domingo, 5 de novembro de 2023

A Querela da Água.




 O solar de Francisco de Godoy Fleming em 2002; fotografia de autoria de Eddy Carlos.

                Temos visto e acompanhado pelos meios de comunicação a falta de água histórica, que se abateu na região do Amazonas, com o Rio Negro, por exemplo, tendo abaixado seu nível em 13 metros. O cenário tende a se tornar igual ao do Nordeste, no chamado “polígono das secas”, em claro processo de desertificação, ambos causados pela ação antrópica. Entre 2014 e 2015 foi a região Sudeste que havia passado pela chamada crise hídrica. Devido a diversos fatores como desperdícios, alta no consumo e às chuvas escassas daquela época, os níveis dos reservatórios foram baixando cada vez mais, o que aumentou a possibilidade de um racionamento de água ocorrer, principalmente na cidade de São Paulo. Tal não ocorreu, mas os órgãos “competentes” chegaram a lançar mão de recursos como a utilização do “volume morto” de um grande reservatório. Houve ainda a intenção de transposição das águas do Rio Paraíba do Sul, para atender a imensa metrópole, ideia rechaçada de imediato pelos governos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A partir de 2016, no entanto, com novas e fortes chuvas, a situação no Sudeste teve uma melhora significativa. Mas o caso do Amazonas, citado no início do presente artigo é ainda mais preocupante, pois trata-se de um rio que é um dos principais afluentes do Rio Amazonas, e não de um mero reservatório.

                A questão é delicada, pois sabemos que a água é a maior riqueza de que dispõe a humanidade. Apesar de o planeta Terra ser composto de ¾ de água, a imensa parcela desse total é de água salgada. E é justamente a ínfima parcela de água doce e potável que está se escasseando. a pequena oferta ou a falta de água, acaba sendo motivo de disputas políticas que, não raro, chega a causar conflitos armados. Na África, na região do Saara, a água possui mais valor do que ouro e pedras preciosas. Caravanas de beduínos, camelos e dromedários, percorrem om imenso deserto, desde o oeste do Egito até o Marrocos, tendo o cuidado de não desperdiçar o precioso líquido. Outras regiões desérticas, desprovidas de água, são os desertos, do Arizona nos EUA, de Góbi, na China, além dos da Austrália e do Oriente Médio. E, justamente, nessa região, em 1952, o governo de Israel decidiu utilizar as águas do Rio Jordão, seviando seu curso, para a irrigação de suas lavouras, provocando atritos com os árabes, aumentando a tensão existente  desde 1948. Com a vitória na Guerra dos Seis Dias, Israel ocupa as colinas de Golán, território sírio. Nestas, se destaca o Monte Hermon, onde está localizada a nascente do mesmo Jordão.

                Apesar de termos citado o Brasil, no início deste relato, situado em uma região tropical, sempre houve abundância de água no território. Além do Amazonas, rios bastante volumosos, como o São Francisco, Tocantins, Araguaia, Madeira, Paraná, Guaíba e o próprio Paraíba do Sul, garantiram a sobrevivência e o sustento de inúmeras comunidades e, também, para as rotas comerciais. Por isso, desconhecemos, pelo menos até então, conflitos armados envolvendo posse e controle de rios e lagos. Isso não quer dizer que não tenha havido atritos; pequenas disputas entre particulares são comuns e, em alguns casos, quando são solucionados pacificamente, a “lei do mais forte” prevalece, ou são resolvidos na esfera jurídica. Há quase vinte anos, por volta de 2004, quando o autor destas linhas realizava pesquisas para um determinado estudo, tivemos acesso a um livreto, publicado em 1922, referente  a uma disputa judicial pelo uso das águas de um córrego no Embaú, então Distrito do Município de Cruzeiro (SP). O referido processo leva o nome de “Acção Negatória (Servidão de tomada d’água)” e tramitou na Comarca de Cachoeira (hoje Cachoeira Paulista), visto que, juridicamente, Cruzeiro estava subordinado à mesma. O cenário da “briga” estava composto do citado córrego, denominado ”Rio Branco”, e as terras que outrora faziam parte da Fazenda Rio Branco, então propriedade do Major Chrispim Bastos. Os autores do mencionado processo foram Francisco de Godoy Fleming e sua esposa, Minervina de Castro Fleming. Os réus foram José Lombardi e sua esposa, cujo nome não é citado. Mas antes de prosseguirmos, analisemos detalhadamente o ambiente dessa disputa.

                A região do Embaú é servida, de dois córregos, pequenos fluxos e vertentes de água, além do próprio Rio Embaú, que desde 1934 divide os municípios de Cruzeiro e Cachoeira Paulista. Erroneamente chamado de “Rio Piquete”, o mencionado rio se forma, na verdade, na junção dos ribeirões Piquete e Jaracatiá. Com o nome de Rio Embaú se junta ao Rio Passa-Vinte, no ponto em que é “barrado”, seguindo seu curso daí em diante até a foz no Rio Paraíba. Os dois principais córregos do Embaú são o já citado, Rio Branco e o Juqueta. Este possui um curso pequeno, tendo sua nascente no morro do mesmo nome, onde atualmente está instalada uma subestação das Furnas, atravessando os antigos terrenos da Fazenda Godoy, e fazendo a sua junção com o primeiro nas dependências do Recanto da Glória, de propriedade dos familiares do autor deste relato. O Rio Branco, por sua vez, é bem mais extenso, tendo sua nascente no Município de Lorena. Atravessando áreas de várzeas entre esta cidade e Cachoeira Paulista, o Rio Branco “passa” próximo antiga sede da fazenda do mesmo nome (hoje demolida) e da antiga casa-sede de Francisco de Godoy Fleming (esta reformada). Em seguida, acompanha o espaço urbano do Embaú para entrar novamente em zona de várzea e, após se unir ao “Juqueta”, desemboca no Rio Embaú, cerca de um quilômetro adiante. A despeito da presença de uma estação de tratamento de esgotos no bairro, as águas do Rio Branco estão poluídas, lamentavelmente.  

                A sede da Fazenda Rio Branco estava situada a, aproximadamente, seis quilômetros do centro do Embaú (antigo Largo). Desconhecemos o ano de sua construção, mas sabemos que datava do século XIX, no período em que o Embaú era sede de município. Seu primeiro proprietário, como já mencionado, foi o Major Chrispim Bastos, líder político local e um dos primeiros dirigentes do atual Município de Cruzeiro. O solar de Francisco de Godoy Fleming também características do século XIX e pode ser observada a partir da Rodovia Christiano Alves da Rosa, que liga Cachoeira a Piquete. Assim como o cunhado Chrispim, Francisco também teve atuação política no Embaú, nos tempos da monarquia e nos primórdios da fase republicana. No início da década de 1920, Francisco ainda tinha influência no então Distrito do Embaú e foi nesse período que se envolveu na disputa judicial, cujo desfecho “arranhou” seu prestígio.

                Por volta de 1893, Jordão Pinto de Castilho vendeu a Francisco José Gomes Serapião, conhecido pela alcunha de “Velho Crispim”, uma área rural, denominada de “Chácara do Embahú”. Logo em seguida, o novo proprietário instalou uma bomba hidráulica, conhecida como “carneiro”, em um tanque construído para captar água, provavelmente, de uma mina. Essa instalação foi necessária para bombear água para a casa em questão, utilizando-se ainda um sistema de encanamento para o fluxo. De acordo com o advogado dos réus, Dr. Manoel Ferraz de Camargo Júnior, ao instalar o sistema hidráulico, Francisco Serapíão (Velho Crispim) estabeleceu a serventia, que não mais se extinguiria, uma vez que a bomba funcionou plenamente durante todo o tempo de vida do proprietário. Havia ainda um engenho com construções rústicas, próximo da bomba, para uso da família de Francisco Serapião, que falece no dia 22 de setembro de 1915. Com a morte do proprietário a Chácara do Embahu foi dividida, cabendo à viúva, Firmina Rosa Serapião, o terreno que continha a casa-sede, que passa a ter a companhia do filho, Joaquim Serapião. Já a parte que continha o engenho coube á herdeira Cândida Bastos, conhecida no Embaú como “Candola” (ou “Nhá Candola”), casada, por sua vez, com o Major Chrispim Bastos. Como já eram proprietários da Fazenda Rio Branco, o Chrispim e Candola vendem, em meados de 1917, o terreno do engenho para Francisco de Godoy Fleming e a esposa Minervina de Castro.  

                No dia 03 de maio de 1919, Firmina Rosa Serapíão vende o terreno da Chácara do Embahú, contendo a antiga casa-sede e todas as benfeitorias, incluindo a velha bomba hidráulica, para o Corintho Chrispim de Souza. Este permanece por pouco tempo como proprietário da referida chácara e faz uma permuta, entregando o imóvel como recebera, com o Capitão Avelino Bastos. Em tese, a antiga propriedade do Velho Serapião, ainda que dividida, ficaria por breve tempo em mãos de uma mesma família, pois Chrispim Bastos e Avelino Bastos eram irmãos de Minervina de Castro Fleming. Avelino residia na parte urbana do Embaú e tinha consciência da antiga servidão. Conforme o Dr. Camargo, ele “não mexeu na installação e encanamentos que levavam água a essa propriedade; no entretanto, como precisasse d’água em sua casa da Villa do Embahú, assentou uma outra bomba próximo do local da antiga e collocou outro encanamento para conduzir agua á sua residência da Villa”. As novas instalações foram provisórias e não sofreram oposição de ninguém; não interferindo nas antigas que haviam estabelecido a serventia. mais tarde, segundo os autos do processo, a nova bomba foi removida por Manoel bastos, filho de Avelino, que seguiu determinação do pai; mantendo intactas as antigas instalações.

                Em 19 de março de 1921, Avelino Bastos vende a Chácara, com todas as benfeitorias, para José Lombardi. Este deixou um filho residindo no local e reinstalou a bomba para impulsionar água. As únicas alterações realizadas foram a substituição de um cano enferrujado e uma estrutura de alvenaria, de pequeno porte, no exato local do antigo tanque, construído pelo Velho Serapião, quase trinta anos antes. Após um mês de funcionamento, segundo os autos do processo, Francisco de Godoy e Minervina tentam impedir José Lombardi de usufruir da serventia. Inicialmente, Francisco de Godoy envia ao vizinho “a absurda e deshumana proposta, (...), em a qual queria que Lombardi só tivesse agua em horas em que elle Autor entendesse, ou então ficasse Lombardi obrigado a usar agua polluida do córrego denominado Rio Branco, cujas aguas recebem os exgottos da fazenda, que lhe fica à montante, inclusive o despejo do watter closet dessa mesma fazenda”. Diante da recusa de tal proposta, Francisco de Godoy entra com o processo da Acção Negatória contra a família de José Lombardi.

                Entretanto, logo no início do processo, os autores começam a se complicar por falta de provas, depoimentos controversos e pela perícia realizada no local. Conforme a descrição do advogado de defesa, Francisco e Minervina, acusam José Lombardi de ter arrancado a bomba, antes de ter comprado a propriedade, reinstalando-a depois. Outro fato que foi destacado é que, na época do Velho Serapião, o terreno da Chácara era dividido pela antiga estrada que ligava o Embaú a Lorena (antigo caminho do Rio Branco). Diante disso, Francisco de Godoy alega que a captação de água feita por Lombardi era ilegal e que o mesmo estaria violando o seu domínio. Como no período a propriedade havia sido partilhada, os autores alegavam também, que não haviam dois prédios, como argumentara a defesa. Deixemos que o próprio Dr. Camargo afirme na sua tese o que estava ocorrendo. Para ele, com “a sua conhecida habilidade, diz o advogado dos autores, e com teimosia: ‘que ao tempo do Velho Serapião não existiam dois predios; e sim um único’ (...) affirmamos a existencia de dois predios porque entendemos que predio se chama ao sólo, terreno ou herdade; ora o terreno onde está o engenho de canna pertence hoje aos Autores, e que fica abaixo da Estrada, que do Embahú vae á Lorena; (...) o da Chacara, que fica situado, do lado de cima da estrada, (...) era (...) inteiramente separado, do de baixo”. Além do mais, mesmo estando registrado em uma só escritura, os terrenos eram, ambos, cercados com arame farpado na época do Velho Serapião. Por isso, segundo a defesa constituíam “dois prédios”. A defesa vai além, ao afirmar que, quer “fôsse um predio, quer fossem dois, a servidão se constitue da mesma maneira; e si o ex adverso insiste em sustentar o contrario, é porque lhe convem confundir serventia com servidão”. No decorrer do processo, conforme a tese da defesa, tanto Francisco de Godoy como seu advogado, se atrapalham diante de testemunhas e laudos de perícia. Diante do juiz, o acusador acaba admitindo que teria se confundido quanto a José Lombardi. Francisco de Godoy reconhece que a bomba havia, de fato, sido instalada por Francisco José Gomes Serapião, e que a mesma funcionou levando água para a Chácara, durante e após o período de vida do antigo dono.

                Sendo assim, diante de tal confissão, a defesa, representada pelo Dr. Camargo, que já havia afirmado que os autores do processo procederam de tal forma “por maldade ou por inveja se lembraram de lhe negar direito a agua”, não necessita de mais provas. Mesmo que se tratasse de pouca reserva hídrica, os acusadores ainda que explicassem não poderiam negar a servidão. Uma das conclusões periciais afirma que “a agua que corre pelo rêgo mestre não é muito abundante, sendo sufficiente para os gastos do engenho dos Autores porque o bicame, que é muito antigo fica completamente cheio”. Essa pouca abundância ocorria no período de estiagem e já era suficiente, sendo de grandes proporções nas cheias. Dessa forma, a defesa encerra a sua tese reafirmando a inocência de José Lombardi e sua esposa, os quais foram vítimas de “um capricho e da raiva incontida dos Autores contra o Réu”. O Dr. Camargo afirma ainda que o advogado dos acusadores, ao iniciar o processo, “errou na diagnose, a acção dever-se-ia denominar ‘vingatoria’ e não negatoria”.

                 Enfim, transcorrido o prazo legal, o Juiz de Direito emite a sentença favorável aos réus. Vale a pena citar um trecho da mesma, redigida por João Vieira de Barros Júnior, escrivão do 1º Ofício da Comarca de Cachoeira. “Finalmente os Réos provaram perfeitamente a sua defeza, provaram evidentemente a sua servidão. Os Autores não provaram o seu pedido, não provaram a sua intenção. Pelo exposto e pelo mais que destes autos consta. Julgo improcedente a presente acção e comdemno os autores a respeitarem a servidão referida de tomada d’agua, do predio dos réos sobre o predio dos mesmos autores, a indemnizarem os réos a não mais perturbarem os réos, no exercício da servidão, e apagarem as custas. (...). Cachoeira, 15 de Maio de 1922”. O episódio que acabamos de narrar deveria servir de exemplo àqueles que não respeitam o Direito alheio. Mas, há alguns que esquecem as lições da História. Quase 80 anos depois, descendentes distantes de Francisco de Godoy Fleming, por parte de um irmão deste, também moveram um processo judicial contra seus vizinhos. Os motivos eram outros, mas o desfecho foi o mesmo que foi impingido aos autores da Acção Negatória.    

 

 

Referências.

COMARCA de Cachoeira. Acção Negatoria (Servidão de tomada d’agua). Cachoeira Paulista, 1922. 

RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. 2 volumes. IHGSP. São Paulo, 1971. 

RODRIGUES, Antônio da Gama. Gens Lorenesis. In: Revista Genealógica Brasileira. s/d. 

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo. Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015. 

TOTA e BASTOS, Antônio Pedro e Pedro Ivo de Assis. História Geral. Nova Cultural. São Paulo, 1994.


 


terça-feira, 1 de agosto de 2023

O Preço da Liberdade.


                      Feitor açoitando cativo em alguma fazenda, em tela de Jean-Baptiste Debret.

                                              FONTE: www.aventurasnahistoria.com


      Bem sabemos que durante mais de três séculos, o Brasil, desde o domínio português, dependeu economicamente da mão-de-obra escrava de origem africana. Após a independência em 1822, a estrutura escravista foi mantida com todos os seus abusos e contradições por parte dos senhores e autoridades imperiais. O escravizado era nada mais que um capital investido que deveria render para seu senhor lucros cada vez mais altos e que a única diferença com os animais é que “conseguia falar”. Assim sendo, o direito do proprietário era inquestionável, estando o cativo a mercê de seu “dono” que o explorava e o castigava quando bem julgasse. Há inclusive relatos de inúmeras torturas e mutilações sofridas pelos cativos que para se livrarem de tais tormentos haviam duas alternativas: a fuga ou o suicídio. Quando optava pela primeira e era recapturado, na maioria das vezes após o castigo no tronco, era marcado a ferro com letra “F”, de “Fujão”, ou lhe aplicavam a gargalheira e demais artefatos que facilitasse a recaptura. Quando, no entanto, tentava por fim à vida e era mal sucedido corria o risco de ser processado pelo Estado, pois estaria atentando contra a propriedade de seu amo. Com a Lei Eusébio de Queirós de 1850, que proibiu o tráfico negreiro sob a imposição da Inglaterra, a situação só piorou para os cativos.

                  Todavia, quando o Senhor estava à beira da morte e temendo que sua alma fosse para o inferno, concedia-se a liberdade para alguns (ou às vezes todos) de seus escravos, através da carta de Alforria. Ocorria também, o fato de o escravo obter a alforria por lealdade e bons serviço (quando escravo doméstico, dentro da casa-grande) ou, muito raramente, através da bondade do proprietário. Entretanto, o Império, através da Lei nº. 2040 de 20 de setembro de 1870 instituiu outra forma para o escravizado alcançar sua liberdade, além da alforria. Tratando em assegurar os direitos dos escravistas, o Governo Imperial criou a indenização arbitrada no valor 600$000 (seiscentos mil réis) que o escravizado deveria amealhar para comprar a própria liberdade. Constituía-se assim um pecúlio que o cativo, através de doações, ganhos extras com trabalho nos poucos momentos de folga e, até mesmo da prostituição no caso das mulheres, utilizava para livrar-se do cativeiro. Só não era permitido, quando oriundo de furto ou roubo. Apesar do valor altíssimo para o escravizado, o governo dava as garantias, mas mesmo assim, por diversos motivos, alguns senhores recusavam-se a conceder a liberdade para aqueles que conseguissem completar a soma exigida. Temos um exemplo de tal procedimento, ocorrido em 1873, no então recém-criado Município de Cruzeiro, ou seja, no Embaú.

                  A Fazenda Boa Vista, integrava a referida Vila, quando esta se emancipou de Lorena; seu primeiro dono foi Antônio Dias Telles de Castro, casado com Fortunata Joaquina do Nascimento que, após enviuvar contrai novo matrimônio com Manoel de Freitas Novaes. Uma das escravas da Fazenda Boa Vista, de nome Rita teve um filho liberto cujo nome era Elizeo Telles de Castro, que, considerando a condição do jovem liberto, seria filho de Antônio Dias Telles de Castro com a referida escravizada. Como Fortunata, como já dissemos, contraiu núpcias com Manoel de Freitas Novaes, ambos passaram a ser proprietários da cativa, após a morte de Antônio. Mas em 1873, Elizeo, com o valor exigido pela lei de indenização, apresenta-se ao já nomeado Major Novaes e pede a liberdade de sua mãe, então com 40 anos de idade. Com a negativa de Major, Elizeo doa à mãe o valor necessário para ela mesma comprar sua liberdade, sem sucesso. Alegando possuir direitos intocáveis, além de não só cumprir o que a lei determinava, o referido Major Novaes passa a manter a cativa Rita acorrentada e sem alimentação, segundo a análise de Carlos Borromeu de Andrade.

                 Consequentemente, Elizeo Telles de Castro, devido a intransigência do Major Novaes, e auxiliado pelo advogado Manoel Thomaz Pinto Pacca, dá entrada na Ação de Liberdade no dia 02 de agosto de 1873, no cartório de João de Oliveira Évora, em Lorena. Ainda assim, o proprietário da Fazenda Boa Vista não cede e de acordo com o processo judicial, além de recusar qualquer tipo de acordo, passa a armar capangas para se “defender”. Porém, o referido processo é rápido e após alguns protestos e alegação da parte do réu, além da ameaça de invasão e ocupação da fazenda pela Milícia Provincial, para resgatar Rita, o Major Novaes somente recua por dois motivos. Logo após receber a patente de Major da Guarda Nacional, Manoel de Freitas Novaes, além de concorrer ao cargo de vereador para a Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora da Conceição do Cruzeiro, almejava também o titulo de Barão. Embora aconselhado por amigos e correligionários, demorou em perceber que sua imagem fora seriamente abalada pelo episódio, o que pode ter prejudicado a candidatura, pois não foi eleito. Coincidência ou não, o Império não lhe concedeu o titulo apesar da devoção do Major para com a monarquia. Entretanto, depois de nomeado como depositário da escrava Rita, o Sr. Joaquim Pinto Roza em 11 de agosto de 1873, o processo chega ao fim com sentença favorável para a cativa e seu filho Elizeo, no dia 27 de agosto de 1873. Analisemos na íntegra a referida da sentença: “julgo por sentença livre a liberdade da preta Rita, e mando incontinente se lhe passe a respectiva carta de Alforria, de conformidade com o disposto no parágrafo 2º. etc, etc., Ressalvo ao seu Senhor o direito de requerer em juízo competente o levantamento da quantia, porque foi a mesma depositada na collectoria de  rendas desta cidade de Lorena”. Infelizmente, não foi possível identificar o nome do Juiz que proferiu tal sentença, mas podemos notar que o mesmo garante, apesar de tudo, os direitos indenizatórios ao Major Novaes. A libertação total dos escravizados viria, afinal, em 1888 com a Lei Áurea. 

                                                                                    Eddy Carlos.      

 

 

Dicas para consulta. 

ANDRADE, Carlos Barromeu de. Os Pioneiros da História de Cruzeiro. Cadernos Culturais do Vale do Paraíba. CERED, São José dos Campos, 1994. 

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão do Brasil Meridional. DIFEL. São Paulo, 1962. 

COMARCA de Lorena. Ação de Liberdade da Escrava Rita. Lorena, 1873. Acervo do Museu Histórico e Pedagógico Major Novaes. Cruzeiro-SP.   

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. Coleção Ensaios. Ática. São Paulo, 1992. 

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982. 

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. O Mandonismo Político em Cruzeiro. Atuação Política do Major Novaes (1873-1898). Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil Republicano pela UNITAU. Taubaté, 2004.


quinta-feira, 13 de julho de 2023

O Registo de Itagyba.


                                   Vista panorâmica de Piquete no ano de 1906.

                 FONTE: Prefeitura Municipal de Piquete e Fundação Christiano Rosa. 


             Desde a segunda metade do século XVI, a Coroa portuguesa passa a enviar expedições oficiais com a função de reconhecer o território e explorar possíveis riquezas, como ouro e prata. Essas expedições ficaram conhecidas como Entradas e não podiam ultrapassar a Linha de Tordesilhas. Paralelamente, expedições não oficiais, conhecidas como Bandeiras, partiam da Vila de São Paulo, para capturar e escravizar indígenas, não se preocupando com a citada Linha de Tordesilhas. Assim, bandeirantes e demais aventureiros, no encalço dos silvícolas, seguiam o curso do Rio Paraíba pela margem direita até o chamado Porto da Cachoeira. Cruzando o rio continuavam em direção à Garganta do Embaú, de onde atingiam o Sertão dos Cataguases e a região das minas. Com a exploração aurífera, todo o tráfego de mercadorias e carregamentos do valioso metal, passou a se efetuar pela Estrada Real, onde seguiam o mesmo caminho, passando pelo povoado do Embaú até Guaratinguetá; daí seguindo por Cunha (antiga Facão) até Paraty. Ora, a atividade econômica impulsionada pelo ouro atiçava a cobiça de bandoleiros e garimpeiros que tentavam manter consigo o metal extraído sem pagar o imposto que a Coroa cobrava. Intensificando o contrabando, as autoridades portuguesas instalavam postos de fiscalização e cobrança ao longo de diversos caminhos. Na Estrada Real, o posto principal era o Registro da Mantiqueira, em território mineiro, onde atualmente é a cidade de Passa Quatro e ainda em atividade em 1822, conforme o viajante francês Saint-Hilaire.

             Entretanto, o quinto cobrado pelas autoridades coloniais, além de outros tributos exorbitantes, somente incentivava ao mencionado contrabando, o que fazia com que os fraudadores do erário procurassem outras rotas de fuga da fiscalização lusitana. Ao mesmo tempo, aumentava a concessão de sesmarias em terras valeparaibanas, então pertencentes à Vila de Guaratinguetá. Em 18 de novembro de 1733, a Coroa portuguesa concedeu uma sesmaria a Miguel Rodrigues de Morais no local denominado “Campinho”, havendo notícia, no entanto, de outros que foram beneficiados antes como Manuel Duarte Filgueiras, Manuel Fernandes Pinto e José Rodrigues Neves. Tais concessões foram em terras da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade e, no ano de 1741 o Capitão Lázaro Fernandes abriu um estreito caminho, ligando dessa forma a referida freguesia às  minas de Itagyba, atual cidade mineira de Itajubá. Como essa senda tornou-se uma alternativa irresistível para os contrabandistas de ouro e mercadorias, pois podiam fugir do controle do Registro da Mantiqueira, o governo luso determinou a instalação permanente de um piquete de milicianos e a formação de um novo posto de fiscalização. Embora instalado no lado paulista da Mantiqueira, bem ao pé da serra, em território da Vila de Guaratinguetá, esse posto ficou conhecido como o Registro de Itagyba, mais tarde apenas como “Registro”. Após a emancipação política da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade, o Registro passou a pertencer à Vila de Lorena em 1788.

             Conforme ocorrido com outras localidades, nas imediações do Registro, desenvolveu-se um  novo núcleo habitacional configurando então, um novo bairro, agora parte integrante da Vila de Lorena. Com a decadência das minas, o local passa a ser denominado por Registro Velho. Segundo o Prof. José Geraldo Evangelista, a Vila de Lorena dividia-se em oito companhias e, em 1801 o Registro Velho integrava a 7ª Companhia, juntamente com o Porto do Meira, o Campinho, o Embaú, o Passa Vinte e o Embaú Acima (Quilombo). Porém, o Registro iria exercer novamente a sua função militar durante a Revolução Liberal de 1842, quando o governo imperial deslocou um segundo piquete de cavalaria para impedir a união dos rebeldes paulistas com os rebeldes mineiros. Diante desse episódio formou-se o conceito equivocado de que o surgimento do povoado data de 1842. Prosseguindo então, com o crescimento do Registro, os moradores do local solicitam permissão para erigirem uma capela em 22 de fevereiro de 1865, sendo batizada com o nome de São Miguel. No dia 22 de março de 1875, através da Lei Provincial nº 10, o Registro Velho é elevado à condição de freguesia com o nome de São Miguel de Piquete, sob a esfera político-administrativa da Vila de Lorena. A capela solicitada, contudo, foi construída em terras de Custódio Vieira da Silva.

             O crescimento, ou melhor, o desenvolvimento da Freguesia do Piquete é constatado, através do conteúdo da Ata da Câmara de Lorena, de 01 de dezembro de 1885, citada pelo Prof. José Geraldo Evangelista. Na referida ata, o Presidente da Câmara, Major Joaquim Vieira Teixeira Pinto, solicita material escolar para os alunos das escolas da Freguesia do Piquete, sendo que desde 1878 já havia uma escola feminina. Em outro momento, o Barão da Bocaína, Francisco de Paula Vicente de Azevedo, pretendeu instalar uma linha de bonde e telégrafo de Lorena aos Campos do Buriqui, além da sugestão da mesma Câmara para a construção de um ramal ferroviário até o antigo Registro, o que indica que o local não estava ignorado.  No entanto, nem a linha de bondes e nem o ramal saíram do papel. Dessa forma, foi com surpresa que a Câmara Municipal de Lorena recebeu o comunicado do Governo Provisório Republicano de São Paulo, no qual sancionava o Decreto nº 166, de 17 de maio de 1891. No referido decreto, a freguesia, agora distrito era elevado a Município com o nome de Vila Vieira do Piquete sendo criado também o Conselho de Intendência, o que revoltou a edilidade lorenense. Apresentando argumentos contra a criação da nova Vila, a Câmara de Lorena foi derrotada com a rejeição, pelo Senado Estadual, do Projeto nº 39 que anulava o Decreto nº166. Consumada a emancipação, assume como primeiro Prefeito de Piquete o Major Carlos Augusto Alvim Taques Bittencourt , avô paterno da ex-vereadora de Cachoeira Paulista Adracir Fleming Bittencourt.

             Entrementes, na primeira década do século XX, Piquete vivenciou uma fase  de desenvolvimento e euforia devido à construção do tão sonhado ramal ferroviário e da instalação da indústria de material bélico do Exército. Tal ramal ligava Lorena a Fábrica de Pólvora Presidente Vargas, atualmente uma das unidades da Imbel, administrada pelo Exército Brasileiro. Aliás, a referida fábrica completou 114 anos de existência em 15 de março último, ao passo que o ramal de Benfica foi desativado em 1977. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, os rebeldes paulistas reforçaram o controle da região, instalando um posto de comando e, apoderando-se da citada fábrica de pólvora, vital para o esforço de guerra. Mais uma vez, o antigo Registro cumpre uma função militar, embora dessa vez em lado oposto, ou seja, de rebeldes contra o governo central. Em 11 de setembro de 1932, as forças legalistas de Vargas assumem o controle total da Mantiqueira, incluindo Piquete.

              Contudo, atualmente Piquete ainda vive em função da indústria bélica, mas busca no turismo, principalmente o ecológico, novas fontes de renda. O antigo Registro de Itagyba, hoje é conhecido como cidade-paisagem, devido à sua localização ao sopé da Serra da Mantiqueira.

                                                                              
                                                                                                Eddy Carlos.

 

 

 

 

Dicas para consulta.

DONATO, Hernani. A Revolução de 32. Círculo do Livro. São Paulo, 1982.

 

EVANGELISTA, José Geraldo. Lorena no século XIX. Coleção Paulística. Volume VII. Imprensa Oficial. São Paulo, 1978.

 

GABRIEL, Sônia. Mistérios do Vale. JAC Editora. São José dos Campos, 2006.

 

MÜLLER, Nice Lecocq. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba. IBGE. Rio de Janeiro, 1969.

 

REIS, Paulo Pereira dos. Lorena nos Séculos XVII e XVIII. Fundação Nacional do Tropeirismo. Centro Educacional Objetivo. CERED. Caçapava, 1988.

 

SOUZA VICENTE, Eddy Carlos. Uma Janela no Tempo: Os Godoy Fleming no Embaú. Editora Penalux. Guaratinguetá, 2015.


domingo, 9 de julho de 2023

Bracuhy.


            Navio Negreiro. Tela de Rugendas, de 1830. Fonte: www.aventurasnahistoria.com.br


                     A partir de 1530, Portugal inicia a colonização do Brasil, explorando a região para garantir lucros e riquezas para a Coroa e a nobreza lusitana. Durante quase 300 anos a Metrópole iria expropriar as riquezas naturais da colônia e as produzidas pelos habitantes. A exploração se daria de diversas formas desde a cobrança de impostos exorbitantes como o monopólio de algumas fontes de lucros como a mineração e o tráfico de escravos. Inicialmente tanto colonos como autoridades viram no indígena a mão-de-obra necessária para o sucesso da monocultura açucareira no Nordeste e para a agricultura de subsistência nas regiões que compunham as capitanias de Santo Amaro e São Vicente. Como a escravização dos índios era contra os princípios da Igreja que planejava catequizá-los e as constantes mortes dos mesmos nas plantações paulistas, a Coroa decide “protegê-los” proibindo o seu cativeiro. Na realidade, porém, Portugal defendia o seu monopólio no fornecimento de mão-de-obra que tinha sua fonte no território africano. Portanto, permitir que se escravizasse o índio, iria prejudicar o comércio de escravos vindos da África que custavam mais. E é assim que com a expansão da atividade da cana-de-açúcar que começa a vir para o Brasil levas e levas de milhares de cativos para o árduo trabalho nos canaviais do Nordeste, algodão, extração de ouro e diamantes em Minas Gerais e os cafezais do Vale do Paraíba fluminense e paulista, além das charqueadas gaúchas. Estima-se que aproximadamente 3.600.000 negros tenham vindo como escravos para o Brasil durante 300 anos e que nesse mesmo período tenham morrido 900.000 durante a longa viagem pelo Atlântico. O tráfico negreiro era um negócio altamente lucrativo para os traficantes, pois em uma única viagem, após pagar os direitos da Coroa portuguesa relativo ao monopólio, taxas da alfândega no Rio de Janeiro e Salvador e o dízimo da Igreja por cada “peça”, o lucro variava de 1.000 até 4.000%. Mesmo com os riscos de tempestades em alto-mar, ataque de piratas, etc, era uma atividade tentadora.
                       Todavia, com a Revolução Industrial e o advento da economia de mercado, a Inglaterra, que muito se beneficiara com a escravidão, decide extingui-la no dia 7 de julho de 1708. Alegando razões humanitárias e morais, os ingleses com sua Marinha decidem acabar com a escravidão em outras partes do mundo, o que na realidade era defender a garantia de venda de seus produtos industrializados, incompatíveis com o sistema escravista. Em 1808, após auxiliar Dom João VI a fugir de Napoleão e vir para o Brasil, a Inglaterra o pressiona a assinar vários tratados (nunca cumpridos) no sentido de reprimir o tráfico. Para o reconhecimento da Independência, os ingleses cobraram de Dom Pedro I a mesma atitude, que resultou no tratado de 1826 e mais tarde em 1830. É dessa época que vem a expressão “lei para inglês ver”, pois se assinava um acordo que nunca se cumpria. Também durante a Regência foram elaborados diversos tratados, até que a “paciência” inglesa acabou. Em 1845, o Parlamento inglês aprovou o “Bill Aberdeen”, um ato unilateral que autorizava a Marinha de guerra britânica a aprisionar qualquer navio negreiro, chamados de tumbeiros, em qualquer parte, inclusive em águas estrangeiras. A escravidão foi considerada pirataria e os traficantes estariam sujeitos aos tribunais ingleses, onde a pena para tal delito era a forca. Ainda assim, o Brasil ignorava as pressões e prosseguia com o tráfico. Porém após a captura de alguns tumbeiros no porto do Rio de Janeiro e a ameaça de guerra contra o Brasil, a Assembléia Geral do Império (equivalente ao Congresso Nacional) aprovou a Lei Eusébio de Queirós, no dia 4 de setembro de 1850. Essa lei, aprovada sob a mira dos canhões ingleses, enfim foi cumprida e o tráfico tornou-se ilegal, mas alguns ainda se arriscavam, pondo em risco em risco até seu prestígio, devido a alta margem de lucro. É o caso de alguns cafeicultores que se envolveram no episódio dos “africanos de Bracuhy”. Até aqui nos prolongamos no conceito do escravismo e do tráfico para que o leitor possa ter uma ampla noção do tema.
                     O nome “Bracuhy” está relacionado a uma espécie de árvore nativa, muito comum na época, em que a Mata Atlântica devia ser bem mais densa do que atualmente. Diz respeito também a um porto do mesmo nome existente em Angra dos Reis. Com o fim do tráfico, restava aos proprietários escravistas, adquirir “peças” em outras regiões, onde a monocultura estava decaindo como o Nordeste, reproduzir o seu plantel de escravos de forma natural ou arriscar-se ao contrabando, correndo o risco de ser capturado pelas belonaves inglesas ou pela fiscalização das autoridades brasileiras, complicando a sua reputação. No ano de 1853, um navio negreiro conseguiu fugir das canhoneiras britânicas, atracando no já mencionado porto do Bracuhy em Angra, descarregando a sua “carga”, eliminando assim a prova do ato ilícito. Diante dos protestos ingleses, as autoridades imperiais iniciam uma fiscalização nas imensas propriedades rurais ao longo do Vale do Paraíba. Mesmo sendo coniventes com os cafeicultores, as autoridades não queriam novo confronto com a Inglaterra e, encontram negros africanos recém-chegados nos cafezais de Manoel de Aguiar Vallim, Luciano José de Almeida e Joaquim José de Souza Breves, altos dignatários do Império, membros da Guarda Nacional e da política do Segundo Reinado e ilustres cidadãos. Com o escândalo, o governo imperial não tem outra alternativa,e abre um processo contra os três mencionados, incluindo mais tarde Pedro Ramos Nogueira, genro de Luciano José de Almeida. Os acusados diretamente como chefes do tráfico ilegal foram Vallim e Breves e a acusação para Luciano e Pedro Ramos recaiu apenas por terem comprado os africanos oriundos do contrabando. Levados a júri, foram, no entanto absolvidos, como já era de se esperar.
                    Entretanto, se não foram condenados, o pronunciamento por via judicial de titulares das maiores fortunas não só de Bananal, mas de todo o Império, pode indicar uma tentativa do governo de aplicar um castigo exemplar e moral, além de dar satisfações à Grã-Bretanha, que não tolerava infrações quanto à sua política humanitária”. Dom Pedro II queria pôr um freio forte que eliminasse de vez o contrabando, para não ter “dores de cabeça” com os ingleses. Mas apesar de saírem ilesos, o episódio abalou a imagem, sobretudo de Manoel de Aguiar Vallim. Joaquim José de Sousa Breves, já possuía títulos de nobreza do Império, Luciano José de Almeida ostentava o título de Comendador e faleceria em 1854 na Fazenda Boa Vista. O proprietário da Fazenda Resgate, porém almejava ostentar algum título nobiliárquico e apesar do caso em que se envolvera, não desistiu de seu intento, mas a pressa o prejudicou. Em 1859, Manoel de Aguiar Vallim propôs um donativo de 15:000$000 (quinze contos de réis) ao Hospício D. Pedro II, para obter o título de Barão do Bananal. A proposta enviada ao Marquês de Abrantes teve a seguinte resposta: “Não posso encarregar-me da pretensão da pessoa  de que  trata o memorial junto. À vista dos papéis existentes na Secretaria, relativos à questão Negreira do Bracuhy, e examinados por ocasião da pretensão idêntica d’ outra pessoa, foi-me insinuado que não propusesse indivíduo algum que tinha sido pronunciado naquela questão, embora despronunciado ou absolvido depois. Rio, 6 de março de 1859.”
                      A citação acima, extraída de uma obra sobre a Fazenda Resgate, mostra bem a posição do governo imperial sobre o caso e o Marquês de Abrantes é claro que apesar de inocentado Vallim não era digno de merecer o título a que aspirava. Ele, porém, se precipitou, pois em 1859, o escândalo do Bracuhy, ainda estava “fresco” na opinião pública, poderia aguardar um pouco mais como fez Pedro Ramos Nogueira. Em 1877, Pedro Ramos solicitou e obteve o título de Barão da Joatinga, 24 anos após ter sido indiciado no caso do Bracuhy. Quanto a Manoel de Aguiar Vallim, o Império iria lhe conferir o título de Comendador após sua morte, ocorrida em 1878 na Fazenda Resgate.                                                
 
                                                                                                      Eddy Carlos. 
 
 
Dicas para consulta.
CASTRO E SCHNOOR, Hebe Maria Mattos de e Eduardo. Resgate. Uma Janela para o Oitocentos.  Topbooks. Rio de Janeiro, 1995. 

LANNA, Ana Lúcia Duarte. Revoltos da Senzala. Ática. São Paulo, 1997. 

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Publifolha. São Paulo, 1999. 

PEREGALLI, Enrique. Escravidão no Brasil. Global Editora. São Paulo, 1988.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Uma Janela no Tempo. Os Godoy Fleming no Embaú.


                                                     O solar dos Godoy por volta de 1915. 

                             Acervo histórico-documental do Recanto da Glória/Prof. Eddy Carlos.


https://drive.google.com/file/d/14Pdj1-QWbWEewBJgJt7hznL0aEFa3Noh/view?usp=share_link

domingo, 18 de setembro de 2022

Às Margens do Ipiranga; há 200 anos.


     Independência ou Morte, de Pedro Américo, 1888. Fonte: www.aventurasnahistoria.com


               Aprendemos nos bancos escolares que o Brasil se tornou independente no dia 07 de setembro de 1822, quando Dom Pedro I decide romper com Portugal. Chegava ao fim três séculos de dominação colonial praticada por um país europeu. Mas em que circunstâncias isso ocorreu? Quais as razões que levaram o príncipe a libertar o Brasil do jugo colonial, embora isso representasse uma afronta ao próprio pai, o Rei Dom João VI? Retrocedemos no tempo.
               No contexto das guerras napoleônicas, o imperador dos franceses praticamente “varreu” a Europa, invadindo reinos e impérios rivais, destronando reis e colocando no lugar destes, membros de sua família. Como não conseguiu dominar a Inglaterra, Napoleão decreta em 1806 o Bloqueio Continental, o qual proibia qualquer país de comercializar com os ingleses, sob ameaça de invasão, em caso de desobediência. O objetivo era enfraquecer a economia britânica. E justamente quem dependia diretamente da Inglaterra era o Reino de Portugal, “amarrado” desde 1703 pelo Tratado de Methuen. Governava o reino lusitano desde 1799, o Príncipe Regente Dom João, no lugar de sua mãe, a Rainha Dona Maria I, conhecida como “a Louca”.
              Quando o Bloqueio Continental é decretado, Portugal se vê “entre a cruz e a espada”. Dom João sabia que se recusasse a acatar a ordem de Napoleão, o reino seria invadido pelas tropas francesas. E se obedecesse já tinha sido avisado de que a invasão seria pela Inglaterra. A solução “brilhante” foi a fuga da Família Real para o Brasil, então uma mera colônia portuguesa que começa a ser preparada. O monarca ainda tentou “ganhar tempo”, mas Napoleão percebendo certa manobra ordena que o General Andoche Junot, já estacionado em território espanhol, iniciasse a invasão de Portugal no início de novembro de 1807. Abandonando seu próprio povo, Dom João e toda a Corte embarcam no dia 27 de novembro de 1807, mas só podem zarpar no dia 29, devido ao mau tempo. Partem escoltados pela Armada Real Britânica, enquanto que no mesmo instante, as forças de Junot ocupavam Lisboa e a Torre de Belém. No dia 22 de janeiro de 1808, a comitiva lusitana chega a Salvador, permanecendo alguns dias; depois o destino seria o Rio de Janeiro, onde desembarca no dia 08 de março. Logo em seguida assina decretos que iriam beneficiar a Inglaterra, como a Abertura dos Portos às Nações Amigas (1808) e o Tratado de Comércio e Navegação (1810).
               Com a derrota de Bonaparte em 1815 na Europa, acontece o Congresso de Viena na Europa, que buscava restabelecer o Antigo Regime, preconizando que os reis depostos na era napoleônica voltassem a seus respectivos tronos, em seus respectivos reinos. Laurentino Gomes afirma que Dom João não pretendia voltar à Europa e no mesmo ano eleva o Brasil à condição de reino, criando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Assim, a capital passa a ser o Rio de Janeiro e não mais Lisboa. No ano seguinte, com a morte da Rainha Dona Maria I, sua mãe, ele é coroado rei do referido Reino Unido.
                Entretanto, depois de permanecer por 13 anos no Brasil, Dom João se vê obrigado a retornar ao Velho Mundo. Em 1820 ocorre a Revolução do Porto, de caráter liberal, na qual se instala um governo controlado pelas chamadas Cortes de Lisboa. Tal governo exige a volta do monarca, que teria que jurar uma Constituição, e a recondução do Brasil à mera condição de colônia. Embora relutasse, o rei decide partir, o que acontece no dia 25 de abril de 1821, deixando no Rio de Janeiro o filho Pedro como Príncipe Regente. Na ocasião teria dito a Pedro que se “o Brasil se separar, antes que seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. O rei parecia estar prevendo o que viria em breve. Desde sua chegada aos trópicos em 1808, além do fim do Pacto Colonial, o Brasil passou por transformações, sendo que as elites aqui constituídas se beneficiaram, e muito, com a presença da Família Real na antiga colônia. A partida do monarca para Portugal, como as Cortes exigiram, significava que o retrocesso seria inevitável. Porém, com a permanência do jovem príncipe, havia a possibilidade de as elites, agrárias e escravocratas, manterem seus privilégios; mesmo que fosse preciso uma ruptura com a antiga Metrópole. Vale lembrar que, nesse meio tempo o Brasil já não era mais colônia. Para alguns pesquisadores o ano de 1815 seria de fato a independência, enquanto que o “grito“ do Ipiranga apenas oficializou uma ruptura com Portugal.   
                Pois bem, uma vez de volta a Lisboa, o rei não consegue evitar as medidas das Cortes. Conforme registra Eduardo Bueno, pelas “novas regras do jogo, o Brasil (...) perdia seus privilégios e teria que voltar a se submeter inteiramente ao governo da metrópole”, o que ia contra os interesses das elites dos trópicos. Por sua vez, o Príncipe Regente é pressionado a também voltar para Portugal, ao mesmo tempo em que é instado pelas elites locais a permanecer no Brasil. Em 09 de janeiro de 1822, ele resolve ficar, atendendo aos “apelos” do povo, no que ficou conhecido como o Dia do Fico. Com isso, a independência de fato era uma questão de tempo, pois as Cortes decidem “apertar” o laço. Em seguida, Dom Pedro organiza um ministério, que é liderado por José Bonifácio de Andrada e Silva, que ficou conhecido como o Patriarca da Independência. No dia 01 de agosto de 1822, o príncipe declara que soldados enviados por Portugal sem o seu consentimento, seriam tratados como inimigos no Brasil, em uma clara demonstração de força e autoridade.
                Todavia, nem todas as regiões do Brasil concordavam com o príncipe. Uma delas era a Província de São Paulo, onde as autoridades locais, inicialmente leais a Dom Pedro, aos poucos decidem se sujeitar às Cortes de Lisboa. Governava a Província o General João Carlos Augusto de Oyenhausen, que começa a contestar a influência de José Bonifácio junto a Dom Pedro. O irmão de Bonifácio, Martim Francisco de Andrada ocupava o cargo de Secretário do Interior e da Fazenda desde 21 de junho de 1821 e tanto Oyenhausen como o Coronel Francisco Ignácio de Souza Queiroz e o Ouvidor José da Costa Carvalho, tramavam sua deposição. Este recorre ao irmão e José Bonifácio envia um ofício para Oyenhausen, no dia 21 de maio de 1822, ordenando que entregasse o cargo para Martim e seguisse imediatamente para o Rio de Janeiro. Dois dias depois, desobedecendo ao ofício o General Oyenhausen se posiciona contra Dom Pedro, depondo do cargo Martim Francisco e convocando a tropa, em uma clara demonstração de rebeldia e insubordinação.    
                 Entrementes, para contornar a crise, Dom Pedro decide viajar até a Vila de São Paulo, partindo do Rio de Janeiro no dia 14 de agosto de 1822, nomeando sua esposa, a Princesa Leopoldina de Habsburgo, como regente em seu lugar. O saudoso historiador José Luiz Pasin define a viagem como a Jornada da Independência, a qual é feita pela Estrada Geral (atual Estrada Velha Rio-São Paulo), ao longo do Vale do Paraíba. Nas vilas por onde passa alguns apoiadores (membros das elites) o acompanham até São Paulo e iria mais tarde constituir a sua Guarda de Honra. Ao partir da Corte o príncipe está acompanhado de Eleutério Velho Bezerra e Antônio Luiz da Cunha. Na Vila de São João Marcos a comitiva é incorporada por Cassiano Gomes Nogueira, Floriano de Sá Rios e Joaquim José de Souza Breves. Em Resende entram no grupo Antônio Pereira leite, o Sargento-Mor Antônio Ramos Cordeiro, José da Rocha Corrêa e David Gomes Jardim. Adentrando o vale paulista, a comitiva real recebe a inclusão do Sargento-Mor João Ferreira de Souza, na Vila de Areias. Na Vila de Guaratinguetá decide acompanhá-lo João Monteiro dos Santos e Custódio Lemes Barbosa. A Vila de Pindamonhangaba “forneceu” o maior número de acompanhantes de Dom Pedro. Foram integrados o Capitão-Mor Manoel Marcondes de Oliveira Mello, o Sargento-Mor Domingos Marcondes de Andrade, o Tenente Francisco Bueno Garcia Leme, Miguel de Godoy Moreira e Costa, Manoel de Godoy Moreira, Manoel Ribeiro do Amaral, Antônio Marcondes Homem de Mello e Benedito Corrêa Salgado. Na Vila de Taubaté foi a vez de se juntar ao grupo Francisco Xavier de Almeida, Vicente da Costa Braga, Fernando Gomes Nogueira, João José Lopes, Rodrigo Gomes Vieira e Bento Vieira de Moura. Apesar de não ter passado pela Vila de Paraibuna, um morador do referido município se junta à comitiva, Flávio Antônio de Mello, que provavelmente estava no itinerário do príncipe. E em Mogi das Cruzes se junta ao grupo Salvador Leite Ferraz.           
                No dia 25 de agosto Dom Pedro chega a São Paulo, sendo recebido com júbilo. Restabelecendo sua autoridade os implicados na sedição são presos e remetidos para o Rio de Janeiro, além de reorganizar o governo e a administração na sede da província. E é em São Paulo que o príncipe conhece Domitila de Castro Canto Melo (futura Marquesa de Santos) e logo a seguir ambos iniciam o famoso caso extraconjugal. Paralelamente, no Rio de Janeiro, a Princesa Leopoldina recebe, no dia 02 de setembro, correspondências oficiais de Lisboa; em uma delas constava a ordem de prisão de Dom Pedro e seu retorno coercitivo a Portugal. Ao lê-las ela decide reunir o Conselho de Estado (o ministério) e enviar mensageiros no encalço de Pedro. Entre 05 e 06 de setembro, o príncipe estava na cidade Santos tratando de outros assuntos e retorna a São Paulo, chegando no dia 07, encontrando os emissários de Leopoldina próximos ao Riacho do Ipiranga. Além da mensagem da esposa, chega também uma carta de José Bonifácio, alertando-o de que nada mais de positivo poderia esperar de Portugal. O episódio a seguir já é conhecido. Ao tomar conhecimento das ordens das Cortes, saca da espada e dá o famoso grito, declarando a independência; momento eternizado por Pedro Américo no famoso quadro “Independência ou Morte”, de 1888. A obra, que ilustra inúmeros livros didáticos, é uma criação do artista, mas que foi incorporada pela historiografia oficial. A historiografia crítica descreve o cenário bem diferente do que foi retratado pelo pintor. Por exemplo, a Guarda de Honra com seus uniformes exuberantes, só seria criada oficialmente em outubro de 1822. Outro detalhe, o príncipe não montava um cavalo branco e sim uma mula baia. Em outro aspecto, conforme a narrativa de Eduardo Bueno, após consumir algo que não lhe caiu bem, em Santos, o Príncipe Regente estava “à beira do córrego, ‘quebrando o corpo’ ---agachado para ‘responder a mais um chamado da natureza’”. Ou seja, Dom Pedro estava com uma diarreia daquelas, o que talvez contribuísse para o péssimo humor e a ira ao ler as cartas recebidas. Obviamente nenhum livro didático de História menciona tal cenário, que não “combina” com a imagem de Sua Alteza Real. Retornando à Corte a missão é se preparar para organizar o país, agora livre, para enfrentar a reação de Portugal. Mas, já no início as contradições afloram; a principal delas talvez seja a manutenção da escravidão como sistema econômico, que só se encerraria em 1888, cujos efeitos vivenciamos até os dias atuais.
                Contudo, apesar de independente, o novo Estado continuava a ser governado por um Bragança, sendo que Dom Pedro continuava como herdeiro do trono português. Mais tarde, esse fato iria lhe causar problemas por aqui, principalmente após a morte de Dom João VI em 1826. No dia 01 de dezembro de 1822, o libertador da pátria é coroado como Imperador do Brasil, com o nome de Dom Pedro I; cena que foi reproduzida por Jean-Baptiste Debret. Mas, o que a historiografia oficial omite é que a decisão pela independência do Brasil, há 200 anos, partiu de uma mulher, a Princesa Leopoldina. Após a coroação o próximo passo era elaborar uma Constituição para a jovem nação; mas isso é outra história.
 
                                                                                        Prof. Eddy Carlos.


 
 
Referências.
BUENO, Eduardo (Org.). História do Brasil. Os 500 anos do país em uma obra completa, ilustrada e atualizada. PubliFolha. São Paulo, 1997.
 
GOMES, Laurentino. 1808. Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Editora Planeta. São Paulo, 2007.
 
_________________. 1822. Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2014.
 
MACAULAY, Neill. Dom Pedro I. A Luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal; 1798-1834. Editora Record. Rio de Janeiro, 1986.
 
PASIN, José Luiz. A Jornada da Independência. Editora Vale Livros. Aparecida, 2004.


domingo, 12 de dezembro de 2021

Onde o Saber está em Profusão; há 50 anos.


                       Fachada da E.M.E.F. Profa. Ana Berling Macedo, por volta de 2015.

                                 FONTE: Facebook/Escola Ana Berling Macedo.

             De todos os seres viventes na Terra, o homem é, conforme inúmeros cientistas, como Charles Darwin em particular, a única espécie que possui o dom da razão, tendo plena consciência de sua existência. Ao longo de milhares de anos, a humanidade passou por várias etapas do processo de evolução até chegar ao Homo sapiens sapiens. Mas é, somente com o surgimento das primeiras aldeias e cidades, já com um mínimo de organização político-administrativa, que aparecem os primeiros estabelecimentos de aprendizagem, os quais denominamos de escolas. O exemplo mais clássico é, sem dúvida, o da Grécia Antiga, que passando por várias adaptações, ou transformações, ao longo dos séculos, chegou até nós. Já predominante entre as elites, o modelo de escola veio para o Brasil trazido pelos conquistadores lusitanos. Mas, estando sob a responsabilidade dos padres da Companhia de Jesus, foi ministrado às crianças indígenas, compulsoriamente, nas missões coloniais.

                Porém, com a expulsão dos inacianos em 1759, pelo Marquês de Pombal, o estado português assume a responsabilidade do ensino no Reino e nas colônias do Ultramar, incluindo o Brasil. Com a criação das Escolas Régias, o ensino passa a ser aplicado quase que exclusivamente aos filhos das elites. A situação não se altera com a independência, permanecendo assim ao longo do período imperial. Com o advento da República, houve expectativa de mudanças, o que ocorreu somente com a supressão do ensino religioso, após a separação entre Igreja e Estado, sacramentada com a Constituição de 1891. No entanto, após a chegada de Getúlio Vargas ao poder, pelas armas tenentistas da Revolução de 1930, algumas transformações ocorrem, ainda que tímidas inicialmente. Com o Estado Novo, a partir de 1937, há uma abertura mais ampla, onde preconizava-se o valor da Educação para a “grandeza” da Pátria. Não é para todos obviamente, mas um leque de oportunidades se abre, priorizando o ensino profissionalizante, refletido na criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), em 1942. A intenção era capacitar profissionalmente operários para as indústrias no Brasil, então necessitadas de profissionais qualificados. No Estado de São Paulo, o mais industrializado e desenvolvido economicamente, a implantação do SENAI atendeu aos objetivos almejados. Paralelamente, o sistema educacional público passou por várias reformas, através de Leis de Diretrizes e Bases (LDBs), que conseguiram avançar de forma significativa, a qualidade da Educação, entre 1960 e 1964, quando o Presidente João Goulart é deposto, através de um golpe cívico-militar.

                Com os militares no poder ocorrem retrocessos na Educação, apesar da criação da LDB de 1971, que delegou aos municípios, que dispusessem de recursos próprios, a prerrogativa de assumirem parte da Educação básica. A mencionada LDB reestruturou a Educação no Brasil, dividindo-a em graus. O Primeiro Grau ficou composto de oito séries (1ª a 8ª); o Segundo Grau de três (1ª a 3ª); e o Terceiro Grau contemplava as faculdades e universidades. Nos casos das cidades sem condições fiscais necessárias, o ensino continuava a ser responsabilidade dos governos estaduais. Em São José dos Campos, o então Prefeito Sérgio Sobral de Oliveira, determinou a criação de escolas municipais, no início da década de 1970. Uma delas foi a Escola Municipal do Alto da Ponte, bairro da zona Norte que já contava com uma escola estadual (atual E. E. Francisco João Leme). Uma área, próxima à confluência dos rios Buquira e Paraíba, onde havia sido desativado um matadouro, foi a escolhida pela prefeitura para a construção da nova unidade escolar no bairro.

                Até meados da década de 1980, o Alto da Ponte, junto com Santana e outros bairros, eram considerados como uma “extensão” do território mineiro, devido á forte influência de pessoas oriundas do Estado vizinho. A existência de duas escolas no local não alteraria muito as características bucólicas, mas significava uma oportunidade de estudos para as crianças, inclusive da zona rural. Antes, contando somente com a escola estadual, que não comportava um determinado número de alunos, a opção eram as escolas de Santana ou da região central, o que não era garantia de vagas. Havia ainda a precariedade do transporte público, que nem sempre atendia a área rural. Assim, através do Decreto nº 1.368/71, de 07 de janeiro de 1971, assinado pelo Prefeito Sobral, é criada a Escola Municipal do Alto da Ponte. No mesmo decreto consta a criação de outras escolas municipais da zona Norte; nos bairros do Buquirinha e do Jaguary. Devemos, contudo, frisar que na época, apesar do “direito á Educação”, esta era relativa, pois não era para todos, pois era necessária a comprovação de “extrema” necessidade para conseguir uma matrícula, o que fazia com que muitos não usufruíam de algo que sempre deveria ser um Direito.

                Quatro anos mais tarde, o Executivo municipal emite outro decreto, alterando o nome da escola. Com tal decreto, de número 1.890/75, assinado pelo Prefeito Ednardo José de Paula Santos, em 21 de outubro de 1975, a Escola Municipal do Alto da Ponte passa a ser denominada de “Escola Municipal de 1º grau do Alto da Ponte”. A alteração foi publicada no Boletim do Município, nº 160, do dia 30 de outubro de 1975. Na íntegra deste segundo decreto não consta os nomes das escolas do Jaguary e do Buquirinha, o que nos leva a supor que ambas tenham sido desativadas. Concomitantemente, podemos observar que o município, agora em plena fase de expansão industrial, começa a ampliar sua atuação na Educação, a despeito das duas escolas mencionadas. Enquanto que outras cidades valeparaibanas ainda dependiam do Governo do Estado, São José dos Campos já representava um diferencial, ficando atrás somente de Taubaté, então a Capital do Vale. Na administração seguinte, de Joaquim Bevilacqua, a escola é “rebatizada” novamente, agora homenageando uma ilustre professora. Com o Decreto nº 2.840/79, de 21 de fevereiro de 1979, a E.M.P.G. do Alto da Ponte passa a ser denominada de “Escola Municipal de 1º grau Profª Ana Berling Macedo”. O decreto em questão foi publicado na edição de nº 217, do Boletim do Município, do dia 27 de março de 1979. Na íntegra do documento oficial, o chefe do Executivo destaca que a alteração tinha como objetivo

                 Decreto nº 1.368/71. FONTE: Acervo Central. SEC/PMSJC.  

                         Decreto nº 1.890/75. FONTE: Arquivo Central. SEC/PMSJC.

                        Decreto nº 2.840/79. FONTE: Arquivo Central. SEC/PMSJC.

“perpetuar, de maneira indelével, o nome de ilustres mestres, reconhecendo-se desta forma o amor e dedicação com que se empenharam em tal mister”. (Decreto nº 2.810/79). A professora Ana Berling Macedo nasceu em São José dos Campos no dia 01 de junho de 1886; filha de Bárbara Berling e Francisco Berling. Completou sua formação e especialização no Curso Normal da Escola Caetano de Campos, em São Paulo, no dia 28 de novembro de 1904. Entre os anos de 1905 e 1910, lecionou no então Grupo Escolar Olímpio Catão. Faleceu em São José dos Campos, no dia 28 de novembro de 1964.

               Entrementes, nas décadas de 1970 e 1980, uma prática comum que havia nas escolas, incluindo na “Ana Berling”, era o incentivo aos alunos, dos cuidados com a horta, que integrava parte da merenda escolar; algo que não se observa mais. Ainda durante a gestão Bevilacqua, atendendo a uma determinação do Conselho Estadual de Educação, a Prefeitura Municipal cria (ou recria) as Escolas Municipais, para que as mesmas fossem “reconhecidas” pelo Governo do Estado de São Paulo. Com isso, através do Decreto nº 3.344/80, de 18 de junho de 1980, as dez escolas existentes na época são “oficializadas”, ou regularizadas; entre elas a Escola Municipal de Primeiro Grau “Profª Ana Berling Macedo”. Pouco mais de um mês, no dia 27 de julho de 1980 (aniversário da cidade), em solenidade oficial na escola, o Prefeito Bevilacqua inaugura  a “Oficina de Artes Industriais da E.M.P.G. Profª Ana Berling Macedo”. O empreendimento representava um alinhamento entre o ensino público e o profissionalizante. Na placa fixada no prédio da referida oficina, atualmente desativada, consta o nome do Prof. Nereu da Silva Rocha, como padrinho da obra; era também o Diretor da escola Senai Santos Dumont, de Santana  naquela época. Outro nome de destaque é o de Gargione Baptista Filho, então Diretor do Departamento de Educação do município, que mais tarde seria o reitor da FVE/UNIVAP. Outrossim, também na década de 1980, foi implantado na escola Ana Berling, o Ensino Supletivo Noturno, configurando como uma oportunidade para as pessoas adultas que, por um motivo ou outro, não puderam concluir os estudos durante a fase regular.

                No âmbito nacional, a década de 1980 no Brasil representou um período conturbado, representado principalmente pela campanha das “Diretas Já” e a derrocada do Governo Militar  



                          Decreto nº 3.344/80. FONTE: Arquivo Central. SEC/PMSJC.


           A professora Ana Berling Macedo, patronese da escola que leva seu nome. 

                  FONTE: Acervo Patrimonial da EMEF Profa. Ana Berling Macedo. 


                               Placa de inauguração da oficina de Artes Industriais.

                                 Fotografia de Eddy Carlos Souza Vicente (2021).

que chega ao fim em 1985, com a posse de José Sarney como presidente da República, no lugar de Tancredo Neves, que apesar de eleito, adoeceu, falecendo em abril do mesmo ano. Um dos maiores compromissos da classe política foi o de redigir uma nova Constituição para o Brasil. Em 1988, o Congresso Nacional promulga a “Constitução Cidadã”, que entre vários atributos, dá à Educação um destaque nunca antes ocorrido. Segundo o Prof. Luiz Araújo, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (Unb), na Carta Magna, o capítulo “da Educação tem como principal conceito o de que era dever do Estado oferecer o direito à Educação.  A lógica da Constituinte era a seguinte: mesmo que seja permitido que se tenha uma escola privada, todos têm direito a uma escola pública. A Constituição também modificou e reestruturou as três etapas do Ensino, incluindo o Infantil e o Médio.

                Contudo, foi somente com a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, é que as três passaram a compor o que conhecemos como Educação Básica, que incluiu um ano a mais no Ensino Fundamental, este composto por dois ciclos. A LDB de 1996 delegou em definitivo a responsabilidade da aplicação do Ensino Infantil e do Ensino Fundamental (Ciclos I e II), aos municípios; e do Ensino Médio aos governos estaduais. Mas, da mesma forma que a LDB de 1971 deixou a possibilidade de estes mesmos governos assumirem as duas fases iniciais da Educação, dependendo da situação orçamentária  de determinados municípios, o que não era o caso de São José dos Campos. Dessa forma, no ano de 1998, já contando com 24 escolas sob sua responsabilidade, a prefeitura altera a denominação das mesmas mais uma vez. Através do Decreto nº 9.401/98, de 16 de janeiro de 1998, assinado pelo Prefeito Emanuel Fernandes, a E.M.P.G. Profª Ana Berling Macedo passa a se chamar oficialmente Escola Municipal de Ensino Fundamental “Profª Ana Berling Macedo. Seguindo as orientações contidas na LDB/96, ainda que não sejam em todas as unidades escolares, a E.M.E.F. Ana Berling prosseguiu ( e continua) com as alulas noturnas, agora denominadas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), garantindo a oportunidade a muitos que almejam a construção do Conhecimento. Ao longo de seus 50 anos a escola Ana Berling passou por algumas reformas que pouco alteraram sua configuração original. Há uns quinze anos teve seu espaço operacional ampliado com a construção de novas salas de aula. Atualmente passa por uma ampla e complexa reforma.

                Detalhe do Decreto nº 9.401/98. FONTE: Acervo Central. SEC/PMSJ.

               Paralelamente, durante meio século de existência, formando diversos alunos e alunas, seja para o mercado de trabalho ou para atingir a cidadania plena, em meio a vários e exímios docentes, a escola foi administrada por vários profissionais da Educação. Exerceram a Direção da Unidade Escolar cinquentenária os seguintes mestres: Gicélia Santos Prianti (1970 a 1975); Maria América de Almeida Teixeira (1976 a 1988); Vitória Luíza Floriano Lima (1989); Neusa Maria de Miranda (1990 a 1995); Márcia Cristina Fernandes L. Veneziane (1996); João Elias Lajes França (1997); Celso Vanzela (1998 a 1999); Janine Dutra Velério (2000); Terezinha de Jesus Melo Neves (2001 a 2005); Maria de Fátima Duarte Rodrigues (2005 a 2013); João José Soares Filho (2013 a 2014); Priscila (fev. 2015 a ago. 2015); Daniele Maria G. e Guimarães Leite (ago. 2015 a jul. 2017); Ana Maria Machado Martins (jul. 2017 a jul. 2020). Atualmente a Direção da Unidade Escolar é exercida pela Profª Adalgisa Saltosque dos Santos, que assumiu a gestão no dia 03 de agosto de 2020. O autor destas singelas linhas conhecia a E.M.E.F. Profª Ana berling Macedo parcialmente desde a década de 1980. Entretanto, foi somente no ano de 2018, durante a gestão da Profª Ana Maria, que tivemos a honra de iniciar a docência na referida escola. É uma imensa satisfação trabalhar ao lado de exímios docentes, dentre os quais, alguns lecionam há quase 20 anos somente lá. Ou também atuar com professores que foram alunos no passado. Com um excelente corpo docente só temos a ganhar em sabedoria; e os alunos, junto com a comunidade mais ainda. Encerramos o presente artigo, parabenizando a E.M.E.F. Profª Ana Berling Macedo pelo seu cinquentenário, estendendo as sinceras congratulações a todos os profissionais que nela atuam e que atuaram. Quem ganha o presente somos nós, professores, demais funcionários, alunos e alunas, além da comunidade do Bairro do Alto da Ponte. Que venham outros 50 anos; e muito mais. Atenciosamente, 

                                                                              Prof. Eddy Carlos. 

 

Referências.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia. Geral e do Brasil. Ed. Moderna. São Paulo, 2011. 

BLOG: http://ana-berling-macedo.blogspot.com/2008/08/ana-berling-macedo.html ; criado pela Profª Lúcia Helena (Artes), 2008. 

JÚNIOR, Agê. São José dos Campos de 1900 a 1980. Ed. Santuário. Aparecida, 1981. 

PAULA e ROQUE, Maria Tereza Dejuste de e Zuleika Stefânia Sabino. (Org.). Escola e Educação em São José dos Campos: espaço e cultura escolar. Coleção São José dos Campos. História e Cidade. Vol. VI. UNIVAP/Pró-Memória. São José dos Campos, 2012. 

SIQUEIRA, Jairo César de. Nossa Cidade de São José dos Campos. Fundação Cultural Cassiano Ricardo. São José dos Campos, 1991. 

SITE: www.novaescola.org.br


O autor: Eddy Sarlos Souza Vicente.

·      *Bacharel e Licenciado em História pela Universidade do Vale do Paraíba-UNIVAP (2002);

·       *Pós-Graduado Lato-Sensu em História do Brasil Republicano pela Universidade de Taubaté-UNITAU (2004);

·       *Concluiu a Segunda Licenciatura em Pedagogia pelo Centro Educacional do Vale do Paraíba-CEVAP (2020);

·       *Concluiu a Segunda Licenciatura em Geografia pela Unicesumar (2021);

·       *Membro efetivo do Instituto de Estudos Valeparaíbanos  (IEV), sediado em Lorena-SP, desde 2008;

·       *Membro vitalício da Academia Cachoeirense de Letras e artes (ACLA), sediada em Cachoeira Paulista-SP, desde 2013;

·       *Acadêmico Honorário da Academia de Letras e Artes de Cruzeiro (ALAC), sediada em Cruzeiro-SP, desde 2021;

·       *Criador dos blogs: http://redescobrindoovale.blogspot.com.br (2014) e http://conhecendoahistoriaprofeddy.blogspot.com.br  (2018);

·       *Professor de História efetivo da Rede Municipal de Ensino da Prefeitura de São José dos Campos-SP, desde 2016.


Agradecimentos.

·    *Josiane e Amarildo. Secretaria da E.M.E.F. Profª Ana Berling Macedo.

·    *Priscila Novaes Nogueira. Secretaria de Apoio Jurídico. Prefeitura Municipal de São José       dos Campos.

*Gabriel Henrique de Assis. Arquivo Público Municipal. FCCR.