Temos visto e acompanhado pelos
meios de comunicação a falta de água histórica, que se abateu na região do
Amazonas, com o Rio Negro, por exemplo, tendo abaixado seu nível em 13 metros.
O cenário tende a se tornar igual ao do Nordeste, no chamado “polígono das
secas”, em claro processo de desertificação, ambos causados pela ação
antrópica. Entre 2014 e 2015 foi a região Sudeste que havia passado pela
chamada crise hídrica. Devido a diversos fatores como desperdícios, alta no
consumo e às chuvas escassas daquela época, os níveis dos reservatórios foram
baixando cada vez mais, o que aumentou a possibilidade de um racionamento de
água ocorrer, principalmente na cidade de São Paulo. Tal não ocorreu, mas os
órgãos “competentes” chegaram a lançar mão de recursos como a utilização do
“volume morto” de um grande reservatório. Houve ainda a intenção de
transposição das águas do Rio Paraíba do Sul, para atender a imensa metrópole,
ideia rechaçada de imediato pelos governos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
A partir de 2016, no entanto, com novas e fortes chuvas, a situação no Sudeste
teve uma melhora significativa. Mas o caso do Amazonas, citado no início do
presente artigo é ainda mais preocupante, pois trata-se de um rio que é um dos
principais afluentes do Rio Amazonas, e não de um mero reservatório.
A questão é delicada, pois
sabemos que a água é a maior riqueza de que dispõe a humanidade. Apesar de o
planeta Terra ser composto de ¾ de água, a imensa parcela desse total é de água
salgada. E é justamente a ínfima parcela de água doce e potável que está se
escasseando. a pequena oferta ou a falta de água, acaba sendo motivo de
disputas políticas que, não raro, chega a causar conflitos armados. Na África,
na região do Saara, a água possui mais valor do que ouro e pedras preciosas.
Caravanas de beduínos, camelos e dromedários, percorrem om imenso deserto,
desde o oeste do Egito até o Marrocos, tendo o cuidado de não desperdiçar o
precioso líquido. Outras regiões desérticas, desprovidas de água, são os desertos,
do Arizona nos EUA, de Góbi, na China, além dos da Austrália e do Oriente
Médio. E, justamente, nessa região, em 1952, o governo de Israel decidiu
utilizar as águas do Rio Jordão, seviando seu curso, para a irrigação de suas
lavouras, provocando atritos com os árabes, aumentando a tensão existente desde 1948. Com a vitória na Guerra dos Seis
Dias, Israel ocupa as colinas de Golán, território sírio. Nestas, se destaca o
Monte Hermon, onde está localizada a nascente do mesmo Jordão.
Apesar de termos citado o
Brasil, no início deste relato, situado em uma região tropical, sempre houve
abundância de água no território. Além do Amazonas, rios bastante volumosos,
como o São Francisco, Tocantins, Araguaia, Madeira, Paraná, Guaíba e o próprio
Paraíba do Sul, garantiram a sobrevivência e o sustento de inúmeras comunidades
e, também, para as rotas comerciais. Por isso, desconhecemos, pelo menos até
então, conflitos armados envolvendo posse e controle de rios e lagos. Isso não
quer dizer que não tenha havido atritos; pequenas disputas entre particulares
são comuns e, em alguns casos, quando são solucionados pacificamente, a “lei do
mais forte” prevalece, ou são resolvidos na esfera jurídica. Há quase vinte
anos, por volta de 2004, quando o autor destas linhas realizava pesquisas para
um determinado estudo, tivemos acesso a um livreto, publicado em 1922,
referente a uma disputa judicial pelo
uso das águas de um córrego no Embaú, então Distrito do Município de Cruzeiro
(SP). O referido processo leva o nome de “Acção Negatória (Servidão de tomada
d’água)” e tramitou na Comarca de Cachoeira (hoje Cachoeira Paulista), visto
que, juridicamente, Cruzeiro estava subordinado à mesma. O cenário da “briga”
estava composto do citado córrego, denominado ”Rio Branco”, e as terras que
outrora faziam parte da Fazenda Rio Branco, então propriedade do Major Chrispim
Bastos. Os autores do mencionado processo foram Francisco de Godoy Fleming e
sua esposa, Minervina de Castro Fleming. Os réus foram José Lombardi e sua
esposa, cujo nome não é citado. Mas antes de prosseguirmos, analisemos
detalhadamente o ambiente dessa disputa.
A região do Embaú é servida, de
dois córregos, pequenos fluxos e vertentes de água, além do próprio Rio Embaú,
que desde 1934 divide os municípios de Cruzeiro e Cachoeira Paulista.
Erroneamente chamado de “Rio Piquete”, o mencionado rio se forma, na verdade,
na junção dos ribeirões Piquete e Jaracatiá. Com o nome de Rio Embaú se junta
ao Rio Passa-Vinte, no ponto em que é “barrado”, seguindo seu curso daí em
diante até a foz no Rio Paraíba. Os dois principais córregos do Embaú são o já
citado, Rio Branco e o Juqueta. Este possui um curso pequeno, tendo sua
nascente no morro do mesmo nome, onde atualmente está instalada uma subestação
das Furnas, atravessando os antigos terrenos da Fazenda Godoy, e fazendo a sua
junção com o primeiro nas dependências do Recanto da Glória, de propriedade dos
familiares do autor deste relato. O Rio Branco, por sua vez, é bem mais
extenso, tendo sua nascente no Município de Lorena. Atravessando áreas de
várzeas entre esta cidade e Cachoeira Paulista, o Rio Branco “passa” próximo
antiga sede da fazenda do mesmo nome (hoje demolida) e da antiga casa-sede de
Francisco de Godoy Fleming (esta reformada). Em seguida, acompanha o espaço
urbano do Embaú para entrar novamente em zona de várzea e, após se unir ao
“Juqueta”, desemboca no Rio Embaú, cerca de um quilômetro adiante. A despeito
da presença de uma estação de tratamento de esgotos no bairro, as águas do Rio
Branco estão poluídas, lamentavelmente.
A sede da Fazenda Rio Branco
estava situada a, aproximadamente, seis quilômetros do centro do Embaú (antigo
Largo). Desconhecemos o ano de sua construção, mas sabemos que datava do século
XIX, no período em que o Embaú era sede de município. Seu primeiro
proprietário, como já mencionado, foi o Major Chrispim Bastos, líder político
local e um dos primeiros dirigentes do atual Município de Cruzeiro. O solar de
Francisco de Godoy Fleming também características do século XIX e pode ser
observada a partir da Rodovia Christiano Alves da Rosa, que liga Cachoeira a
Piquete. Assim como o cunhado Chrispim, Francisco também teve atuação política
no Embaú, nos tempos da monarquia e nos primórdios da fase republicana. No
início da década de 1920, Francisco ainda tinha influência no então Distrito do
Embaú e foi nesse período que se envolveu na disputa judicial, cujo desfecho
“arranhou” seu prestígio.
Por volta de 1893, Jordão Pinto
de Castilho vendeu a Francisco José Gomes Serapião, conhecido pela alcunha de
“Velho Crispim”, uma área rural, denominada de “Chácara do Embahú”. Logo em
seguida, o novo proprietário instalou uma bomba hidráulica, conhecida como
“carneiro”, em um tanque construído para captar água, provavelmente, de uma
mina. Essa instalação foi necessária para bombear água para a casa em questão,
utilizando-se ainda um sistema de encanamento para o fluxo. De acordo com o
advogado dos réus, Dr. Manoel Ferraz de Camargo Júnior, ao instalar o sistema
hidráulico, Francisco Serapíão (Velho Crispim) estabeleceu a serventia, que não
mais se extinguiria, uma vez que a bomba funcionou plenamente durante todo o
tempo de vida do proprietário. Havia ainda um engenho com construções rústicas,
próximo da bomba, para uso da família de Francisco Serapião, que falece no dia
22 de setembro de 1915. Com a morte do proprietário a Chácara do Embahu foi
dividida, cabendo à viúva, Firmina Rosa Serapião, o terreno que continha a
casa-sede, que passa a ter a companhia do filho, Joaquim Serapião. Já a parte
que continha o engenho coube á herdeira Cândida Bastos, conhecida no Embaú como
“Candola” (ou “Nhá Candola”), casada, por sua vez, com o Major Chrispim Bastos.
Como já eram proprietários da Fazenda Rio Branco, o Chrispim e Candola vendem,
em meados de 1917, o terreno do engenho para Francisco de Godoy Fleming e a
esposa Minervina de Castro.
No dia 03 de maio de 1919,
Firmina Rosa Serapíão vende o terreno da Chácara do Embahú, contendo a antiga
casa-sede e todas as benfeitorias, incluindo a velha bomba hidráulica, para o
Corintho Chrispim de Souza. Este permanece por pouco tempo como proprietário da
referida chácara e faz uma permuta, entregando o imóvel como recebera, com o
Capitão Avelino Bastos. Em tese, a antiga propriedade do Velho Serapião, ainda
que dividida, ficaria por breve tempo em mãos de uma mesma família, pois
Chrispim Bastos e Avelino Bastos eram irmãos de Minervina de Castro Fleming.
Avelino residia na parte urbana do Embaú e tinha consciência da antiga
servidão. Conforme o Dr. Camargo, ele “não mexeu na installação e encanamentos
que levavam água a essa propriedade; no entretanto, como precisasse d’água em
sua casa da Villa do Embahú, assentou uma outra bomba próximo do local da
antiga e collocou outro encanamento para conduzir agua á sua residência da
Villa”. As novas instalações foram provisórias e não sofreram oposição de
ninguém; não interferindo nas antigas que haviam estabelecido a serventia. mais
tarde, segundo os autos do processo, a nova bomba foi removida por Manoel
bastos, filho de Avelino, que seguiu determinação do pai; mantendo intactas as
antigas instalações.
Em 19 de março de 1921, Avelino
Bastos vende a Chácara, com todas as benfeitorias, para José Lombardi. Este
deixou um filho residindo no local e reinstalou a bomba para impulsionar água.
As únicas alterações realizadas foram a substituição de um cano enferrujado e
uma estrutura de alvenaria, de pequeno porte, no exato local do antigo tanque,
construído pelo Velho Serapião, quase trinta anos antes. Após um mês de
funcionamento, segundo os autos do processo, Francisco de Godoy e Minervina
tentam impedir José Lombardi de usufruir da serventia. Inicialmente, Francisco
de Godoy envia ao vizinho “a absurda e deshumana proposta, (...), em a qual
queria que Lombardi só tivesse agua em horas em que elle Autor entendesse, ou
então ficasse Lombardi obrigado a usar agua polluida do córrego denominado Rio
Branco, cujas aguas recebem os exgottos da fazenda, que lhe fica à montante,
inclusive o despejo do watter closet dessa mesma fazenda”. Diante da recusa de
tal proposta, Francisco de Godoy entra com o processo da Acção Negatória contra
a família de José Lombardi.
Entretanto, logo no início do
processo, os autores começam a se complicar por falta de provas, depoimentos
controversos e pela perícia realizada no local. Conforme a descrição do
advogado de defesa, Francisco e Minervina, acusam José Lombardi de ter
arrancado a bomba, antes de ter comprado a propriedade, reinstalando-a depois.
Outro fato que foi destacado é que, na época do Velho Serapião, o terreno da
Chácara era dividido pela antiga estrada que ligava o Embaú a Lorena (antigo
caminho do Rio Branco). Diante disso, Francisco de Godoy alega que a captação
de água feita por Lombardi era ilegal e que o mesmo estaria violando o seu
domínio. Como no período a propriedade havia sido partilhada, os autores
alegavam também, que não haviam dois prédios, como argumentara a defesa.
Deixemos que o próprio Dr. Camargo afirme na sua tese o que estava ocorrendo.
Para ele, com “a sua conhecida habilidade, diz o advogado dos autores, e com
teimosia: ‘que ao tempo do Velho Serapião não existiam dois predios; e sim um
único’ (...) affirmamos a existencia de dois predios porque entendemos que
predio se chama ao sólo, terreno ou herdade; ora o terreno onde está o engenho
de canna pertence hoje aos Autores, e que fica abaixo da Estrada, que do Embahú
vae á Lorena; (...) o da Chacara, que fica situado, do lado de cima da estrada,
(...) era (...) inteiramente separado, do de baixo”. Além do mais, mesmo
estando registrado em uma só escritura, os terrenos eram, ambos, cercados com
arame farpado na época do Velho Serapião. Por isso, segundo a defesa
constituíam “dois prédios”. A defesa vai além, ao afirmar que, quer “fôsse um
predio, quer fossem dois, a servidão se constitue da mesma maneira; e si o ex
adverso insiste em sustentar o contrario, é porque lhe convem confundir
serventia com servidão”. No decorrer do processo, conforme a tese da defesa,
tanto Francisco de Godoy como seu advogado, se atrapalham diante de testemunhas
e laudos de perícia. Diante do juiz, o acusador acaba admitindo que teria se
confundido quanto a José Lombardi. Francisco de Godoy reconhece que a bomba
havia, de fato, sido instalada por Francisco José Gomes Serapião, e que a mesma
funcionou levando água para a Chácara, durante e após o período de vida do
antigo dono.
Sendo assim, diante de tal
confissão, a defesa, representada pelo Dr. Camargo, que já havia afirmado que
os autores do processo procederam de tal forma “por maldade ou por inveja se
lembraram de lhe negar direito a agua”, não necessita de mais provas. Mesmo que
se tratasse de pouca reserva hídrica, os acusadores ainda que explicassem não
poderiam negar a servidão. Uma das conclusões periciais afirma que “a agua que
corre pelo rêgo mestre não é muito abundante, sendo sufficiente para os gastos
do engenho dos Autores porque o bicame, que é muito antigo fica completamente
cheio”. Essa pouca abundância ocorria no período de estiagem e já era
suficiente, sendo de grandes proporções nas cheias. Dessa forma, a defesa
encerra a sua tese reafirmando a inocência de José Lombardi e sua esposa, os
quais foram vítimas de “um capricho e da raiva incontida dos Autores contra o
Réu”. O Dr. Camargo afirma ainda que o advogado dos acusadores, ao iniciar o
processo, “errou na diagnose, a acção dever-se-ia denominar ‘vingatoria’ e não
negatoria”.
Enfim, transcorrido o prazo
legal, o Juiz de Direito emite a sentença favorável aos réus. Vale a pena citar
um trecho da mesma, redigida por João Vieira de Barros Júnior, escrivão do 1º
Ofício da Comarca de Cachoeira. “Finalmente os Réos provaram perfeitamente a
sua defeza, provaram evidentemente a sua servidão. Os Autores não provaram o
seu pedido, não provaram a sua intenção. Pelo exposto e pelo mais que destes
autos consta. Julgo improcedente a presente acção e comdemno os autores a respeitarem
a servidão referida de tomada d’agua, do predio dos réos sobre o predio dos
mesmos autores, a indemnizarem os réos a não mais perturbarem os réos, no
exercício da servidão, e apagarem as custas. (...). Cachoeira, 15 de Maio de
1922”. O episódio que acabamos de narrar deveria servir de exemplo àqueles que
não respeitam o Direito alheio. Mas, há alguns que esquecem as lições da
História. Quase 80 anos depois, descendentes distantes de Francisco de Godoy
Fleming, por parte de um irmão deste, também moveram um processo judicial
contra seus vizinhos. Os motivos eram outros, mas o desfecho foi o mesmo que
foi impingido aos autores da Acção Negatória.
Referências.
COMARCA de Cachoeira. Acção Negatoria (Servidão de tomada d’agua). Cachoeira Paulista, 1922.
RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971.
RODRIGUES, Antônio da Gama. Gens Lorenesis. In: Revista Genealógica Brasileira. s/d.
SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo. Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015.
TOTA e
BASTOS, Antônio Pedro e Pedro Ivo de Assis. História Geral. Nova Cultural. São Paulo, 1994.