terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A Pérola do Vale.



 Até os primórdios do século XVI, o poder hegemônico da Igreja era inconteste na Europa. Com a Reforma Religiosa iniciada por Martinho Lutero, os alicerces do catolicismo sofrem um forte abalo, devido ao apoio dado aos reformistas por alguns príncipes eleitores do Sacro Império Germânico.   Dentre esses, Frederico da Saxônia, além de proteger Lutero, abrigando-o no castelo de Wartburg, recebe por sua vez o apoio da ascendente burguesia alemã, em meados de 1521. Para combater as idéias reformistas, o imperador Carlos V, de comum acordo com o Papa Clemente VII, convoca a Dieta de Spira, cuja decisão final é a reimposição do culto católico nas regiões influenciadas por Lutero. Por sua vez, os príncipes eleitores, que já não suportavam a ingerência de Roma, protestam contra tal decisão, daí o nome de protestantes a todos os que não pertencem à fé católica. Mesmo com a Contra-Reforma, deflagrada pelo Papa Paulo III, incluindo o reforço da autoridade da Inquisição e a elaboração do Index Librorum Proibitorum (uma lista de livros proibidos aos católicos) a Igreja perde uma enorme área de influência na Europa, sobretudo após anos de guerras religiosas e da atuação de Calvino. Em setembro de 1555, Carlos V assina o acordo da Segunda Dieta de Augusta, pelo qual cada príncipe eleitor do Sacro Império Germânico podia implantar a sua própria religião.
            Todavia, a Igreja iria recuperar e ampliar o espaço perdido na Europa ao legitimar e auxiliar o domínio ibérico na América, após a conquista, derivada dos “descobrimentos”, de Cristóvão Colombo em 1492, a serviço da Espanha, e Pedro Álvares Cabral em 1500, servindo Portugal. Após a fase das Capitanias Hereditárias, a Coroa resolve criar o Governo-Geral do Brasil, cujo primeiro governador, Tomé de Souza, chega à Bahia em 1549, acompanhado dos primeiros padres missionários enviados pela Santa Sé. O objetivo era catequizar e resgatar as almas “perdidas”, onde a religião católica, sob a égide do Estado português era imposta com a Bíblia numa mão e a espada na outra. Os principais encarregados de catequizar e “reduzir” os silvícolas em missões ou aldeias organizadas, segundo a ótica dominante, foram os padres da Companhia de Jesus, cujos expoentes máximos foram Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e Antônio Vieira. Os dois primeiros fundaram, em 1554, um colégio para ensino e “educação” dos índios, embrião da futura cidade de São Paulo e, após consolidarem o domínio lusitano, no Planalto de Piratininga, sobretudo com o fim da Confederação dos Tamoios e da França Antártica, expandem sua esfera de influência na região do Vale do Rio Paraíba do Sul.
            Dessa forma, a exemplo do que foi realizado na Vila de São Paulo, os jesuítas passam a reunir em diversas localidades, multidões de silvícolas, em aldeamentos organizados pelos padres tendo como centro dos mesmos, além da capela, o colégio, onde os índios aprendiam as doutrinas e conhecimentos da Igreja e do Estado. Na realidade, os jesuítas disputavam a mão-de-obra barata dos indígenas com os colonos portugueses que queriam tê-los como escravos. Mesmo com as proibições, régia e papal, contra a escravidão dos nativos, os colonos e bandeirantes ignoravam tais determinações e, não raro, dirigiam a sua fúria contra os padres da Companhia de Jesus, resultando na expulsão deles da Vila de São Paulo em 1640. Com a revogação de parte das proibições por parte da Igreja e da Coroa, os jesuítas retornam para São Paulo, mantendo-se, porém o clima tenso com os colonos.
            Nesse ínterim, para incentivar ainda mais a colonização, converter os índios à religião católica, mantendo-os submissos e fortalecer a presença e autoridade lusitana, a Coroa passa a distribuir extensas áreas territoriais, através das Cartas de Sesmarias. No ano de 1608, Gaspar Vaz solicita e é atendido com uma sesmaria no arraial de Boigy. Em 1611, com a elevação de Boigy à condição de Vila com o nome de Sant’Anna de Mogi-Mirim, atual Mogi das Cruzes, Gaspar Vaz torna-se o Capitão-Mor do local e funda o aldeamento da Escada, levando para o local, vários índios catequizados. No ano de 1625, a Companhia de Jesus assume a administração do aldeamento e em 1652 constroem uma capela, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, que logo passou a ser denominada de Nossa Senhora da Escada. Ao redor da referida capela foram aglutinando algumas moradias, além dos índios surgindo então o Arraial da Escada. Porém, a alteração para o nome de “Escada”, teria origem no sincretismo religioso e na habilidade dos jesuítas em aproveitar-se de um elemento da crença nativa em prol do sucesso do projeto colonizador. Segundo a análise do jornalista João da Silva Figueiredo, ao citar Leonardo Arroyo, era comum na tradição popular, o fato de que “os indígenas tinham por hábitos colocar sobre a sepultura de seus mortos um fardel cheio de alimentos e uma escada para que a subida da alma até o reino de Tupã se realizasse de maneira tranqüila. Conhecedores deste fato, os padres teriam tratado de esculpir degraus ao redor da Virgem, com o objetivo de estabelecer uma ligação entre as crenças pagãs e a religião adventícia, de modo a facilitar a catequização”. Em 1734, foi construído um anexo a capela para funcionar como convenio e abrigar os franciscanos, recém-chegados no Arraial da Escada. Uma segunda capela foi construída próximo da precedente, também pelos inacianos, no ano de 1682, às margens do Rio Paraíba, sendo dedicada à Nossa Senhora da Ajuda.
            Após a expulsão dos jesuítas em 1759, decretada por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o Estado português passou a administrar os antigos aldeamentos indígenas e o arraial da Escada não ficou de fora. Sob uma nova ótica administrativa, o antigo aldeamento jesuítico avança e recua na evolução do status político. Com a Lei nº 09 de fevereiro de 1846, o arraial é elevado à Freguesia da Escada, condição, no entanto revogada pela Lei nº 06 de 23 de maio de 1850. Durante aproximadamente vinte e dois anos, o local conhecido como Bairro da Escada, parte integrante do Município de Mogi das Cruzes, manteve-se estacionário. Porém, em 28 de fevereiro de 1872, através da Lei nº. 01 é recriada a Freguesia, com a elevação do Bairro da Escada à condição de Distrito de Paz. Segundo a opinião de João Augusto da Silva Figueiredo, os primeiros administradores da Freguesia da Escada foram Antônio de Mello Franco, Benedito Antônio de Paula e Joaquim Alves Pereira. Conforme o relato do ilustre jornalista, como “vigário da nova paróquia que surgia, veio o Padre Miguel Prement e a 03 de julho de 1872, a capela de Nossa Senhora de Escada foi instituída canonicamente”. Pouco tempo depois, mais precisamente em 1875, Laurinda de Souza Leite faz uma doação de uma gleba para uma ex-escrava de nome Maria Florência. A área doada, localizada às margens do Rio Paraíba e distante do Bairro da Escada, aproximadamente 3,5 km, ficava pouco acima da junção do Ribeirão Guararema com o mencionado Paraíba. Como forma de agradecimento, segundo o relato do jornalista citado, Maria Florência, constrói em uma parte da área recebida, uma capela em louvor a São Benedito. Nesse mesmo período, a Freguesia da Escada contava com 1.678 almas, sendo 210 escravos, de acordo com a análise de Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, que afirma ainda que por volta de 1875, a paróquia continha quatro eleitores.
            Entretanto, ao redor da capela de São Benedito, construída por Maria Florência, aos poucos vão aglomerando novas habitações, cuja aglutinação proporciona a formação de um novo núcleo, dando origem a um novo vilarejo que, segundo João Augusto da Silva Figueiredo, “recebeu o nome de Guararema (do tupi guarani - Pau D’Alho), devido à abundancia dessa árvore nesta região”. A explicação do nome do novo povoado è respaldada por Teodoro Sampaio, que corrobora o topônimo, resultado das junções “Guará-r-ema”, que significa “a madeira fétida; e o chamado pau-d’alho (scoro dodendron), com a sua casa rescendendo a alho”. Definição quase idêntica è dada por Enio Squeff e Helder Perri Ferreira ao afirmarem que ”em tupi guararema significa, literalmente árvore fedorenta, de ybyrá - árvore, madeira, e rema - fedorenta”. Sendo assim, a atual cidade de Ibirarema teria o mesmo significado da que estamos analisando. Retornando ao nascente povoado de Guararema, verificamos que o mesmo desenvolveu-se rapidamente impulsionado pela passagem dos trilhos da Estrada de Ferro São Paulo-Rio de Janeiro, ou Estrada de Ferro do Norte. Essa ferrovia, construída para ligar São Paulo à Cachoeira (Cachoeira Paulista), ponto de encontro com a Estrada de Ferro Dom Pedro II, vinda do Rio de Janeiro, inaugurou a estação no Povoado de Guararema no dia 02 de julho de 1876. A instalação dos trilhos e da estação no referido povoado e não na Freguesia da Escada, possibilitou o deslocamento do fluxo econômico desta para aquele, somado ás atividades, de Francisco Freire, Benedicto de Souza Ramalho e José de Paula Lopes, os quais seriam os fundadores do povoado segundo a análise de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo. O resultado disso surgiu quando, nos primórdios da República, por volta de 1890, a sede do Distrito é transferida para o agora pujante povoado. No dia 08 de janeiro de 1890, a Lei nº 8 retira da Freguesia da Escada, a sede do Distrito instalando-a no povoado de Guararema. O acontecimento causou a estagnação e decadência do Arraial da Escada, que como origem remota, “viu” o novo povoado de Guararema ser alçado à condição de Município em 1898. No dia 03 de junho daquele ano, o Vice-Presidente do Estado de São Paulo, ocupando em exercício a presidência promulga a Lei nº. 528, a qual criava o Município de Guararema, desmembrando-o do Município de Mogi das Cruzes. No dia 23 de setembro de 1899 é instalada a Câmara Municipal de Guararema, em cuja primeira Legislatura foram empossados para compor a edilidade: Major José de Paula Lopes, Joaquim Paião, Maximino Prudente de Mello e Benedicto de Souza Ramalho.
            Todavia, apesar de elevada à categoria de Município e de cidade em 19 de dezembro de 1906, através da Lei Estadual nº 1038, Guararema urbanizou-se de fato ao longo do século XX, segundo Nice Lecocq Müller. Para a pesquisadora do IBGE, a cidade, “até o fim do século XIX, não passava de um correr de casas ao redor da praça da Matriz e de uma rua, que, dela saindo, buscava a estação da estrada de ferro, na outra margem do ribeirão Guararema”.  O crescimento da cidade, nas três primeiras décadas do século XX, ocorreu em função do eixo de ligação para Jacareí e Mogi das Cruzes. Entre 1930 e 1950, há uma retração na expansão do espaço urbano, sendo retomado a partir da segunda metade do século passado. Apesar disso, até 1969, na opinião, de Nice Lecocq Müller, Guararema ”não dá a impressão de cidade em franca fase de crescimento: notam-se algumas construções novas em área colinosa e uma intenção de expansão por loteamentos”. Para obtermos uma melhor compreensão, abordemos a análise de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo, citando Pedro Vallim. Segundo tal análise, em 1940 a população de Guararema era, mais ou menos 1.300 pessoas, sendo que a principal atividade industrial era a produção de cachaça, havendo então, na cidade, sete alambiques ou destilarias. Na área urbana, destacavam-se os prédios da Prefeitura Municipal, o Grupo Escolar, o Mercado, o Cine Guarani, a Estação Ferroviária e determinadas residências particulares. De acordo com os autores citados, os principais hotéis de Guararema “eram o da Estação e a Granja Colli. Além do mais, (...), circulavam pelas ruas e estradas rurais do Município: dois automóveis, dez caminhões, setenta carros de boi, dez carroças e dez aranhas, estas últimas, carruagens leves, de duas rodas, puxadas por um cavalo”.
Entrementes, a célula-máter de Guararema permanecia no ostracismo, decadente e esquecida, bem como da velha igreja construída pelos jesuítas, conforme relatamos no início deste artigo. Ainda em 1882, a igreja passou por uma reforma, quando foi incluída no projeto uma ampla praça defronte á paróquia. De acordo com informativo da Prefeitura Municipal de Guararema, essa é a “única igreja no Brasil que possui a imagem de São Longuinho, conhecido como o santo das ‘coisas perdidas’. No centro da capela foi enterrado o Frei de Santa Bárbara de Bittencourt, falecido em 1890”. Já tombada no início da década de 1940, a Igreja de Nossa Senhora da Escada recebeu, em 1950, a visita de Manoel Rodrigues Ferreira, que publicou um artigo sobre a mesma na revista “Paulistânia”, conforme citado por João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo; vale a pena reproduzir parte do artigo mencionado. Segundo Manoel Rodrigues, todos “aqueles que transitam pela atual estrada Rio-São Paulo (a “Dutra” ainda não havia sido inaugurada), nas proximidades do quilômetro 79, além de Mogi das Cruzes, tem sua atenção despertada por uma flecha que indica o caminho da Freguesia da Escada. Quando algum curioso diminui a marcha do seu veículo e faz derivar por aquele caminho, vê, algumas centenas de metros além, escondidos atrás de um morro, um antiqüíssimo mosteiro, em estado de completo abandono, com suas altas paredes de taipas em ruínas. Quando a Estrada de Ferro Central do Brasil (na realidade, a estrada de Ferro de São Paulo-Rio de Janeiro), começou a assentar seus trilhos nas proximidades, a Freguesia de Nossa Senhora da Escada sentiu-se abalada com a mudança da maioria dos seus moradores para Guararema, para onde foi transferida a sede da freguesia (Distrito) em 1890. Em 1938 a Cúria Metropolitana dali arrecadou (retirou) os objetos de prata que foram recolhidos ao seu museu em São Paulo. A igreja e o convento, oito anos após, em 1946, foram interditados por ordem do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Atualmente preservada, a Igreja de Nossa Senhora da Escada fica aberta para visitantes, estudiosos, etc, que desejem conhecer um pouco do passado distante da História do Brasil, principalmente da História Valeparaibana. Igualmente preservada está a Capela de Nossa Senhora da Ajuda, construída por Manuel Pinto do Rego, em 1682, como afirmamos anteriormente. Tal capela contém a imagem de Nossa Senhora da Ajuda, feita em terracota, cuja origem, provavelmente é de Portugal. O tombamento dessa capela ocorreu em 24 de setembro de 1984.
  Atualmente, a cidade de Guararema tem no setor turístico uma das principais fontes de divisas, pois além dos pontos históricos citados ao longo deste relato, é privilegiada por ter em seu território, o trecho do Rio Paraíba do Sul não poluído. Por outro lado, lamentavelmente, Guararema ficou sem o trem, pois com a construção da variante férrea Parateí-Pagador Andrade, a partir de São José dos Campos, o tronco original da antiga ferrovia do Norte (E. F. São Paulo-Rio), deixou de ter importância, sendo desativado e extinto entre as décadas de 1970 e 1980. Com a medida, Guararema e Jacareí ficaram privadas do meio de transporte mais barato e seguro que existe que é o trem. A antiga estação de Guararema, a segunda, construída em 1927, abriga hoje a Biblioteca Pública. É o destino da maioria das antigas estações ferroviárias, reservadas para um centro de difusão do saber e da leitura. Infelizmente, algumas têm outros destinos; outras aguardam decisões sobre o que fazer, se restaura ou não. Mas, surpreendentemente, surge uma excelente notícia. No dia 16 de outubro de 2015, Guararema Volta a “ver” o trem. Nesse dia foi inaugurado o trem turístico, da cidade a té a estação de Luís Carlos, operado pela ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferrovíária). O autor do presente texto encerra desejando cordiais saudações aos habitantes da “Pérola do Vale”, em especial ao jornalista João Augusto da Silva Figueiredo, além de enviar as congratulações e um forte abraço ao amigo Juarez Carlos Pedro, conhecido pela alcunha de “Aleixo”, cujo auxílio foi de suma importância para a elaboração deste relato. Até a próxima.

Eddy Carlos



Dicas para consultas.
GERODETTI e CORNEJO, João Emílio e Carlos. Lembranças de São Paulo. O Interior Paulista nos Cartões-Postais e Álbuns de Lembranças. Solaris Edições Culturais. São Paulo, 2003.
JORNAL O Guararema. Editado por João Augusto da Silva–Figueiredo. Guararema, 2007.
MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos da Província de São Paulo. Martins Editora. São Paulo, 1976.
MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba. IBGE. Rio de Janeiro, 1969.
SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. Cia. Editora Nacional. São Paulo, 1987.
SQUEFF e FERREIRA, Enio e Helder Perri. A Origem dos Nomes dos Municípios Paulistas. Impressa Oficial. São Paulo, 2003.


Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

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