Fotografia representando um momento na Fazenda Godoy, em meados do século XX. Fonte: Acervo do Recanto da Glória/Prof. Eddy Carlos.
Desde os
primórdios da humanidade, principalmente quando são organizadas as primeiras
comunidades, a questão de propriedade é observada em relatos ou documentos
antigos. Inicialmente, para o bem comum, tudo era de todos, ou seja, havia a
propriedade coletiva de determinado grupo ou aldeia. Habitações, utensílios,
agricultura, caça e pesca e a própria terra, eram considerados um bem comum não
existindo a noção de propriedade particular. Ainda hoje, alguns grupos
indígenas no Brasil e outros em países da África mantém o sistema da
propriedade coletiva. Quando caçam ou colhem a produção agrícola é para o
bem-estar de sua aldeia e não para si próprio, ou seja, não é para o bem
individual, não configurando a caça ou colheita uma forma de enriquecimento.
Com as primeiras
formas de governo, surge a comercialização dos produtos excedentes, mantendo
ainda como prioridade o sustento das comunidades. Com a passar do tempo, a
ordem se inverte. Produz-se para o mercado e a obtenção de lucro, ficando a
necessidade primária em segundo plano. Paralelamente, surge a noção de
propriedade individual ou privada. Sempre mediante a compra, os variados bens
individuais são adquiridos como ferramentas, casas de moradia, objetos de
adorno, entre outros. Aqueles que não conseguissem adquirir bens ficavam à
margem da sociedade. Nos tempos antigos e medievais, alguns excluídos partiam
para o saque de aldeias e povoados, com o objetivo de se apoderar de seus bens,
incluindo também os produtos das colheitas. Algumas nações mesmo sendo já
ricas, atacavam, ocupavam e saqueavam outras, como é o caso de Roma, que por
sua vez teve o seu império saqueado e destruído por povos bárbaros. Também como
exemplo, lembremos-nos dos saques aos tesouros astecas e incas, efetuados pelos
espanhóis de Hérnan Cortez e Francisco Pizarro no início do século XVI.
Com o advento da
Revolução Industrial e a ascensão do sistema capitalista, a questão da
propriedade privada cristalizou-se, sendo o seu direito inviolável dentro dos
limites jurídicos. Sendo assim, com o surgimento de diversos produtos
industrializados torna-se imperativo para muitos a ostentação da posse desses mesmos
bens. Ainda que a partir do Manifesto Comunista de 1848, o qual opunha
propriedade privada e propriedade coletiva, juntamente com as explorações e
desigualdades denunciadas por Karl Marx e Friedrich Engels, o capitalismo se
consolidou como sistema econômico, triunfando assim, os ideais de Adam Smith.
Mesmo em propriedades rurais com o sistema escravista já em declínio imperava a
busca pelo lucro e a produção agrícola já se destinava ao mercado. Aliás, nos meios
rurais a noção de propriedade individual já se acentuara há muito; os bens
pessoais que constituíam o patrimônio eram divididos em casas ou imóveis
diversos (ranchos, currais, galpões, etc), objetos de luxo, estoque das
produções, dinheiro em caixa, e os semoventes. Dentro dessa última categoria
estavam incluídos até a Lei Áurea os escravos. Como os bens semoventes significavam
bois, cavalos, jumentos, éguas, porcos, etc, temos uma noção lógica de como era
tratado o escravo.
Todavia, ao longo
do século XX, seguindo a expansão e consolidação do capitalismo em pleno Brasil agrário,
a sensação de poder, adquirir, consumir ou ostentar bens acentua-se cada vez
mais, alargando o fosso entre os que possuíam e os excluídos, que por sua vez
almejavam participar da “distribuição”. Como mencionamos, porém, no início do
presente relato, sempre houve nações que expropriavam outras, mesmo já
possuindo riquezas. Assim ocorria, em muitos casos com pessoas que mesmo
estando suficientemente abastadas cobiçavam bens, ainda que minúsculos de seus
vizinhos menos aquinhoados. No Brasil, foi comum em épocas remotas, durante o
auge do coronelismo, a expulsão de pequenos proprietários ou posseiros por
grandes fazendeiros, apoderando-se além de suas terras, de seus animais e
benfeitorias.
Entretanto, haviam
as exceções, ainda que raras. Principalmente quando o lema em geral, é tirar
vantagem de tudo e de todos, sempre houve aqueles que respeitaram o direito
alheio e não procuravam se apoderar daquilo que não lhes pertencia. Paralelo a
isso, ocorria também o fato de alguns proprietários cederem parte de suas
fazendas a agregados, e até mesmo ex-escravos. No Vale do Paraíba, houve alguns
casos entre o final do século XIX e meados do século XX. Um em particular
chamou a nossa atenção ocorrido em Cachoeira Paulista
no final da década de 1950, mais precisamente na Fazenda Godoy, no Embaú. Torna-se
imperativo, porém, conhecer um pouco detalhadamente a referida propriedade.
Localizada às
margens do que outrora foi a Estado Real, a Fazenda Godoy se formou em fins do
século XIX, com o casamento de João de Godoy Fleming e Ricarda de Castro
Fleming, realizado em 1889, no crepúsculo do Império. Como já se manifestara em
todo o Vale do Paraíba, a produção cafeeira entrara em declínio, e muitas
fazendas, de Bananal a Guararema estavam em decadência. Diante desse cenário,
João de Godoy adquire no ano de 1893 em Baependi, Minas Gerais, algumas
novilhas holandesas e técnicas para a implantação do gado leiteiro, incluindo
os tipos ideais de ração para a alimentação do gado. O Ilustre historiador e
ex-prefeito de Cachoeira Paulista, Agostinho Ramos, atribui à iniciativa de
João de Godoy o pioneirismo da introdução do gado leiteiro no Vale do Paraíba.
Com a morte prematura de João de Godoy a viúva Ricarda assume a administração
da fazenda, amparada pelo seu braço direito e compadre, Eduardo José de
Oliveira. Em meados da década de 1920, Ricarda de Castro Fleming se une ao
irmão Chrispim Bastos e o médico Antônio da Gama Rodrigues, fundando a Usina
Gama Bastos. Tal empreendimento tinha como objetivo processar o leite produzido
nas fazendas da região, principalmente da Fazenda Godoy e a do Rio Branco, de
Chrispim Bastos, também no Embaú. A Usina Gama Bastos é considerada a precursora
da Cooperativa de Laticínios do município. Foi ainda, através da iniciativa dos
proprietários da Fazenda Godoy que o Vale do Paraíba se tornou no século
passado a maior bacia leiteira do país.
A preocupação e o zelo quando à procedência
das matrizes, quanto a “raça”, no sentido de garantir a qualidade do leite
produzido era constante no dia-a-dia da fazenda. Além do relato de Agostinho
Ramos, já citado, os inventários de João de Godoy Fleming, de 1910; e o de
Ricarda, de 1957, atestam a origem racial das vacas e touros que compunham o
plantel da propriedade. Isso não impediu, no entanto, que por volta de 1953
aparecesse nos pastos da imensa fazenda um boi “desconhecido”, do qual nunca foi
descoberto quem era o seu proprietário. Na década de 1950, a área da Fazenda
Godoy abrangia 231 alqueires e seus limites iam desde a margem direita do Rio
Embaú até a região da “Aguada”, próximo ao limite urbano de Cachoeira Paulista.
O referido animal “surgiu” em terras da fazenda e tornou-se uma preocupação,
pois além de derrubar cercas dos pastos e invadir áreas de plantações passou a
“cruzar” com as novilhas holandesas. No entender dos pecuaristas esse
cruzamento acaba danificando a raça.
Em épocas atuais,
determinados indivíduos simplesmente se apoderariam do bovino, fazendo melhor
uso que lhes conviesse, pois de acordo com o lema “achado não é roubado”. Mas
não foi o que fizeram os donos da Fazenda Godoy, pois não era de sua índole
proceder de tal forma. Ainda que tenham se passados quase três anos do
surgimento do touro, a família de Ricarda procura as autoridades policiais para
descobrir quem seria o dono do animal. Instaurado o inquérito policial na
Delegacia de Cachoeira Paulista, o mesmo tomou o nome de “Bem Abandonado”,
iniciado no dia 16 de janeiro de 1956. Messe dia comparece diante do Delegado
Dr. Rafael Américo Ranieri, a professora Maria Aparecida Godoy Valente,
representando sua avó, Ricarda de Castro Fleming, que estava já com a saúde debilitada.
No Têrmo de Declarações lavrado, a ilustre educadora afirma que “há cerca de um
ano e meio apareceu no pasto da Fazenda Godoy (...) um boi de cor amarelo-escura
e branco, (...), que seu dono não apareceu e nem se sabe quem seja”. Algumas
testemunhas são chamadas a prestar depoimentos. Uma delas é o lavrador Antônio
de Melo, conhecido como “Melinho”, que afirma que o animal, apesar de intruso
estava sendo bem tratado na fazenda e “que não tem notícia de quem seja o
proprietário do referido touro; que o touro é de raça vagabunda e está tendo
produção com as vacas de D. Ricarda, estragando assim o gado”. A segunda
testemunha é o meio-irmão de Melinho, Mário Vilas Boas Reis, cujo depoimento
corrobora o anterior, acrescentando que se tratava de “um touro de cerca de desoito
(sic.) arrobas de peso, malhado de preto e branco, mestiço caracu e zebu, raça
ordinária”. A terceira testemunha é o lavrador Benedito Izidoro dos Santos,
empregado da fazenda, que além de confirmar os depoimentos anteriores conclui
que “desconhece o proprietário do referido touro e que até o presente momento
ninguém no bairro sabe a quem o mesmo pertence”. Os depoimentos foram prestados
no dia 04 de fevereiro de 1956; onze dias depois, o Delegado faz a apreensão do
animal para avaliação.
O Auto de
Avaliação é realizado no dia 22 de fevereiro pelos peritos nomeados José de
Castro e Jany Lopes de Oliveira. O boi foi descrito como “de raça comum
(jagunço) de cor preta e branca (malhado), (...), ao qual os peritos deram o
valor de cinco mil cruzeiros”. Havia, porém uma sugestão inicial, por parte da
fazendeira de se vender o boi, em benefício das obras da Igreja Matriz do
Embaú. Não concordando as autoridades e depois das testemunhas e da avaliação,
o Delegado titular convoca para um novo Têrmo de Declarações, Cândida Godoy
Oliveira, conhecida pela alcunha de “Dolinha”, irmã de Maria Aparecida. Nas
declarações que prestou, Dolinha afirma que comparecia à Delegacia em nome de
sua avó, então com 91 anos de idade e, em nome da avó esclarecia que a mesma “nunca
teve o boi a que se referem os presentes autos como de sua propriedade e nem
nunca teve intenção de ficar com o mesmo como dona, embora o referido boi tenha
permanecido na fazenda dela por uns três anos, assim como poderá apresentar, se
for preciso relação de despesas em juízo”.
O depoimento acima nos leva a supor que o inquérito estaria “invertendo”
a situação, ao atribuir a Ricarda de Castro Fleming, a suposta propriedade do boi
intruso, quando na realidade o que se objetivava era identificar o verdadeiro
dono.
Dessa forma, a
questão vai parar no Fórum de Cachoeira Paulista e no dia 21 de março de 1956,
o Juiz de Direito em exercício, Dr Vítor Machado de Carvalho nomeia como fiel
depositário do touro, o Sr. Geraldo Alves de Oliveira, marido de Cândida Godoy.
A indicação pelo Juiz, de Geraldo e não da esposa Dolinha, está relacionado ao
sistema da época em que o marido era considerado juridicamente o “cabeça” do
casal, independente de quem fosse o parente em linha sanguínea. É então iniciado
o processo judicial que tomou o nome de “Bem Vago”, sob o número 27/56, no Cartório
do 1º. Ofício. Seguindo os trâmites processuais, o Juiz em exercício determina
um novo Laudo de Avaliação, o qual foi realizado em 06 de junho de 1956 por
Dílson Gomes Fontes. Neste o bovino foi avaliado em Cr$ 5.400,00 e sua idade
foi estimada em quinze anos.
Entrementes, no
dia 20 de junho de 1956, assume a Comarca como Juiz Titular, o Dr. Daniel de
Faria Costa e ao tomar ciência do referido processo 27/56, determina em 23 de
junho, a venda do boi por hasta pública, sendo marcado para o dia 30 de agosto
de 1956, às 19 horas. Porém, no dia 04 de agôsto, o Juiz anula o despacho da
fls. 21 (da venda do boi), afirmando que o mesmo suprimia uma fase importante
do processo. É determinada, então, a realização de um edital, convidando
pessoas que se julgarem com direito ao boi e a reclamá-lo dentro de trinta
dias. O edital deveria ser “publicado no órgão oficial, por duas vezes, com
intervalo de dez dias, por não ter nesta localidade qualquer órgão noticioso”.
Na opinião do Meritíssimo, não havia jornais em Cachoeira Paulista
naquela época. O edital é então publicado no Diário Oficial do Estado de São
Paulo, em dois domingos: 02 de setembro, número 197, e 09 de setembro de 1956, número
202. Findo o prazo, ninguém se apresentou como dono do touro, e a Justiça
decide pela venda em hasta pública e cita os familiares de Ricarda de Castro
Fleming a apresentar os gastos e as despesas com o animal. Diante dessa
situação a representante Dolinha e seu marido, Sr. Geraldo, depositário do boi,
através do seu advogado, Dr. Ruy Motta de Siqueira apresentam às autoridades
judiciais, a relação solicitada. Com o transporte do touro (inda e vinda do
Embaú a Cachoeira) até a Delegacia: Cr$ 600,00 (em 27/12/56); passagens das
testemunhas: Cr$ 42,00 (Embaú-Cachoeira); passagem da avaliadora Jany
(Cruzeiro-Cachoeira): Cr$ 32,00; pastagens e alimentação com o boi desde que
surgira: Cr$ 2.400,00; banhos quinzenais no animal: Cr$ 300,00; estragos de cercas:
Cr$ 300,00. A relação, apresentada no dia 04 de fevereiro de 1957, totalizou a
soma de Cr$ 3.674,00, enquanto que o mesmo boi fora avaliado em Cr$ 5.400,00
pela Justiça. Mas não era só, havia as custas judiciais.
No dia 14 de
fevereiro de 1957, o Promotor de Justiça, Francisco Esmeraldo de Melo, expõe
sua tese quanto ao processo “Bem vago”, ao Juiz de Direito. Destinado à hasta
publica, o boi estava causando despesas até para a própria Justiça. O Promotor
lembra que nas duas avaliações, o animal foi valorizado em Cr$ 400,00. Com a
avaliação final apresentada por Dílson Gomes e as despesas apresentadas por
Geraldo Alves e sua esposa Dolinha, o touro iria acarretar um gasto para o Erário,
sem contar as custas judiciais, como afirmamos. Segundo o Promotor, assim como
não houve interessados no edital anterior, dificilmente iriam aparecer para a
hasta pública. É interessante o argumento do Promotor Esmeraldo, o qual afirma
que “no final esse boi, indiferente a toda essa cena que desenrola em torno de
sua animalidade, venha a se tornar em onus para o Estado. Imagina-se que, para
a hasta pública, ele terá que ser transportado para esta cidade. E o bicho,
pelo que se vê, não gosta de andar a pé. Assim, lá terão que ser despendidos
(...), mais Cr$ 600,00”.
A tese do Promotor aborda o encargo que o Poder Público iria assumir, pois
ninguém era dono do touro e os gastos iam aumentando. Sua tese é encerrada com
uma idéia que havia sido levantada pelos familiares envolvidos; a de que o boi
fosse doado à Santa Casa de Misericórdia.
Acolhendo
parcialmente, a tese do Promotor, o Juiz Daniel de Faria Costa, determina que
diante do exposto desde o início da questão, “hei por bem declarar o mencionado
animal como de propriedade de Ricarda de Castro Fleming, a qual será entregue
após a satisfação das custas deste processo”. A sentença proferida em 20 de
fevereiro de 1957 põe fim ao processo “Bem Vago”, e o boi intruso, além de
permanecer no local que “escolheu” para ficar, passa a fazer parte do
patrimônio, como bem semovente, da Fazenda Godoy. Por sua vez, Ricarda de
Castro Fleming não viu o desfecho de tal processo, pois havia falecido na
véspera do Natal de 1956. Sendo assim, com o seu inventário já iniciado, a
família teve que arcar com as custas do “Bem Vago”, que somaram Cr$ 2.093,00,
conta apresentada no dia 05 de abril de 1957. Analisando no senso comum, a
família de Ricarda de Castro Fleming, acabou pagando por algo que seria
considerado propriedade da fazenda. Mas, como afirmamos no início deste relato,
o zelo pelo nome honrado e a virtude de não se apoderar daquilo que não lhe
pertence é que levou ao desenrolar dos acontecimentos. Ao procurar as
autoridades a situação quase se complica para Ricarda e seus familiares, pois
ao agirem honestamente “arrumaram” uma dor
de cabeça. Por outro lado, diante de uma carga pesada para o Estado, a Justiça
decide declarar o animal como pertencente à Fazenda Godoy, o que poderia ter
sido realizado bem antes de toda essa celeuma. E o boi intruso passou seus
últimos dias sem ninguém para incomodar sua “animalidade”, de acordo com o
Promotor Francisco Esmeraldo de Melo. Até a próxima.
Eddy
Carlos.
Dicas para
consulta.
HUBERMAN, Leo. História da
Riqueza do Homem. Zahar Editores. 9º edição. Rio de Janeiro, 1973.
INVENTÁRIO de João de Godoy Fleming.
Cartório do 1º. Ofício do Fórum de Cachoeira Paulista. Ano de 1910.
INVENTÁRIO de Ricarda de Castro
Fleming. Cartório do 1º. Ofício do Fórum de Cachoeira Paulista. Ano de 1957.
PROCESSO BEM
VAGO de
Ricarda de Castro Fleming. Cartório do 1º. Oficio do Fórum de Cachoeira
Paulista. Ano de 1956.
RAMOS, Agostinho. Cachoeira
Paulista (1780-1970). 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971.
SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma
Janela no Tempo: Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015.
E-mail: eddycalos6@gmail.com
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