segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Boi Intruso.


Fotografia representando um momento na Fazenda Godoy, em meados do século XX. Fonte: Acervo do Recanto da Glória/Prof. Eddy Carlos. 

            Desde os primórdios da humanidade, principalmente quando são organizadas as primeiras comunidades, a questão de propriedade é observada em relatos ou documentos antigos. Inicialmente, para o bem comum, tudo era de todos, ou seja, havia a propriedade coletiva de determinado grupo ou aldeia. Habitações, utensílios, agricultura, caça e pesca e a própria terra, eram considerados um bem comum não existindo a noção de propriedade particular. Ainda hoje, alguns grupos indígenas no Brasil e outros em países da África mantém o sistema da propriedade coletiva. Quando caçam ou colhem a produção agrícola é para o bem-estar de sua aldeia e não para si próprio, ou seja, não é para o bem individual, não configurando a caça ou colheita uma forma de enriquecimento.
            Com as primeiras formas de governo, surge a comercialização dos produtos excedentes, mantendo ainda como prioridade o sustento das comunidades. Com a passar do tempo, a ordem se inverte. Produz-se para o mercado e a obtenção de lucro, ficando a necessidade primária em segundo plano. Paralelamente, surge a noção de propriedade individual ou privada. Sempre mediante a compra, os variados bens individuais são adquiridos como ferramentas, casas de moradia, objetos de adorno, entre outros. Aqueles que não conseguissem adquirir bens ficavam à margem da sociedade. Nos tempos antigos e medievais, alguns excluídos partiam para o saque de aldeias e povoados, com o objetivo de se apoderar de seus bens, incluindo também os produtos das colheitas. Algumas nações mesmo sendo já ricas, atacavam, ocupavam e saqueavam outras, como é o caso de Roma, que por sua vez teve o seu império saqueado e destruído por povos bárbaros. Também como exemplo, lembremos-nos dos saques aos tesouros astecas e incas, efetuados pelos espanhóis de Hérnan Cortez e Francisco Pizarro no início do século XVI. 
           Com o advento da Revolução Industrial e a ascensão do sistema capitalista, a questão da propriedade privada cristalizou-se, sendo o seu direito inviolável dentro dos limites jurídicos. Sendo assim, com o surgimento de diversos produtos industrializados torna-se imperativo para muitos a ostentação da posse desses mesmos bens. Ainda que a partir do Manifesto Comunista de 1848, o qual opunha propriedade privada e propriedade coletiva, juntamente com as explorações e desigualdades denunciadas por Karl Marx e Friedrich Engels, o capitalismo se consolidou como sistema econômico, triunfando assim, os ideais de Adam Smith. Mesmo em propriedades rurais com o sistema escravista já em declínio imperava a busca pelo lucro e a produção agrícola já se destinava ao mercado. Aliás, nos meios rurais a noção de propriedade individual já se acentuara há muito; os bens pessoais que constituíam o patrimônio eram divididos em casas ou imóveis diversos (ranchos, currais, galpões, etc), objetos de luxo, estoque das produções, dinheiro em caixa, e os semoventes. Dentro dessa última categoria estavam incluídos até a Lei Áurea os escravos. Como os bens semoventes significavam bois, cavalos, jumentos, éguas, porcos, etc, temos uma noção lógica de como era tratado o escravo.
     Todavia, ao longo do século XX, seguindo a expansão e consolidação do capitalismo em pleno Brasil agrário, a sensação de poder, adquirir, consumir ou ostentar bens acentua-se cada vez mais, alargando o fosso entre os que possuíam e os excluídos, que por sua vez almejavam participar da “distribuição”. Como mencionamos, porém, no início do presente relato, sempre houve nações que expropriavam outras, mesmo já possuindo riquezas. Assim ocorria, em muitos casos com pessoas que mesmo estando suficientemente abastadas cobiçavam bens, ainda que minúsculos de seus vizinhos menos aquinhoados. No Brasil, foi comum em épocas remotas, durante o auge do coronelismo, a expulsão de pequenos proprietários ou posseiros por grandes fazendeiros, apoderando-se além de suas terras, de seus animais e benfeitorias.
          Entretanto, haviam as exceções, ainda que raras. Principalmente quando o lema em geral, é tirar vantagem de tudo e de todos, sempre houve aqueles que respeitaram o direito alheio e não procuravam se apoderar daquilo que não lhes pertencia. Paralelo a isso, ocorria também o fato de alguns proprietários cederem parte de suas fazendas a agregados, e até mesmo ex-escravos. No Vale do Paraíba, houve alguns casos entre o final do século XIX e meados do século XX. Um em particular chamou a nossa atenção ocorrido em Cachoeira Paulista no final da década de 1950, mais precisamente na Fazenda Godoy, no Embaú. Torna-se imperativo, porém, conhecer um pouco detalhadamente a referida propriedade.
         Localizada às margens do que outrora foi a Estado Real, a Fazenda Godoy se formou em fins do século XIX, com o casamento de João de Godoy Fleming e Ricarda de Castro Fleming, realizado em 1889, no crepúsculo do Império. Como já se manifestara em todo o Vale do Paraíba, a produção cafeeira entrara em declínio, e muitas fazendas, de Bananal a Guararema estavam em decadência. Diante desse cenário, João de Godoy adquire no ano de 1893 em Baependi, Minas Gerais, algumas novilhas holandesas e técnicas para a implantação do gado leiteiro, incluindo os tipos ideais de ração para a alimentação do gado. O Ilustre historiador e ex-prefeito de Cachoeira Paulista, Agostinho Ramos, atribui à iniciativa de João de Godoy o pioneirismo da introdução do gado leiteiro no Vale do Paraíba. Com a morte prematura de João de Godoy a viúva Ricarda assume a administração da fazenda, amparada pelo seu braço direito e compadre, Eduardo José de Oliveira. Em meados da década de 1920, Ricarda de Castro Fleming se une ao irmão Chrispim Bastos e o médico Antônio da Gama Rodrigues, fundando a Usina Gama Bastos. Tal empreendimento tinha como objetivo processar o leite produzido nas fazendas da região, principalmente da Fazenda Godoy e a do Rio Branco, de Chrispim Bastos, também no Embaú. A Usina Gama Bastos é considerada a precursora da Cooperativa de Laticínios do município. Foi ainda, através da iniciativa dos proprietários da Fazenda Godoy que o Vale do Paraíba se tornou no século passado a maior bacia leiteira do país.
             A preocupação e o zelo quando à procedência das matrizes, quanto a “raça”, no sentido de garantir a qualidade do leite produzido era constante no dia-a-dia da fazenda. Além do relato de Agostinho Ramos, já citado, os inventários de João de Godoy Fleming, de 1910; e o de Ricarda, de 1957, atestam a origem racial das vacas e touros que compunham o plantel da propriedade. Isso não impediu, no entanto, que por volta de 1953 aparecesse nos pastos da imensa fazenda um boi “desconhecido”, do qual nunca foi descoberto quem era o seu proprietário. Na década de 1950, a área da Fazenda Godoy abrangia 231 alqueires e seus limites iam desde a margem direita do Rio Embaú até a região da “Aguada”, próximo ao limite urbano de Cachoeira Paulista. O referido animal “surgiu” em terras da fazenda e tornou-se uma preocupação, pois além de derrubar cercas dos pastos e invadir áreas de plantações passou a “cruzar” com as novilhas holandesas. No entender dos pecuaristas esse cruzamento acaba danificando a raça.
            Em épocas atuais, determinados indivíduos simplesmente se apoderariam do bovino, fazendo melhor uso que lhes conviesse, pois de acordo com o lema “achado não é roubado”. Mas não foi o que fizeram os donos da Fazenda Godoy, pois não era de sua índole proceder de tal forma. Ainda que tenham se passados quase três anos do surgimento do touro, a família de Ricarda procura as autoridades policiais para descobrir quem seria o dono do animal. Instaurado o inquérito policial na Delegacia de Cachoeira Paulista, o mesmo tomou o nome de “Bem Abandonado”, iniciado no dia 16 de janeiro de 1956. Messe dia comparece diante do Delegado Dr. Rafael Américo Ranieri, a professora Maria Aparecida Godoy Valente, representando sua avó, Ricarda de Castro Fleming, que estava já com a saúde debilitada. No Têrmo de Declarações lavrado, a ilustre educadora afirma que “há cerca de um ano e meio apareceu no pasto da Fazenda Godoy (...) um boi de cor amarelo-escura e branco, (...), que seu dono não apareceu e nem se sabe quem seja”. Algumas testemunhas são chamadas a prestar depoimentos. Uma delas é o lavrador Antônio de Melo, conhecido como “Melinho”, que afirma que o animal, apesar de intruso estava sendo bem tratado na fazenda e “que não tem notícia de quem seja o proprietário do referido touro; que o touro é de raça vagabunda e está tendo produção com as vacas de D. Ricarda, estragando assim o gado”. A segunda testemunha é o meio-irmão de Melinho, Mário Vilas Boas Reis, cujo depoimento corrobora o anterior, acrescentando que se tratava de “um touro de cerca de desoito (sic.) arrobas de peso, malhado de preto e branco, mestiço caracu e zebu, raça ordinária”. A terceira testemunha é o lavrador Benedito Izidoro dos Santos, empregado da fazenda, que além de confirmar os depoimentos anteriores conclui que “desconhece o proprietário do referido touro e que até o presente momento ninguém no bairro sabe a quem o mesmo pertence”. Os depoimentos foram prestados no dia 04 de fevereiro de 1956; onze dias depois, o Delegado faz a apreensão do animal para avaliação.
            O Auto de Avaliação é realizado no dia 22 de fevereiro pelos peritos nomeados José de Castro e Jany Lopes de Oliveira. O boi foi descrito como “de raça comum (jagunço) de cor preta e branca (malhado), (...), ao qual os peritos deram o valor de cinco mil cruzeiros”. Havia, porém uma sugestão inicial, por parte da fazendeira de se vender o boi, em benefício das obras da Igreja Matriz do Embaú. Não concordando as autoridades e depois das testemunhas e da avaliação, o Delegado titular convoca para um novo Têrmo de Declarações, Cândida Godoy Oliveira, conhecida pela alcunha de “Dolinha”, irmã de Maria Aparecida. Nas declarações que prestou, Dolinha afirma que comparecia à Delegacia em nome de sua avó, então com 91 anos de idade e, em nome da avó esclarecia que a mesma “nunca teve o boi a que se referem os presentes autos como de sua propriedade e nem nunca teve intenção de ficar com o mesmo como dona, embora o referido boi tenha permanecido na fazenda dela por uns três anos, assim como poderá apresentar, se for preciso relação de despesas em juízo”.  O depoimento acima nos leva a supor que o inquérito estaria “invertendo” a situação, ao atribuir a Ricarda de Castro Fleming, a suposta propriedade do boi intruso, quando na realidade o que se objetivava era identificar o verdadeiro dono.
            Dessa forma, a questão vai parar no Fórum de Cachoeira Paulista e no dia 21 de março de 1956, o Juiz de Direito em exercício, Dr Vítor Machado de Carvalho nomeia como fiel depositário do touro, o Sr. Geraldo Alves de Oliveira, marido de Cândida Godoy. A indicação pelo Juiz, de Geraldo e não da esposa Dolinha, está relacionado ao sistema da época em que o marido era considerado juridicamente o “cabeça” do casal, independente de quem fosse o parente em linha sanguínea. É então iniciado o processo judicial que tomou o nome de “Bem Vago”, sob o número 27/56, no Cartório do 1º. Ofício. Seguindo os trâmites processuais, o Juiz em exercício determina um novo Laudo de Avaliação, o qual foi realizado em 06 de junho de 1956 por Dílson Gomes Fontes. Neste o bovino foi avaliado em Cr$ 5.400,00 e sua idade foi estimada em quinze anos.
            Entrementes, no dia 20 de junho de 1956, assume a Comarca como Juiz Titular, o Dr. Daniel de Faria Costa e ao tomar ciência do referido processo 27/56, determina em 23 de junho, a venda do boi por hasta pública, sendo marcado para o dia 30 de agosto de 1956, às 19 horas. Porém, no dia 04 de agôsto, o Juiz anula o despacho da fls. 21 (da venda do boi), afirmando que o mesmo suprimia uma fase importante do processo. É determinada, então, a realização de um edital, convidando pessoas que se julgarem com direito ao boi e a reclamá-lo dentro de trinta dias. O edital deveria ser “publicado no órgão oficial, por duas vezes, com intervalo de dez dias, por não ter nesta localidade qualquer órgão noticioso”. Na opinião do Meritíssimo, não havia jornais em Cachoeira Paulista naquela época. O edital é então publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em dois domingos: 02 de setembro, número 197, e 09 de setembro de 1956, número 202. Findo o prazo, ninguém se apresentou como dono do touro, e a Justiça decide pela venda em hasta pública e cita os familiares de Ricarda de Castro Fleming a apresentar os gastos e as despesas com o animal. Diante dessa situação a representante Dolinha e seu marido, Sr. Geraldo, depositário do boi, através do seu advogado, Dr. Ruy Motta de Siqueira apresentam às autoridades judiciais, a relação solicitada. Com o transporte do touro (inda e vinda do Embaú a Cachoeira) até a Delegacia: Cr$ 600,00 (em 27/12/56); passagens das testemunhas: Cr$ 42,00 (Embaú-Cachoeira); passagem da avaliadora Jany (Cruzeiro-Cachoeira): Cr$ 32,00; pastagens e alimentação com o boi desde que surgira: Cr$ 2.400,00; banhos quinzenais no animal: Cr$ 300,00; estragos de cercas: Cr$ 300,00. A relação, apresentada no dia 04 de fevereiro de 1957, totalizou a soma de Cr$ 3.674,00, enquanto que o mesmo boi fora avaliado em Cr$ 5.400,00 pela Justiça. Mas não era só, havia as custas judiciais.
            No dia 14 de fevereiro de 1957, o Promotor de Justiça, Francisco Esmeraldo de Melo, expõe sua tese quanto ao processo “Bem vago”, ao Juiz de Direito. Destinado à hasta publica, o boi estava causando despesas até para a própria Justiça. O Promotor lembra que nas duas avaliações, o animal foi valorizado em Cr$ 400,00. Com a avaliação final apresentada por Dílson Gomes e as despesas apresentadas por Geraldo Alves e sua esposa Dolinha, o touro iria acarretar um gasto para o Erário, sem contar as custas judiciais, como afirmamos. Segundo o Promotor, assim como não houve interessados no edital anterior, dificilmente iriam aparecer para a hasta pública. É interessante o argumento do Promotor Esmeraldo, o qual afirma que “no final esse boi, indiferente a toda essa cena que desenrola em torno de sua animalidade, venha a se tornar em onus para o Estado. Imagina-se que, para a hasta pública, ele terá que ser transportado para esta cidade. E o bicho, pelo que se vê, não gosta de andar a pé. Assim, lá terão que ser despendidos (...), mais Cr$ 600,00”. A tese do Promotor aborda o encargo que o Poder Público iria assumir, pois ninguém era dono do touro e os gastos iam aumentando. Sua tese é encerrada com uma idéia que havia sido levantada pelos familiares envolvidos; a de que o boi fosse doado à Santa Casa de Misericórdia.
            Acolhendo parcialmente, a tese do Promotor, o Juiz Daniel de Faria Costa, determina que diante do exposto desde o início da questão, “hei por bem declarar o mencionado animal como de propriedade de Ricarda de Castro Fleming, a qual será entregue após a satisfação das custas deste processo”. A sentença proferida em 20 de fevereiro de 1957 põe fim ao processo “Bem Vago”, e o boi intruso, além de permanecer no local que “escolheu” para ficar, passa a fazer parte do patrimônio, como bem semovente, da Fazenda Godoy. Por sua vez, Ricarda de Castro Fleming não viu o desfecho de tal processo, pois havia falecido na véspera do Natal de 1956. Sendo assim, com o seu inventário já iniciado, a família teve que arcar com as custas do “Bem Vago”, que somaram Cr$ 2.093,00, conta apresentada no dia 05 de abril de 1957. Analisando no senso comum, a família de Ricarda de Castro Fleming, acabou pagando por algo que seria considerado propriedade da fazenda. Mas, como afirmamos no início deste relato, o zelo pelo nome honrado e a virtude de não se apoderar daquilo que não lhe pertence é que levou ao desenrolar dos acontecimentos. Ao procurar as autoridades a situação quase se complica para Ricarda e seus familiares, pois ao agirem honestamente “arrumaram” uma dor  de cabeça. Por outro lado, diante de uma carga pesada para o Estado, a Justiça decide declarar o animal como pertencente à Fazenda Godoy, o que poderia ter sido realizado bem antes de toda essa celeuma. E o boi intruso passou seus últimos dias sem ninguém para incomodar sua “animalidade”, de acordo com o Promotor Francisco Esmeraldo de Melo. Até a próxima.    

                                                                                                     Eddy Carlos.



Dicas para consulta.

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Zahar Editores. 9º edição. Rio de Janeiro, 1973.

INVENTÁRIO de João de Godoy Fleming. Cartório do 1º. Ofício do Fórum de Cachoeira Paulista. Ano de 1910.

INVENTÁRIO de Ricarda de Castro Fleming. Cartório do 1º. Ofício do Fórum de Cachoeira Paulista. Ano de 1957.

PROCESSO BEM VAGO de Ricarda de Castro Fleming. Cartório do 1º. Oficio do Fórum de Cachoeira Paulista. Ano de 1956.

RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista (1780-1970). 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971.

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo: Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015.


E-mail: eddycalos6@gmail.com

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