sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A "Vila" dos Purís.

             Vista parcial de Queluz, em desenho de Tom Maia, década de 1970. Extraído da internet.


              Há algum tempo, na edição de número 664, deste periódico, o título de nosso artigo foi “Os antigos habitantes”, no qual abordamos a tragédia que abatera sobre os silvícolas de Pindorama decorrente da expansão colonizadora empreendida pelos lusitanos. No caso do Vale do Paraíba, as principais vítimas da ação dos colonos foram os Puris, sendo que no litoral paulista e fluminense foram os Tamoios, exterminados muito tempo antes. Embora inimigas naturais, Tamoios e Puris, assim como outras nações indígenas foram condenadas ao aniquilamento total por insistirem em manter seu próprio estilo de vida, suas crenças e religiões e seus hábitos culturais, não se sujeitando ao modelo de exploração e domínio imposto pelas autoridades coloniais portuguesas como o aval da Igreja. Para termos uma noção da dimensão da política ultramarina portuguesa, lembremos que durante a Confederação dos Tamoios contra o avanço colonizador, Mem de Sá, 3º Governador-Geral, declarou guerra total e de extermínio  aos índios pelo fato de os mesmos terem se aliado aos franceses durante o episódio da França Antártica (1555-1572). O mesmo Mem de Sá decretaria também o extermínio dos Caetés do Nordeste por terem comido o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, cujo navio naufragara próximo a Alagoas, quando viajava para Lisboa. Tal fato ocorrera no governo de Duarte da Costa, mas Mem de Sá considerou como uma afronta a Santa Igreja Católica e por isso toda uma nação foi exterminada.
               Voltando, porém, ao nosso Vale do Paraíba, é sabido que os Puris foram aos poucos sendo dizimados por trabalho escravo, doenças e mortes em combates contra os bandeirantes que se dirigiam à garganta do Embaú na Serra da Mantiqueira com destino às Gerais. Dessa forma cada povoado ou arraial construído pelos colonos significava uma aldeia a menos dos indígenas, que ou fugiam para os sertões ou ficavam entre os “brancos” como servos, na realidade, escravos. O avanço colonizador e o recuo dos silvícolas proporcionaram o surgimento de povoados (hoje grandes cidades) como Mogi das Cruzes – a antiga Boigy de Brás Cubas – Taubaté, Guaratinguetá, Jacareí, São José dos Campos, Lorena e assim por diante. Para iniciar a ocupação das terras despovoadas e repovoá-las de acordo com os preceitos “civilizados” e católicos, os pretendentes obtinham cartas de sesmarias que eram condicionadas ao cultivo e exploração das áreas concedidas em nome do rei de Portugal por intermédio de capitães-mores, geralmente indivíduos que lideraram a expulsão e extermínio dos autóctones. É o caso por exemplo quando da construção do “Caminho Novo da Piedade”, onde pessoas “ilustres” de Guaratinguetá e de Lorena “limparam” o sertão e através das sesmarias distribuídas surgiriam Bananal, Areias, Silveiras, São José do Barreiro, etc. Mas outras surgiram de forma diferente como iremos analisar a seguir.
                  Uma das diversas maneiras de dominação consistia em “reduzir” os indígenas em aldeias administradas por ordens religiosas, sobretudo, pelos jesuítas. Embora muitos estivessem salvos das garras dos bandeirantes até os ataques ao Guairá, os silvícolas eram destituídos de seus valores culturais tornando-se meros indivíduos passivos e subservientes, devendo reconhecer a autoridade do rei e do papa como supremas. No Vale do Paraíba, três cidades surgiram de aldeamentos indígenas: São José dos Campos, Guararema (antiga Nossa Senhora da Escada), e Queluz. É neste último que iremos direcionar o nosso foco de análise. Até o crepúsculo do século XVIII, os Puris ainda resistiam ao avanço colonizador no território valeparaibano. Com a elevação da Freguesia da Piedade em Vila em 1788 com o nome de Lorena, a caçada ao gentio intensificou-se ainda mais. No dia 27 de janeiro de 1798, o Governador da Capitania de São Paulo, Capitão-general Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça determinou ao Capitão-Mor de Lorena, Domingos Gonçalves Leal que reduzisse em aldeia os últimos puris que se encontravam nas matas entre o Rio Paraíba e a Serra da Mantiqueira. Sendo assim, Gonçalves Leal que reduzisse em aldeia organiza e dirige duas expedições ao sertão lorenense, como era conhecida então a área habitada pelos índios. Na primeira aprisiona sete Puris que envia ao Governador da Capitania como troféus de guerra e, na segunda captura dez, entre os quais  encontra-se Vuti, de idade avançada, que passa  a ser chamado pelos lorenenses de Mongo. Os vencedores incubem o velho indígena de convencer os remanescentes a deporem as armas  e se sujeitarem ao poder colonial português. De acordo com a análise de Paulo Pereira dos Reis, Mongo ou Vuti, cumpriu a missão e conduziu 86 indivíduos (homens, mulheres e crianças) a um local conhecido como Figueira, território da Vila de Lorena, e se apresentaram a Gonçalves Leal, o qual  ordenou, que armassem um acampamento até a instalação da aldeia .
                     Através da desapropriação das terras de Antônio José de Carvalho, que tinha início na margem esquerda do Rio Paraíba confinando com as vertentes da Mantiqueira, compreendendo, assim, uma área entre o Ribeirão do Entupido a Oeste e o das Cruzes a Leste. Indenizado o proprietário, as autoridades transformaram tal área em sesmaria dos Puris e para administrá-la foi escolhido Januário Nunes da Solva, diretor e como pároco o Padre Francisco das Chagas Lima. Em 12 de março de 1801 foi instalada a Nova Aldeia de São João da Queluz, cujo “Auto de Posse” foi lavrado pelo escrivãooi lavrado pelo escrivi instalada a Nova Aldeia de Sendendo, assim, uma  de idade avançada, que passa  a ser chamado pelos lor  da Câmara de Lorena, Joaquim José Fernandes de Leite. O nome da aldeia era uma homenagem a Dom João, Príncipe Regente e ao Palácio de Queluz em Lisboa, onde nascera o príncipe Dom Pedro. Para a elaboração do culto divino foi construído um oratório, benzido no dia 20 de novembro de 1803 pelo Padre Francisco da Costa Moreira, Visitador da Comarca. A benção ocorreu diante do pároco da aldeia Francisco das Chagas Lima e os indígenas e o oratório passou a denominar-se Igreja Matriz de São João de Queluz.
                  Todavia, o empreendimento estaria fadado, desde o início, ao fracasso, pois antes do “Auto de Posse”, dos 86 cativos, 34  morreram, 7 fugiram e 2 estavam trabalhando na casa de Domingos Gonçalves Leal. Ainda de acordo com Paulo Pereira dos Reis, o aldeamento forçado na redução, onde se destruíam  valores e costumes nativos transformavam os silvícolas “em homens sem iniciativa e sem vontade, eternos tutelados  num regime de paternalismo que os consideravam imaturos permanentes”. Um outro fator que contribuiu para a falência da aldeia foi a cobiça de antigos e novos moradores que desejavam explorar a sesmaria dos Puris, sempre repelidos pelo Padre  Chagas Lima. Porém o defensor dos índios foi transferido para Guarapuava a fim de catequizar outros indígenas e, em Queluz substituiu-o o Vigário Lourenço Marcondes de Sá a partir de 28 de fevereiro de 1805, o qual, no entanto, não possuía a mesma firmeza de seu antecessor. Para piorar a situação o Diretor da aldeia passou a induzir os índios a deixarem o local para facilitar a posse dos cobiçosos, no que foi energicamente desautorizado por Antônio José de Franca e Horta, então Governador da Capitania, através de ofício enviado ao novo Capitão-mor de Lorena, Manuel Domingues Salgueiro, em 30 de julho de 1806. A sorte dos índios estava lançada; em 1821, o governo autorizou os administradores arrendarem a sesmaria dos Puris, cedendo aos interesses dos colonizadores, principalmente os da Vila de Areias, emancipada de Lorena em 1816, e que passara a ter, então, jurisdição sobre a Freguesia de São João de Queluz. Em 1831 restavam somente seis Puris em Queluz: Bento, Antonia, Anacleto, Lourença, Gertrudes e Inês.
                   Entrementes, tudo alcançado o seu objetivo, que era o de se apossarem da sesmaria dos Puris, os colonos “civilizados” passam a exercer a administração de Queluz, por sua vez elevada à condição de Vila por lei provincial no dia 4 de março de 1842. Durante o episódio da Revolução Liberal do mesmo ano, Queluz seria desanexada da Província de São Paulo e incorporada temporariamente à do Rio de Janeiro, com o intuito de facilitar a repressão do Governo Central. O mesmo ocorreria com as demais cidades do hoje denominado Vale Histórico. Em 1860 ao passar em Queluz, o viajante português Augusto Emílio Zaluar conheceu aquela que seria a última Puri. Trata-se de Inês, citada anteriormente, e que já estava com 60 anos, sendo, portanto, uma das crianças trazidas da mata pelo velho Vuti. De acordo com Zaluar, Inês vivia nas imediações de Queluz com uma filha e quatro netos, todos mestiços e sobreviviam de esmolas e caridade dos moradores. O viajante havia  sido recebido em Queluz  pelo amigo Luís Dias Novaes, deputado provincial (estadual) que solicitara do governo uma verba no valor de 20:000$000 para a construção de uma ponte sobre o Paraíba. Afirma  Zaluar que como Queluz fora edificada em ambas as margens do Rio, a comunicação de um lado e de outro era feita “por uma elegante ponte de madeira que se acaba de terminar agora, construída à custa do governo de S. Paulo. Esta ponte substitui a rude piroga, ou canoa, em  que até aqui se costumava atravessar o rio”. Tal ponte a que se refere Zaluar foi dinamitada por ordem de Euclydes Figueiredo durante a retirada das forças paulistas na Revolução Constitucionalista de 1932, com a intenção de retardar o avanço das tropas legalistas de Getúlio Vargas. O mesmo destino tiveram as pontes de Lavrinhas e Cachoeira Paulista. Queluz é ocupada no final do dia 10 de agosto após intenso combate com os rebeldes paulistas, sendo bombardeada pela aviação de Vargas e canhões do Exército.
                  Atualmente Queluz, assim como as demais cidades do Vale Histórico, é uma excelente opção para turistas que desejem conhecer um pouco mais da cidade. Além da Igreja Matriz, há a casa em que morou Júlio César Mello e Souza, escritor famoso em todo o Brasil pelo pseudônimo de Malba Tahan, autor da obra valiosa “O homem que calculava”, utilizada até hoje em escolas de ensino primário. Outro escritor também famoso de Queluz era João Baptista Mello e Souza, irmão do primeiro. Devido ao passado cafeeiro, Queluz ainda possui fazendas deste áureo período: São José, Cascata, Bela Aurora, Sertão, Regato e Restauração. Assim como nas outras cidades como Bananal, Areias e Silveiras, Queluz merece atenção pelo conteúdo histórico e cultural e, vale a pena ser visitada, para podermos conhecer algo mais sobre a “Vila” dos Puris. Até a próxima.

                                                                                                   Eddy Carlos

Dicas para consulta.

ANDRADE, Antônio de.1932. Os deuses estavam com sede. Editora Stiliano, Lorena , 1997.

MAIA e MAIA, Thereza Regina de Camargo e Tom. O Passado ao Vivo. FDE. São Paulo, 1988.

MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos e Geográficos da       Província de São Paulo. Biblioteca Histórica Paulista. Vol.I. Livraria Martins Editora. São        Paulo, 1976.

MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba – São Paulo. IBGE. Rio de Janeiro, 1969.

REIS, Paulo Pereira dos. O indígena do Vale do Paraíba. Coleção Paulística. Vol. XVI. Imprensa Oficial. São Paulo, 1979.

ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Biblioteca  Histórica Paulista. Vol. II. Livraria Martins Editora. São Paulo, 1976.
  
          

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