domingo, 18 de setembro de 2022

Às Margens do Ipiranga; há 200 anos.


     Independência ou Morte, de Pedro Américo, 1888. Fonte: www.aventurasnahistoria.com


               Aprendemos nos bancos escolares que o Brasil se tornou independente no dia 07 de setembro de 1822, quando Dom Pedro I decide romper com Portugal. Chegava ao fim três séculos de dominação colonial praticada por um país europeu. Mas em que circunstâncias isso ocorreu? Quais as razões que levaram o príncipe a libertar o Brasil do jugo colonial, embora isso representasse uma afronta ao próprio pai, o Rei Dom João VI? Retrocedemos no tempo.
               No contexto das guerras napoleônicas, o imperador dos franceses praticamente “varreu” a Europa, invadindo reinos e impérios rivais, destronando reis e colocando no lugar destes, membros de sua família. Como não conseguiu dominar a Inglaterra, Napoleão decreta em 1806 o Bloqueio Continental, o qual proibia qualquer país de comercializar com os ingleses, sob ameaça de invasão, em caso de desobediência. O objetivo era enfraquecer a economia britânica. E justamente quem dependia diretamente da Inglaterra era o Reino de Portugal, “amarrado” desde 1703 pelo Tratado de Methuen. Governava o reino lusitano desde 1799, o Príncipe Regente Dom João, no lugar de sua mãe, a Rainha Dona Maria I, conhecida como “a Louca”.
              Quando o Bloqueio Continental é decretado, Portugal se vê “entre a cruz e a espada”. Dom João sabia que se recusasse a acatar a ordem de Napoleão, o reino seria invadido pelas tropas francesas. E se obedecesse já tinha sido avisado de que a invasão seria pela Inglaterra. A solução “brilhante” foi a fuga da Família Real para o Brasil, então uma mera colônia portuguesa que começa a ser preparada. O monarca ainda tentou “ganhar tempo”, mas Napoleão percebendo certa manobra ordena que o General Andoche Junot, já estacionado em território espanhol, iniciasse a invasão de Portugal no início de novembro de 1807. Abandonando seu próprio povo, Dom João e toda a Corte embarcam no dia 27 de novembro de 1807, mas só podem zarpar no dia 29, devido ao mau tempo. Partem escoltados pela Armada Real Britânica, enquanto que no mesmo instante, as forças de Junot ocupavam Lisboa e a Torre de Belém. No dia 22 de janeiro de 1808, a comitiva lusitana chega a Salvador, permanecendo alguns dias; depois o destino seria o Rio de Janeiro, onde desembarca no dia 08 de março. Logo em seguida assina decretos que iriam beneficiar a Inglaterra, como a Abertura dos Portos às Nações Amigas (1808) e o Tratado de Comércio e Navegação (1810).
               Com a derrota de Bonaparte em 1815 na Europa, acontece o Congresso de Viena na Europa, que buscava restabelecer o Antigo Regime, preconizando que os reis depostos na era napoleônica voltassem a seus respectivos tronos, em seus respectivos reinos. Laurentino Gomes afirma que Dom João não pretendia voltar à Europa e no mesmo ano eleva o Brasil à condição de reino, criando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, a capital passa a ser o Rio de Janeiro e não mais Lisboa. No ano seguinte, com a morte da Rainha Dona Maria I, sua mãe, ele é coroado rei do referido Reino Unido.
                Entretanto, depois de permanecer por 13 anos no Brasil, Dom João se vê obrigado a retornar ao Velho Mundo. Em 1820 ocorre a Revolução do Porto, de caráter liberal, na qual se instala um governo controlado pelas chamadas Cortes de Lisboa. Tal governo exige a volta do monarca, que teria que jurar uma Constituição, e a recondução do Brasil à mera condição de colônia. Embora relutasse, o rei decide partir, o que acontece no dia 25 de abril de 1821, deixando no Rio de Janeiro o filho Pedro como Príncipe Regente. Na ocasião teria dito a Pedro que se “o Brasil se separar, antes que seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. O rei parecia estar prevendo o que viria em breve. Desde sua chegada aos trópicos em 1808, além do fim do Pacto Colonial, o Brasil passou por transformações, sendo que as elites aqui constituídas se beneficiaram, e muito, com a presença da Família Real na antiga colônia. A partida do monarca para Portugal, como as Cortes exigiram, significava que o retrocesso seria inevitável. Porém, com a permanência do jovem príncipe, havia a possibilidade de as elites, agrárias e escravocratas, manterem seus privilégios; mesmo que fosse preciso uma ruptura com a antiga Metrópole. Vale lembrar que, nesse meio tempo o Brasil já não era mais colônia. Para alguns pesquisadores o ano de 1815 seria de fato a independência, enquanto que o “grito“ do Ipiranga apenas oficializou uma ruptura com Portugal.   
                Pois bem, uma vez de volta a Lisboa, o rei não consegue evitar as medidas das Cortes. Conforme registra Eduardo Bueno, pelas “novas regras do jogo, o Brasil (...) perdia seus privilégios e teria que voltar a se submeter inteiramente ao governo da metrópole”, o que ia contra os interesses das elites dos trópicos. Por sua vez, o Príncipe Regente é pressionado a também voltar para Portugal, ao mesmo tempo em que é instado pelas elites locais a permanecer no Brasil. Em 09 de janeiro de 1822, ele resolve ficar, atendendo aos “apelos” do povo, no que ficou conhecido como o Dia do Fico. Com isso, a independência de fato era uma questão de tempo, pois as Cortes decidem “apertar” o laço. Em seguida, Dom Pedro organiza um ministério, que é liderado por José Bonifácio de Andrada e Silva, que ficou conhecido como o Patriarca da Independência. No dia 01 de agosto de 1822, o príncipe declara que soldados enviados por Portugal sem o seu consentimento, seriam tratados como inimigos no Brasil, em uma clara demonstração de força e autoridade.
                Todavia, nem todas as regiões do Brasil concordavam com o príncipe. Uma delas era a Província de São Paulo, onde as autoridades locais, inicialmente leais a Dom Pedro, aos poucos decidem se sujeitar às Cortes de Lisboa. Governava a Província o General João Carlos Augusto de Oyenhausen, que começa a contestar a influência de José Bonifácio junto a Dom Pedro. O irmão de Bonifácio, Martim Francisco de Andrada ocupava o cargo de Secretário do Interior e da Fazenda desde 21 de junho de 1821 e tanto Oyenhausen como o Coronel Francisco Ignácio de Souza Queiroz e o Ouvidor José da Costa Carvalho, tramavam sua deposição. Este recorre ao irmão e José Bonifácio envia um ofício para Oyenhausen, no dia 21 de maio de 1822, ordenando que entregasse o cargo para Martim e seguisse imediatamente para o Rio de Janeiro. Dois dias depois, desobedecendo ao ofício o General Oyenhausen se posiciona contra Dom Pedro, depondo do cargo Martim Francisco e convocando a tropa, em uma clara demonstração de rebeldia e insubordinação.    
                 Entrementes, para contornar a crise, Dom Pedro decide viajar até a Vila de São Paulo, partindo do Rio de Janeiro no dia 14 de agosto de 1822, nomeando sua esposa, a Princesa Leopoldina de Habsburgo, como regente em seu lugar. O saudoso historiador José Luiz Pasin define a viagem como a Jornada da Independência, a qual é feita pela Estrada Geral (atual Estrada Velha Rio-São Paulo), ao longo do Vale do Paraíba. Nas vilas por onde passa alguns apoiadores (membros das elites) o acompanham até São Paulo e iria mais tarde constituir a sua Guarda de Honra. Ao partir da Corte o príncipe está acompanhado de Eleutério Velho Bezerra e Antônio Luiz da Cunha. Na Vila de São João Marcos a comitiva é incorporada por Cassiano Gomes Nogueira, Floriano de Sá Rios e Joaquim José de Souza Breves. Em Resende entram no grupo Antônio Pereira leite, o Sargento-Mor Antônio Ramos Cordeiro, José da Rocha Corrêa e David Gomes Jardim. Adentrando o vale paulista, a comitiva real recebe a inclusão do Sargento-Mor João Ferreira de Souza, na Vila de Areias. Na Vila de Guaratinguetá decide acompanhá-lo João Monteiro dos Santos e Custódio Lemes Barbosa. A Vila de Pindamonhangaba “forneceu” o maior número de acompanhantes de Dom Pedro. Foram integrados o Capitão-Mor Manoel Marcondes de Oliveira Mello, o Sargento-Mor Domingos Marcondes de Andrade, o Tenente Francisco Bueno Garcia Leme, Miguel de Godoy Moreira e Costa, Manoel de Godoy Moreira, Manoel Ribeiro do Amaral, Antônio Marcondes Homem de Mello e Benedito Corrêa Salgado. Na Vila de Taubaté foi a vez de se juntar ao grupo Francisco Xavier de Almeida, Vicente da Costa Braga, Fernando Gomes Nogueira, João José Lopes, Rodrigo Gomes Vieira e Bento Vieira de Moura. Apesar de não ter passado pela Vila de Paraibuna, um morador do referido município se junta à comitiva, Flávio Antônio de Mello, que provavelmente estava no itinerário do príncipe. E em Mogi das Cruzes se junta ao grupo Salvador Leite Ferraz.           
                No dia 25 de agosto Dom Pedro chega a São Paulo, sendo recebido com júbilo. Restabelecendo sua autoridade os implicados na sedição são presos e remetidos para o Rio de Janeiro, além de reorganizar o governo e a administração na sede da província. E é em São Paulo que o príncipe conhece Domitila de Castro Canto Melo (futura Marquesa de Santos) e logo a seguir ambos iniciam o famoso caso extraconjugal. Paralelamente, no Rio de Janeiro, a Princesa Leopoldina recebe, no dia 02 de setembro, correspondências oficiais de Lisboa; em uma delas constava a ordem de prisão de Dom Pedro e seu retorno coercitivo a Portugal. Ao lê-las ela decide reunir o Conselho de Estado (o ministério) e enviar mensageiros no encalço de Pedro. Entre 05 e 06 de setembro, o príncipe estava na cidade Santos tratando de outros assuntos e retorna a São Paulo, chegando no dia 07, encontrando os emissários de Leopoldina próximos ao Riacho do Ipiranga. Além da mensagem da esposa, chega também uma carta de José Bonifácio, alertando-o de que nada mais de positivo poderia esperar de Portugal. O episódio a seguir já é conhecido. Ao tomar conhecimento das ordens das Cortes, saca da espada e dá o famoso grito, declarando a independência; momento eternizado por Pedro Américo no famoso quadro “Independência ou Morte”, de 1888. A obra, que ilustra inúmeros livros didáticos, é uma criação do artista, mas que foi incorporada pela historiografia oficial. A historiografia crítica descreve o cenário bem diferente do que foi retratado pelo pintor. Por exemplo, a Guarda de Honra com seus uniformes exuberantes, só seria criada oficialmente em outubro de 1822. Outro detalhe, o príncipe não montava um cavalo branco e sim uma mula baia. Em outro aspecto, conforme a narrativa de Eduardo Bueno, após consumir algo que não lhe caiu bem, em Santos, o Príncipe Regente estava “à beira do córrego, ‘quebrando o corpo’ ---agachado para ‘responder a mais um chamado da natureza’”. Ou seja, Dom Pedro estava com uma diarreia daquelas, o que talvez contribuísse para o péssimo humor e a ira ao ler as cartas recebidas. Obviamente nenhum livro didático de História menciona tal cenário, que não “combina” com a imagem de Sua Alteza Real. Retornando à Corte a missão é se preparar para organizar o país, agora livre, para enfrentar a reação de Portugal. Mas, já no início as contradições afloram; a principal delas talvez seja a manutenção da escravidão como sistema econômico, que só se encerraria em 1888, cujos efeitos vivenciamos até os dias atuais.
                Contudo, apesar de independente, o novo Estado continuava a ser governado por um Bragança, sendo que Dom Pedro continuava como herdeiro do trono português. Mais tarde, esse fato iria lhe causar problemas por aqui, principalmente após a morte de Dom João VI em 1826. No dia 01 de dezembro de 1822, o libertador da pátria é coroado como Imperador do Brasil, com o nome de Dom Pedro I; cena que foi reproduzida por Jean-Baptiste Debret. Mas, o que a historiografia oficial omite é que a decisão pela independência do Brasil, há 200 anos, partiu de uma mulher, a Princesa Leopoldina. Após a coroação o próximo passo era elaborar uma Constituição para a jovem nação; mas isso é outra história.
 
                                                                                        Prof. Eddy Carlos.


 
 
Referências.
BUENO, Eduardo (Org.). História do Brasil. Os 500 anos do país em uma obra completa, ilustrada e atualizada. PubliFolha. São Paulo, 1997.
 
GOMES, Laurentino. 1808. Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Editora Planeta. São Paulo, 2007.
 
_________________. 1822. Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2014.
 
MACAULAY, Neill. Dom Pedro I. A Luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal; 1798-1834. Editora Record. Rio de Janeiro, 1986.
 
PASIN, José Luiz. A Jornada da Independência. Editora Vale Livros. Aparecida, 2004.


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