quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Crime de Mazak.

Desde os tempos antigos, o convívio entre religiosos e laicos nem sempre foi dos melhores. Na Roma dos Césares, para relembrarmos, líderes da Igreja foram martirizados, como Pedro, o Apóstolo de Cristo, considerado como o primeiro Papa, junto com Paulo. Outros, como os Papas Estevão e Sisto II, este decapitado nas catacumbas de São Calixto no ano de 258 d.C.; enquanto celebrava a missa no local fora surpreendido por uma centúria, que procurava aprisionar os cristãos, determinado pelo Imperador Valeriano. Ao longo da Idade Média, embora a Igreja tenha consolidado a sua influência na Europa e legitimando o poder de reis e imperadores, também houve atritos entre autoridades laicas e eclesiásticas, sendo o mais importante e notório o conflito denominado de Querela das Investiduras, iniciado entre o Papa Gregório VII e o Imperador do Sacro Império Germânico (Alemanha) Henrique IV, em 1073. A questão motivada sobre o direito de cada lado escolher ou nomear padres e bispos só se encerraria em 1122, com a Concordata de Worms, assinada entre o Imperador Henrique V e o Papa Calixto II. As diferenças e atritos pela disputa de autoridade, porém, prosseguiram ao longo dos séculos, entre os dois pólos de poder, ou seja, o laico e o religioso, cujo ápice ocorreu em 1870 com a Tomada de Roma, durante o processo de unificação política da Itália, iniciado com o “Risorgimento”.

Entretanto, no início da colonização do Novo Mundo, muitos religiosos entre padres e missionários protestantes pereceram nas mãos dos nativos da América ou quando tentavam defendê-los dos colonizadores que buscavam escravizá-los. Conforme a análise dos historiadores Fábio Pestana Ramos e Marcus Vinícius de Morais, o “sucesso da penetração dos missionários católicos entre os indígenas foi acompanhado de vários casos de martírios. Tentando estabelecer relações amistosas com os nativos para convertê-los ao cristianismo, padres perderam a vida quando atacados por tribos de índios nada amistosas”. O episódio mais emblemático foi o que envolveu o primeiro Bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha. Assumindo o posto em São Salvador da Bahia em 1552, o bispo logo entrou em atrito com as autoridades coloniais, com colonos e até com padres jesuítas, em particular com o Padre Manuel da Nóbrega, que preferiu retirar-se da Bahia rumo à Capitania de São Vicente. Após se indispor publicamente com Álvaro da Costa, filho do Governador-Geral, Duarte da Costa, Dom Pero resolveu embarcar para Portugal a fim de se queixar diretamente com o rei. Contudo, o navio que o levava para a Europa naufragou próximo à Alagoas e o bispo, e mais de 90 pessoas, entre tripulantes e passageiros foram devorados em um banquete antropofágico pelos índios Caetés. Em represália, o 3º. Governador-Geral Mem de Sá, moveu guerra de extermínio contra os índios; mais tarde faria o mesmo com os Tamoios e Tupinambás.

O envolvimento de clérigos em questões políticas foi constante ao longo da História do Brasil, como no caso dos jesuítas, atuando, geralmente ao lado dos indígenas contra os colonos e as autoridades; dos franciscanos, que participavam das bandeiras de preagem; ou na inconfidência mineira, como é o caso do Padre José da Silva e Oliveira Rolim, considerado pelo jornalista Roberto Wagner, como o elemento mais perigoso da Conjuração, mais do que o próprio Tiradentes. Houve também o caso do Frei Caneca, fuzilado por ordem de Dom Pedro I, por seu envolvimento na Confederação do Equador em 1824. Outro episódio envolvendo sacerdotes foi o da Revolução Liberal de 1842, deflagrada em Minas Gerais e São Paulo contra o Governo Central. Dentre os Clérigos, citemos o Cônego e Deputado Provincial de Minas Gerais, José Antonio Marinho e o Padre Diogo Antônio Feijó, ex-regente, que foi um dos líderes da sublevação em São Paulo. No Vale do Paraíba, os revoltosos de batina foram o Padre Manuel Teotônio de Castro, de Lorena e o Padre Manoel Félix de Oliveira, de Silveiras. Até aqui, no entanto, foram analisadas questões de ordem política e religiosa para compreendermos o antagonismo existente entre os poderes laico e religioso, em que, em geral os representantes da Igreja sempre foram os mais visados. Outra forma, em que os religiosos foram vitimas, decorreu de atos criminosos, nos quais seus autores nem sempre representam uma ala ou facção de qualquer órgão de governo ou partido, e sim, do simples ato de praticar um delito, como um furto ou assalto.

Numa ocorrência dessas, a cidade de Cachoeira Paulista ficou abalada com o desfecho trágico, em fins de 1957, de um crime, culminando com a morte violenta de um simples e humilde sacerdote. Nascido na Alemanha em 1891, José Francisco von Atzingen veio para o Brasil em data ignorada, passando a infância nas cidades de Pirassununga e Rio Claro, segundo a análise de Agostinho Ramos. Professor primário diplomado, tendo exercido o magistério em diversas cidades do Estado de São Paulo, abraçou, porém, a vocação sacerdotal. Como padre atuou em paróquias de Diocese de Taubaté e de Lorena, tornando-se vigário da Paróquia de Santo Antônio da Cachoeira entre outubro de 1939 e janeiro de 1942. Conhecido na cidade como Padre Juca fora nomeado para exercer a função de capelão da Santa Casa de Misericórdia “São José”, onde fixou residência, em meados da década de 1950. Ainda como vigário da Paróquia foi um dos signatários dos estatutos da “Associação Fundadora do Ginásio de Cachoeira, ao lado de Darwin Aymoré do Prado, João Clímaco de Godoy, Aurelino Marcondes Ferreira, Ovídio de Castro, Ary Senne Silva, Edésio Marcondes Ferreira, José Jazão Lara, entre outros; em assembléia realizada em 12 de outubro de 1941. De acordo com o relato deixado pelo ilustre historiador Agostinho Ramos, o Padre Juca levada uma vida pacata, feliz em permanente oração e atenção aos desamparados “lendo”., aconselhando e abrindo sua pobre bolsa para a caridade. Tal seu espírito de renúncia pelos bens da terra que, o bocadinho que possuía, adquirido pela caridade e insistência de amigos, deixou para Diocese, pois seu ideal era possuir apenas suas vestes talares envolto nos quais desejava morrer”. Como capelão da Santa Casa, além de confortar os enfermos e seus parentes, o Padre Juca angariava donativos para a organização do Natal dos pobres, como já estava preparando para o do ano de 1957, o que infelizmente ele não conseguia realizar.

No dia 21 de dezembro de 1957, num sábado, bem cedo, as freiras, pacientes e público em geral, aguardam o Padre Juca para celebrar a missa matinal na pequena capela de São José, contígua à Santa Casa. Com a demora do padre, sempre pontualíssimo, uma das freiras resolve ir chamá-lo no seu apartamento. Ao perceber a porta entreaberta, a irmã observa que o interior do cômodo estava em completa desordem e os utensílios revirados. Segundo o relato do Promotor de Justiça, Francisco Esmeraldo de Melo, a freira, diante da bagunça visualizada, resolve adentrar o recinto e, “mal dá os primeiros passos, defronta-se com a realidade brutal: o cadáver do padre jazendo numa poça de sangue, a batina suspensa envolvendo-lhe a cabeça, sinal manifesto de crime. Sobressalto, pânico, correrias. A notícia alastra-se, fulminando os lares de consternação e de luto. Só então concatenando os fatos, as irmãs de caridade advertiram-se de que, na véspera, por volta das 21 horas, haviam escutado gritos lancinantes, cuja origem, embora procurada, não fora descoberta”. O infeliz sacerdote fora assassinado com 15 punhaladas, sendo que 10 acertaram o tórax e abdômen. Após verificações iniciais, constatou-se que fora subtraído da escrivaninha do padre, a soma Cr$1.200,00 (hum mil e duzentos cruzeiros), provavelmente fruto dos donativos para o Natal dos pobres, já mencionado. O latrocínio pôs em comoção a população de Cachoeira Paulista, sendo a notícia publicada na imprensa de todo o país e até no “Times”, jornal inglês, segundo Sandra Regina Félix. No decorrer do dia da tragédia, as freiras e funcionários da Santa Casa deram por falta de um dos pacientes, que mantinha contato com o Padre Juca há pelo menos quatro anos, chamado Antonio Cândido Muniz.

Todavia, iniciadas as investigações, tendo participação direta da própria Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, foi descoberta a verdadeira identidade do criminoso. Tratava-se de Antônio Maria Mazak, ex-militar, processado, condenado e expulso da Aeronáutica, por indisciplina e insubordinação pelo Superior Tribunal Militar. Dias antes do crime, Mazak, segundo a acusação, finge-se de doente e é internado na Santa Casa e, como não possuía nenhuma enfermidade foi compelido a deixar o local o quanto antes. Alegando não possuir recursos para pagar uma passagem de ônibus até Lorena, vai ao Padre Juca pedir auxílio, no que é atendido. De acordo com o Promotor do caso, Francisco Esmeraldo, o criminoso deve ter escolhido o padre, conhecido seu de longa data, para vítima, imaginando conseguir alta soma em dinheiro. Ainda de acordo com o Promotor, Antônio Maria Mazak, entregou-se à polícia em São Paulo, alguns dias depois do assassinato, porque sabia que estava sendo procurado, não sem antes emitir cheques sem fundos em Taubaté, Jacareí e na própria capital. Preso inicialmente em São Paulo, Antônio Mazak foi transferido para a cadeia de Guaratinguetá no dia 13 de janeiro 1958, permanecendo até o dia 8 de junho do mesmo ano, quando após uma tentativa de fuga, foi removido para Cachoeira Paulista, onde aguardou o fim do processo.

No decorrer do inquérito, foi difícil encontrar advogado para o réu. Conforme o relato do Promotor de Justiça, Francisco Esmeraldo de Melo, não houve, “nesta comarca, um só advogado que aceitasse a defesa do réu, tanto em virtude da perversidade extremada de que se revestiu o crime, como, e sobretudo, em razão dos laços afetivos que, em vida, ligaram o extinto a todos os causídicos militantes no fórum local”. Com a unanimidade sistemática da recusa, o juízo de Cachoeira oficia à sub-seção da ordem dos Advogados de Guaratinguetá, solicitando um defensor para Mazak. Como nessa cidade e comarca houve a mesma negativa, o próprio Presidente da entidade Dr. Carvalho Neto, resolve assumir, ele mesmo, o encargo de defender o executor do Padre Juca. Durante a fase do interrogatório e, também no julgamento, Antonio Mazak confessou o crime, descrevendo-o detalhamente para as autoridades. Inclusive, indicou onde fora descartada a arma do crime, encontrada pela Polícia Técnica de São Paulo. O instrumento letal utilizado pelo criminoso era uma faca própria para matar porcos, medindo 30cm de comprimento, sendo 21 de lamina. Durante a fase do processo criminal, a Defesa tentou desqualificar a acusação da Promotoria, de diversas formas como questionamento de jurisprudência, negando a reincidência, decorrida da punição do Superior Tribunal Militar, até pedir o exame de insanidade mental do autor do latrocínio. Para o Promotor Esmeraldo de Melo, o escopo da Defesa era “ganhar tempo, delongar, indeterminadamente, o julgamento. Queria levar para o ocaso da memória, para o seio do esquecimento, o horripilante episódio. Objetiva, sem duvida, delir a remanescente impressão de repulsa que a brutalidade dos fatos incutiu na sensibilidade moral da população ordeira e cristã desta comarca, sem falar, está claro nos irmãos e familiares da vítima, estes indelevelmente marcados pelo estigma da tragédia”.

Todas as tentativas da Defesa durante o processo e julgamento de Antônio Maria Mazak redundaram em completo fracasso. Sendo assim, o réu confesso do assassinato do Padre Juca foi condenado a 29 anos de prisão, e mais 2 anos na medida de segurança, devido a alta periculosidade do endivido. A sentença proferida pelo Juíz de Direito Dr. Daniel de Faria Costa foi publicada no jornal “O Cachoeirense”, na edição de 18 de maio de 1958, conforme relatado por Francisco Esmeraldo de Melo. Porém, tanto o réu como a Defesa ficou inconformados com a decisão do Fórum de Cachoeira Paulista e, entra com Apelação no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apresentando os mesmos argumentos que já haviam sido refutados em 1º. Instância. Contudo, a referida Apelação do numero 59.260, foi negada por unanimidade pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, confirmando assim, a sentença proferida em Cachoeira Paulista. O Acórdão, de autoria do procurador da Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Hélio Pereira Bicudo foi publicado no dia 21 de outubro de 1958, no Diário da Justiça. Consequentemente, ainda preso na Cadeia Pública de Cachoeira Paulista, Antônio Maria Mazak teve de ser transferido para a penitenciária do Estado. A transferência foi solicitada pelo Promotor Esmeraldo de Melo no dia 27 de novembro de 1958 e deferido no mesmo dia pelo Juíz Daniel de Faria Costa.

A conclusão do processo e condenação de Antônio Maria Mazak, em que se reflete a atuação competente do Promotor de Justiça Francisco Esmeraldo de Melo amenizou a angústia da família do Padre Juca, Principalmente de seu irmão Jacob von Atzingen, residente em Belo Horizonte. Como afirmamos ao longo deste relato, o Padre Juca era muito bem quisto na cidade de Cachoeira Paulista e, sua morte, trágica e violenta ficou na memória dos cachoeirenses. No mesmo ano de 1958, em que tramitou o processo crime do latrocínio da Santa Casa, depois que o Grupo Escolar da Vila Carmen já estava em atividade, a Prefeitura Municipal solicitou a mudança de nome para o do padre assassinado. Atendido ao pedido por parte do Governo do Estado, o estabelecimento de ensino passou a se chamar “Grupo Escolar Padre Juca”. Atualmente ostentando uma estátua que representa o infeliz sacerdote, o local denomina-se “Escola Estadual Padre Juca”. Tanto a estátua quanto o nome da escola representa uma singela a justa homenagem a José Francisco von Atzingen, o Padre Juca, o mártir, nas palavras de Agostinho Ramos. Até a próxima.



Eddy Carlos.









Dicas para consultas.



ALMEIDA, Roberto Wagner de. Entre a Cruz e a Espada. A Saga do valente e

devasso Padre Rolim. Paz e Terra. São Paulo, 2002.



FÈLIX, Sandra Regina (Org.). Cachoeira Paulista, Fé, História e Tradição. Noovha

América. São Paulo, 2005.



MELO, Francisco Esmeraldo de. Latrocínio em Cachoeira Paulista. Contra-Razões

em Apelação. Comarca de Cachoeira Paulista. Cachoeira Paulista, 1958.



MONGE E SIMONETTO, A. e B. Os Doze a Caminho. História da Igreja. Em

quadrinhos. Edições Paulinas. 5ª Edição. São Paulo, 1983.



RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo,

1970.



RAMOS E MORAIS, Fábio Pestana e Marcus Vinícius de. Eles Formaram o Brasil.

3 comentários:

  1. Prezado Eddy Carlos, sou filho do promotor Francisco Esmeraldo de Melo, citado por você no seu belo artigo sobre o Padre Juca. Recentemente, fiz reeditar o livro Latrocínio em Cachoeira Paulista. Pretendo repetir isso, pelo que gostaria de obter a sua autorização para incluir o referido artigo publicado em Redescobrindo o Vale, bem como obter outras informações sobre o Padre Juca. Seguem meus contatos: melonetoje@uol.com.br - fone (12) 99607 5326

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  2. Prezado Eddy Carlos, sou filho do promotor Francisco Esmeraldo de Melo e gostaria de sua autorização para incluir o seu artigo sobre o Padre Juca numa próxima reedição do livro Latrocínio em Cachoeira. Meses atrás, deixei com uma funcionária da promotoria de Cachoeira alguns exemplares da obra em primeira reedição. Favor me contatar: melonetoje@uol.com.br - (12) 99607 5326

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  3. Srs. Eddy Carlos e João Melo interesso-me por suas publicações, gostaria de obtê-las.Somente hoje tomei conhecimento de seus trabalhos. O Pe. Juca foi professor em minha cidade natal, em Bariri sp. Hoje resido em Campinas sp.Em Bariri era conhecido como professor Fonati. Tenho notícias que gostaria de compartilhar. Tentei entrar em contato, via celular, mas não consegui. Aguardo suas notícias.

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