domingo, 21 de julho de 2019

Ecos Monarquistas.

              Lembrança do 10º aniversário do falecimento do Padre Saint-Clair Monteiro de Barros.
              FONTE: Acervo histórico-documental do Recanto da Glória/Prof. Eddy Carlos.

             Desde a Independência até a queda do Império, a Marinha Brasileira, chamada de Armada constituiu junto com o Exército as duas forças que garantiam a soberania e a integridade do território nacional. Porém, o Governo Imperial prestigiava mais a primeira deixando a segunda em plano secundário, somente recorrendo a ela em casos extremos. Comandada entre 1822 e 1823 por mercenários europeus como Thomas Cochrane e John Grenfell, a Armada adquiriu “ares” aristocráticos e nobiliárquicos tornando-se a “menina” dos olhos do Imperador Dom Pedro II. Seus oficiais recebiam os melhores soldos, comparados com os do Exército e a tripulação nos navios recebiam os mesmos tratamentos que os escravos nas fazendas cafeeiras. Com a derrota do Brasil na Guerra da Cisplatina em 1828, na qual o Uruguai adquiriu a sua independência, o Exército Imperial é enviado para as fronteiras, ficando carente de recursos financeiros e materiais.
             A criação da Guarda Nacional em 1831, durante a Regência, para manter a ordem interna diante das várias rebeliões, soa também como tentativa de se opor, ou até mesmo se prevenir contra a influência de alguns oficiais. Ainda que não tendo o seu valor reconhecido, determinados oficiais do Exército são fundamentais para a garantia da legalidade. É o caso de Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias que atuou na repressão da Revolta Liberal de 1842 e na Revolução Farroupilha (1835-1845). O Governo Imperial, porém, iria necessitar do auxilio das duas forças armadas, principalmente da terrestre, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). O conflito proporcionou ao Exército a conscientização a respeito de sua importância para o Império. Após o término da guerra, os oficiais voltam para a pátria, influenciados pelos ideais republicanos adquiridos com seus colegas argentinos e uruguaios. Mas a Monarquia não torna conhecimento de tais mudanças e continua a prestigiar a Armada, alheio até mesmo em relação à crescente campanha do Partido Republicano, fundado na Convenção de Itú em 1873.
            Mesmo contando com o apoio de alguns oficiais monarquistas, o Exército derruba o Gabinete Ouro Preto, e em seguida, manipulado pelos republicanos, proclama a República em 15 de novembro de 1889, e no dia seguinte a família imperial é banida para a Europa. Antigo oficial leal a Coroa, coube a Manoel Deodoro da Fonseca, além de chefiar o golpe, assumir o Governo Provisório. Porém, o primeiro presidente não era bem visto pelos republicanos e, muito menos pelos monarquistas que o consideravam como um traidor do Império. Em 3 de novembro de 1891, contrariado por uma lei aprovada pelos parlamentares, que autorizava o impeachment do presidente, Deodoro fecha o Congresso Nacional,  mas renuncia no dia 23 diante da ameaça de bombardeio do Rio de Janeiro pelo Almirante Custódio de Melo. Segundo o jornalista Eduardo Bueno, Deodoro resolve deixar o poder para evitar uma guerra civil, mais precisamente entre o Exército e a Armada. O episódio ficou conhecido como a primeira Revolta da Armada e com a saída de Deodoro assume o vice Floriano Peixoto, conhecido como o Marechal de Ferro. O clima político, no entanto continua tenso, devido ao autoritarismo de Floriano Peixoto. No Rio Grande do Sul, o Governo Federal passa a apoiar a facção de Júlio de Castilhos, na guerra travada contra os maragatos, durante a Revolta Federalista, entre fevereiro de 1893 e setembro de 1895. E é nesse cenário que tem início a segunda Revolta da Armada. Em 6 de setembro de 1893, o Almirante Custódio de Melo deflagra a rebelião com o intuito de depor o Presidente Floriano Peixoto. Dessa vez, Custódio de Melo teve o apoio de outro oficial monarquista da Armada, o Almirante Saldanha da Gama, contando ainda com 16 vapores de guerra e oito navios mercantes, velhos, mas adaptados para o uso militar.  Essa nova revolta durou até março de 1895, quando os rebeldes cansados da luta pedem asilo em navios portugueses. Mesmo combatendo internamente em duas frentes, o Marechal de Ferro consegue manter a supremacia, graças ao uso até a exaustão dos recursos públicos. Como não ousaram dessa vez ameaçar de bombardeio a capital do país, os líderes da revolta tomam rumos distintos. Custódio de Melo parte para o exílio na Europa e Saldanha da Gama e seus subordinados se aliam aos rebeldes federalistas gaúchos, os maragatos. Saldanha da Gama acaba morrendo em combate nos pampas em julho de 1895. Tanto a Revolução Federalista, como a Revolta da Armada, assombraram os políticos republicanos, ampliando-se em toda a Região Sul e por pouco não atingindo São Paulo. No governo de Prudente de Morais as tensões se amenizam.
                Durante o conflito travado entre o Governo Federal e os rebeldes e, diante da possibilidade do Estado de São Paulo se envolver na contenda, o Presidente paulista Bernardino de Campos adota algumas medidas. Uma delas foi a concentração na capital das unidades dos corpos de Polícia, uma vez que a Força Pública poderia ser requisitada para auxiliar os legalistas. Dessa forma, os municípios acabaram ficando sem policiamento ou patrulhas nas suas localidades. Diante de tal situação, algumas cidades criam a Guarda Civil para manter a ordem nos centros urbanos.  Assim ocorreu na Vila da Bocaína, antigo nome de Cachoeira Paulista. Ficando a cidade desguarnecida de sua força policial, atendendo a convocação do Presidente do Estado, coube ao Juiz de Direito, o Promotor Público e o Delegado de Polícia, organizar a Guarda Cívica, composta, segundo o historiador Agostinho Ramos, “de cidadãos qualificados”. Para tanto convocaram uma reunião na Câmara Municipal; dentre os muitos cidadãos presentes que foram voluntários para o serviço ativo da nova corporação, Agostinho Ramos destaca “o Dr Francisco Assis de Oliveira Braga, promotor público, Dr. Cícero Anatólio Vieira do Brasil, advogado, tenente cel. José Antônio de Oliveira Porto, delegado de polícia tenente cel. Domiciano Rodrigues Pinto, Presidente da Câmara Municipal, tenente cel. Joaquim Gonçalves, intendente geral, Major Alacrino Nunes de Melo, Escrivão de Órfãos, cap. Antonio Procópio Rodrigues das Neves, Tabelião e muitos outros”.
            Entrementes, as autoridades lançavam mão também, do recrutamento forçado, muito comum durante a Guerra do Paraguai. Essa atitude combatida pelos republicanos foi por eles usada naquela época e em outras ocasiões. A função de recrutar combatentes para sufocar a revolta era atribuição da Guarda Nacional. Mantida por fazendeiros e chefes locais, em geral, os recrutados para servirem de “carne de canhão”, eram sempre desafetos ou oposicionistas, mesmo com algum poder econômico. A Guarda Nacional da Vila da Bocaína foi criada em 1892 e para formar o quadro de oficiais, muitos elementos eram oriundos do Embaú, então sede da Vila do Cruzeiro e, antagônicos ao Major Novaes, monarquista convicto. Como comandante superior figurava o Coronel José Joaquim Ferreira, o qual havia exercito o cargo de Presidente da Câmara Municipal da Vila do Cruzeiro (Embaú) em 1887. Além de comandar a Guarda Nacional da Bocaína o Coronel Ferreira ainda era forte influência política no Embaú e contava ainda com o apoio dos irmãos Augusto Costa e Antônio José da Costa Junior. Paralelamente, era Vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Embaú, o Padre Saint-Clair Monteiro de Barros, muito respeitado e também de grande influência política. Em 1891 o Padre Saint-Clair ocupou o Conselho de Intendência e a vice-presidência da Câmara Municipal, sendo presidente o Major Novaes. Com a criação da efêmera Vila Novaes, o Padre Saint-Clair pede exoneração do cargo, passando a ocupar-se somente dos assuntos eclesiásticos e de seu rebanho. Com a eclosão da revolta de Saldanha da Gama e Custódio de Melo, os líderes locais procedem ao recrutamento, já mencionado anteriormente.
            Entretanto, houve reações às diretrizes governamentais, tanto de monarquistas como de republicanos contrários à situação vigente e à administração centralizadora do governo de Floriano Peixoto. É o caso da família Henrique dos Santos, representada, conforme a análise de Humberto Turner, pelos irmãos José Henrique dos Santos e João Henrique dos Santos. Apesar de ter sido considerado como republicano histórico José Henrique caiu em desgraça com os chefes locais da região. Na Vila do Embaú os irmãos citados mantinham um ponto de comércio de molhados, além de serem proprietários de uma olaria. Humberto Turner afirma que José Henrique foi um dos signatários do manifesto republicano pouco antes da Proclamação da República. Em 1893, no contexto dos conflitos mencionados, José Henrique era o sexto suplente de vereador da Vila do Cruzeiro (Embaú). Com o recrutamento forçado levado a termo pelos dirigentes, o clã Henrique dos Santos insurgiu-se contra a medida abertamente. Para Humberto Turner, José Henrique era um idealista, “e como tal portador de uma visão esclarecida; insurgio-se contra a mentalidade apoucada dominante”. Em represália José Henrique foi encarcerado na Cadeia do Embaú, junto com outros opositores e “recalcitrantes”. Todos os que se opunham ao recrutamento, e não só no Embaú, como em qualquer parte do Brasil, eram presos e aguardavam a remoção para a linha de frente do conflito. Segundo Turner, assim ocorria devido ao fato de serem “opposicionistas, pois os situacionistas gozavam da estima e dos benefícios dos chefes locaes, e como tais tinham o privilégio da liberdade... e de não prestar serviços ao governo”.
            A prisão de José Henrique dos Santos acabou convulsionando a população do Embaú e adjacências. O descontentamento e a indignação pela prisão de alguém que ousara questionar os desmandos das autoridades fizeram eclodir um levante popular. Liderados pela família Henrique dos Santos, os populares tomaram de assalto a Cadeia do Embaú e libertaram José Henrique e todos os “voluntários” que iriam para o Rio de Janeiro combater os rebeldes da Armada. Humberto Turner não apresenta números, mas afirma que na ação houve mortos e feridos no choque entre os revoltosos e a guarnição policial do Embaú, que acabou debandando em fuga. Diante da euforia, populares enfurecidos e os recrutados libertados resolvem que era hora de “acertar as contas” com os chefes locais da Vila do Cruzeiro e da Bocaína. Novamente tendo à frente a família Henrique dos Santos, a turba marchou em busca dos dirigentes situacionistas para justiçá-los. Humberto Turner afirma que os líderes visados, o Coronel Ferreira e os irmãos Costa Júnior nada tinham a ver com o episódio dos recrutamentos, mas como representavam no Embaú e região o poder central, despótico e autoritário, emanado do Presidente Floriano Peixoto, tornaram-se alvos preferidos da multidão enraivecida. Haveria um linchamento e um banho de sangue sem precedentes no local, pois os três alvos a serem justiçados contavam com homens armados para sua segurança. O confronto foi evitado graças a providencial intervenção do Vigário do Embaú, o Padre Saint-Clair Monteiro de Barros. Embora não exercesse mais a política e cuidasse somente dos ofícios divinos, o sacerdote era muito respeitado pela população do Embaú, independente de classe social ou de situação econômica. Ao tomar conhecimento de que a multidão vitoriosa, após o assalto à Cadeia, resolvera fazer justiça com as próprias mãos contra a liderança governista o Padre Saint-Clair se impôs diante dos rebelados. Deixamos que Humberto Turner “narre” o fato. “Com a autoridade que lhe conferia o cargo de vigário da parochia, o padre Saint-Clair surgio ante a turba enfurecida e exigio que ella retrocedesse e se dispersasse, no que foi plenamente obedecida, evitando assim que se consumasse uma tremenda chacina”.
          Contudo, mesmo tendo debelado a insurgência popular, evitando um massacre, o Padre Saint-Clair foi acusado de instigar o motim. Seus inimigos, incluindo alguns que ele salvou, chegaram ao extremo de afirmar que o religioso pretendia deflagrar uma réplica da noite de São Bartolomeu, uma alusão à matança de huguenotes na França por católicos em 1572 a mando de Catarina de Médicis. Uma acusação absurda, mas como a Igreja e o Governo Republicano mantinham uma relação tensa, o Padre Saint-Clair acabou removido da Paróquia do Embaú, sendo substituído pelo Padre Antônio Olynto Batista Pinto. Como havíamos afirmado anteriormente, os rebeldes da Armada acabam perdendo o espírito combativo; uns se entregam, outros partem para o exílio e outros se unem aos gaúchos federalistas. O governo do Marechal de Ferro concentra o esforço bélico no Sul, mas só com o primeiro presidente civil, Prudente de Moraes, as armas silenciam, pelos menos no Sul e no Sudeste. No Embaú, os ânimos se acalmam e a família Henrique dos Santos volta ao seu dia-a-dia. Por um longo tempo não se falou mais em recrutamento no Embaú e em Cachoeira. Até a próxima.

                                                                                                         Eddy Carlos.


Dicas para consulta. 
BUENO, Eduardo (Org.). História do Brasil. Publifolha. São Paulo, 1997.
FEDERICI, Hílton. História de Cruzeiro. Volume II. Publicações da Academia Campinense de Letras. Campinas, 1978.
FÉLIX, Sandra Regina (Org.). Cachoeira Paulista. Fé, História e Tradição. Editora Noovha América. São Paulo, 2005.
TURNER, Humberto. O Ex-Brasão do Município. Coletânea de textos históricos publicados no jornal Folha de Cruzeiro. Década de 1930.
RAMOS, Agostinho. Cachoeira Paulista. 1780-1970. Volume II. IHGSP. São Paulo, 1971.

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br

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