasil. A historiadora Kátia de Queirós Mattoso afirma que em 1569, “Frei Tomé de Macedo cita o caso de uma nave que transportava 500 cativos. Somente numa noite morreram 120, ou seja, um quarto do carregamento (24%)”. No ano de 1625, o governador de Angola, João Correia de Souza, despacha para o Brasil cinco navios negreiros com uma carga total de 1211 cativos. Apenas 628 chegam vivos à colônia e depois do desembarque morrem mais 68. Depois de desembarcados, os sobreviventes recebiam boa alimentação e cuidados com a aparência antes de serem levados para o mercado de escravos, sendo o do Rio de Janeiro, o do Valongo, o mais famoso. Encaminhados, geralmente à faina agrícola, o escravos tornavam-se propriedade de seu senhor, que podia explorá-lo e castigá-lo da maneira que achasse conveniente. Para muitos, a única saída era o suicídio, pois a fuga, quando descoberta e o cativo preso, passava por uma série de punições. Os instrumentos de castigo mais comuns eram o tronco, o vira-mundo, a gargalheira, a máscara-de-flandres, etc. Como afirmado, a autoridade do senhor era absoluta e inquestionável e o Estado não ousava interferir no interior das propriedades rurais. Em caso de revolta de escravos, que não foram poucas, e de quilombos, os seus lideres eram presos e cabia, nesse caso, ao Estado punir de forma cruel em praça pública. Condenados a levar até 300 chibatadas (100 por dia) no pelourinho das vilas, a maioria sucumbia ao suplício.
            Até a Lei Áurea, esse foi o dia-a-dia dos três milhões de escravos que morreram nas fazendas do Brasil colonial e imperial. Primeiro nos engenhos de açúcar do Nordeste, seguida da atividade aurífera nas Minas Gerais, e finalmente nas plantações de café do Sudeste do país. Mas também, em atividades secundárias como o algodão, o anil, criação de suínos e bovinos. Alojados nas senzalas, os cativos eram rigorosamente vigiados pelo feitores, desde antes do amanhecer até o por do sol. E uma das estratégias dos senhores, era agrupar escravos de nações diferentes e que eram rivais na África.
            Com a aprovação da Lei Eusébio de Queirós, após pressão da Inglaterra que ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, em 1850, o tráfico atlântico cessou. A alternativa para os cafeicultores do Vale do Paraíba, paulista e fluminense, foi a aquisição de escravos do Nordeste, devido à decadência da atividade açucareira. No caso do Vale paulista, como não poderia ter sido diferente, todas as fazendas cafeeiras contavam com a mão-de-obra escrava, algumas em quantidade surpreendente, outras com o mínimo necessário, tanto para a lavoura, como nos grandes sobrados. Além do mais havia também os escravos urbanos, empregados no comércio e atividades diversas. O café propiciou, graças ao trabalho escravo, o surgimento de gigantescas fortunas como a de Joaquim José de Souza Breves, que, segundo alguns autores, chegou a ter 6.000 escravos espalhados nas suas 70 fazendas; Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, Francisco José Teixeira Leite, etc., estes no Vale fluminense. No Vale paulista, os maiores escravistas foram Luciano José de Almeida, da Fazenda Boa Vista em Bananal, com 812 escravos; Manoel de Aguiar Vallim, da Fazenda Resgate, na mesma vila, com 400 escravos aproximadamente; Francisco de Assis e Oliveira Borges, da Fazenda do Carmo, em Guaratinguetá, com 374 escravos em 1871.
            Segundo a análise do historiador Alves Motta Sobrinho, no ano de 1884 foram registrados 167.491 escravos na Província de São Paulo, sendo que aproximadamente 45.279 eram das fazendas e vilas do Vale do Paraíba. Na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro, cuja sede localizava-se no Embaú, havia 1.088 escravos espalhados pelas fazendas da região. Uma dessas, era a Fazenda Boa Vista, do Major Manoel de Freitas Novaes, que foi inicialmente propriedade de Fortunata Joaquina do Nascimento. Essa senhora foi casada três vezes: com o Capitão Joaquim Ferreira da Silva (1815-1837), com o Capitão Antônio Dias Telles de Castro (1840-1853), e com o Major Manuel de Freitas Novaes, (1865-1874). O soberbo casarão, atualmente Museu Histórico e Pedagógico Major Novaes em Cruzeiro, teria sido construído por volta de 1837 e em 1841 é mencionado pela primeira vez, numa petição judicial o nome de “Fazenda Boa Vista”. Anteriormente atuando como tropeiro Manuel de Freitas Novaes, torna-se dono da fazenda ao casar-se com Fortunata, e também dos escravos que ela possuía. Em 1868 recebe do imperador Dom Pedro II, a patente de Major da Guarda Nacional e entra para a política atuando no Partido Conservador, exercendo a função de Vereador e Presidente da Câmara Municipal da Vila do Cruzeiro (Embaú). Em 1873 envolve-se em uma disputa judicial ao negar a liberdade à escrava Rita, solicitada pelo filho liberto desta, Elizeo Telles de Castro, fruto da união com Antônio Dias Telles de Castro, segundo marido de Fortunata, Elizeo quis comprar a alforria da mãe e diante da truculência do Major Novaes teve o apoio de um advogado de Guaratinguetá. Próximo das eleições municipais em que era candidato, o Major Novaes recuou de sua posição e o processo judicial foi encerrado.  
        Após a morte de Fortunata em 1874, o Major Novaes torna-se o senhor absoluto da Fazenda Boa Vista e da escravaria ali existente. O historiador Carlos Borromeu de Andrade afirma que o referido Major substituíra a maior parte dos escravos por trabalhadores livres em uma Colônia Agrícola, de sua propriedade. Ainda que tal colônia tenha existido, os escravos da Boa Vista ainda permaneciam como tais até a Lei Áurea. No ano de 1882, segundo Carlos Borromeu, foi concluído o inventário de Fortunata e dentre os bens do espólio, constavam aproximadamente 35 cativos. Perfazendo o montante na quantia de 22:900$000 (vinte e dois contos e novecentos mil réis), os cativos da Fazenda Boa Vista, pesquisados pelo historiador citado eram: a escrava Generosa, de 62 anos; o escravo Felício, de 50 anos; o escravo Augusto, de 48 anos; o escravo Alexandre, de 54 anos; o escravo Tibúrcio, de 49 anos; o escravo Patrício, de 58 anos; a escrava Madalena, considerada mentecapta, de 22 anos; a escrava Maria Mulata, 42 anos; o escravo Geraldo, 54 anos; o escravo Manoel Mestiço, 57 anos; a escrava Antonia, 8 anos; o crioulo Quirino, 7 anos; a crioula Zulmira, 4 anos; o escravo Justo e a mulher, ambos com 30 anos; o escravo João, 12 anos; a crioula Gertudes, 5 anos; o crioulo Julio, 4 anos; as ingênuas Benedita e Thomázia, ambas com 2 anos; o escravo Gesuíno, 11 anos; o crioulo Joaquim, 8 anos; a crioula Liria de 4 anos; a escrava Maria, 9 anos; o crioulo Jordão, 14 anos; o escravo Marcelino, 40 anos, o escravo, africano, Fernando, 51 anos; o escravo, também africano, Jeremias, 50 anos; escravo Antonio Preguiça, 52 anos; o escravo Silvério Campinho, 57 anos; o ingênuo Vicente, 9 meses; e a escrava Joana, de 50 anos. Com a aprovação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro de 1871, os filhos de escravas, nascidos a partir desta data, seriam considerados libertos. Como suas mães permanecessem cativas, cabia ao senhor os cuidados dos filhos até a idade de 8 anos. De acordo com Kátia de Queirós Mattoso, quando a criança atingisse essa idade, o senhor que é dono da mãe tem duas opções de escolha: “receber do Estado uma indenização de 600.000 réis ou exercer o direito de utilizar os serviços do menor até que complete 21 anos”. A Lei do Ventre Livre beneficiava mais os senhores e estes sempre escolhiam a segunda opção. Na relação dos escravos de Fazenda Boa Vista analisada por Carlos Borromeu de Andrade, os indivíduos com 11 anos para baixo, eram filhos de escravas nascidos após a aprovação da referida Lei; a exceção é Gesuíno, classificado como escravo, o que nos leva a deduzir  que nascera antes da promulgação da mesma a Lei. Contudo, o Major Novaes optou por duas indenizações do Estado: a da escrava Balbina, no valor de 100$000 e a de Brás, filho de Rufina, no valor de 170$800. Por outro lado, aparecem registrados como escravos, segundo Carlos Borromeu, Antonia, de 8 anos e Maria, de 9 anos.
            Até o fim do período imperial, o Major Novaes defendeu suas idéias políticas e apesar de alguns estudiosos louvarem sua iniciativa liberal, referente à Colônia Agrícola, ele manteve o pé firme na questão servil. A partir de 1880, a campanha abolicionista começa a fervilhar no país, tendo à frente o Deputado Geral Joaquim Nabuco, sendo por sua vez combatido por diversos grupos que se opunham à libertação dos escravos como o “Centro do Café” e o “Centro da Lavoura”. De acordo com Hilton Federici, durante a Sessão Ordinária da Câmara Municipal, então sediada no Embaú, datada de 18 de outubro de 1880, o Vereador Major Novaes indicou à Casa que felicitasse o Presidente do Conselho de Ministros, José Antônio Saraiva, por ter ido contra o projeto de Joaquim Nabuco, “projeto de um moço sem experiência e patriotismo, que só sonha o seu futuro, sem pensar no presente e futuro da Pátria, tal é a vaidade do seu pensamento”. Refletindo a mentalidade escravocrata a Câmara aprovou por unanimidade a indicação do Major Novaes. A abolição viria oito anos mais tarde com a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. Novamente como vereador o referido Major, durante a Sessão de 15 de junho do mesmo ano pede que a Câmara cobrasse do Ministro da Justiça atos enérgicos para reprimir vagabundos em ruas e praças dos municípios, os quais dificultavam os trabalhos das fazendas. Com a Proclamação da República, começa a fase do declínio do Major Novaes e da Fazenda Boa Vista, devido à atritos surgidos com os novos dirigentes da nação e até a morte em 1898, Manoel de Freitas Novaes manteria sua lealdade à família imperial exilada na Europa. Contraditoriamente a mesma que decretou a fim do sistema escravista, defendido pelo Major. Até a próxima. 

                                                                                  Eddy Carlos.



Dicas para consulta.
ANDRADE, Carlos Borromeu de. Os Pioneiros da História de Cruzeiro. Centro Educacional Objetivo. São José dos Campos, 1994. 
BUENO, Eduardo (Org). História do Brasil. Publifolha. São Paulo, 1997.
CHIAVENATO, Júlio José. As Lutas do Povo Brasileiro. Editora Moderna. São Paulo, 1989.
FEDERICI, Hilton. Atas da Câmara Municipal de Cruzeiro. Volume I. Tomo A. Edição da Câmara Municipal de Cruzeiro. Cruzeiro, 1978.
MATTOSO, Kátia de Queiros. Ser Escravo no Brasil. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982.
SOBRINHO, Alves Motta. A Civilização do Café. Editora Brasiliense. São Paulo, 1978.

E-mail: eddycarlos6@gmail.com
Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

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