sexta-feira, 24 de maio de 2019

Mestre Moçambiqueiro.

Dois Mestres da Cultura valeparaibana, Zé Mira e Ernesto Villela, em Cachoeira Paulista, no ano de 1993. Fotografia de Zizinho Botelho.

               Apesar de nem sempre ter o seu valor reconhecido, a cultura brasileira é riquíssima em seus detalhes, com múltiplas origens e facetas. Principalmente no folclore são inúmeras as expressões culturais, incluindo as diversas lendas, práticas religiosas, danças, artesanatos, culinária, etc. As danças folclóricas são mais sintomáticas, possuindo também origens diversas, de acordo com o grupo que as desenvolveram, como os indígenas, o português colonizador e o negro africano escravizado. Entre os primeiros, desde os tempos coloniais, já se registrava o Kuarup, a dança dos Javaés, a dança dos Purís, além das danças guerreiras e fúnebres. Dos lusitanos, o brasileiro assimilou as danças da Cana-Verde, de São Gonçalo de Amarante, a Quadrilha, entre outras. Os negros, vindos como escravos para o Brasil praticavam as danças das senzalas, o Calundu, a Congada, a Umbigada, o Jongo, o Moçambique e, mais tarde surgiria o que nós chamamos de Samba. Tais danças eram consentidas pelos senhores, nos raros momentos de descanso do extenuante trabalho nas lavouras. Para tanto utilizavam, além da própria senzala, os terreirões diante da casa-grande e da capela, observados ou não pelos feitores.
               Embora tenha se irradiado por todo o território nacional, as manifestações culturais oriundas dos cativos africanos e seus descendentes acabaram desenvolvendo, por sua vez, características próprias de determinadas regiões. Um exemplo é o Nordeste, principalmente o Estado da Bahia; o outro é o Vale do Paraíba, último baluarte do sistema escravista no Brasil. Assim como em outras partes do país, nessa região houve um sincretismo religioso, mesclando elementos sacros e profanos, como nos cultos de origem africana. Isso proporcionou o desenvolvimento de uma cultura popular caipira que mesmo marginalizada, manteve-se forte e marcante desde Guararema até Bananal. Por outro lado, há uma estreita ligação entre a cultura, ou manifestações culturais, com a identidade regional. Conforme a análise do Prof. Francisco Sodero, a cultura “valeparaibana, vista sob o prisma do real, do possível, assinala a presença e o exercício de nossa identidade em toda sua força, libertando-a das hierarquias impostas ao longo do tempo”.
                Para que a identidade de um povo, ou um grupo étnico, seja mantida, preservada ou resgatada, torna-se necessário a prática das referidas manifestações e as transmissões, de geração em geração, dos hábitos e costumes dos antepassados. Entre as diversas formas de preservação estão as realizações (principalmente as espontâneas) de festas tradicionais, seja no âmbito rural ou urbano, sobretudo no primeiro. Segundo o Prof. Sodero, as festas, “algumas tradicionais, de cunho religioso, e as demais manifestações populares, como o carnaval, são formas de produção cultural como um todo. Representam aquilo que a comunidade quer, pode e realiza”. Uma dessas festas, e a que mais representa o sincretismo religioso no Vale do Paraíba, é a de São Benedito, comemorada todo ano logo após a Páscoa em algumas cidades como Aparecida, São José dos Campos e Guaratinguetá, nessa desde 1757.
               Dentro das comemorações em homenagem ao santo cozinheiro, são praticadas algumas danças, como o Moçambique, muito popular no Vale, mas presente também nos Estados do Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Há controvérsias quanto às origens dessa dança. Jacqueline Baumgratz afirma que a mesma é “considerada dança guerreira, são relembrados os feitos de Carlos Magno e os Doze Pares de França, nas cruzadas dos cristãos contra os mouros e outros inimigos do catolicismo medieval”. Outros afirmam que o costume vem de Portugal, mas com influência e elementos africanos. Sandra Regina Félix (org.) afirma que os moçambiques “preservam o uso de instrumentos mais primitivos, tipicamente africanos, e apresentam-se com paias amarrados nos joelhos e um conjunto de guizos presos por uma correia de couro que emitem sons”. Contudo, a jornalista Lídia Bernardes apresenta uma definição mais plausível do Moçambique. Para ela, a dança tem origem africana, conforme sua denominação e “antigamente era uma dança de salão praticada pelos escravos a mando de seus senhores, como demonstração de seu poderio e riqueza. Trajavam camisolões brancos e compridos, na cintura era amarrada uma faixa preta, gorro vermelho na cabeça e pés descalços. Sob os camisolões usavam calças comuns e presos nas pernas iam paiás ou guizos feitos de bronze”. A dança era também praticada nos festejos do Divino e Nossa Senhora do Rosário. Como citado, o Moçambique possui forte presença no Vale do Paraíba, sendo que geralmente existe um mestre fundador ou condutor onde a dança é praticada. Alguns nomes são conhecidos, como Mestre Paizão e Mestre Paizinho (pai e filho) em Taubaté; Mestre Manoel em Monteiro Lobato; Mestre Antônio em São José dos Campos; Mestre Zé Mira em Jambeiro e também em São José dos Campos. É sobre esse último que iremos focalizar nossa análise a partir de agora.
                José Alves de Mira nasceu no dia 24 de outubro de 1924, no Município de Cristina, Estado de Minas Gerais; filho de José Rodrigues de Mira e Albertina Maria de Jesus Alves. Conforme Lídia Bernardes, ele foi o primeiro de nove filhos; cresceu “respirando o frescor do campo onde a liberdade era o lema e a luta o desafio. Aos 7 anos começou na lida junto com seus familiares. No bairro da Cachoeirinha e no Canto aprendeu a puxar tropa, a tocar um carro de boi, além de desvendar os mistérios da boa colheita”. Dos 8 aos 28 anos de idade Zé Mira foi tropeiro nos arredores de Cristina, sul de Minas Gerais, vindo até o Vale do Paraíba. Até os 13 anos conduziu a tropa do avô e de um tio, chamado Quinzote, composta por onze burros; aos 20 anos de idade chegou a ter a própria tropa. Com a dura vida na roça não foi possível frequentar escolas, e no dia 23 de setembro de 1945 casa-se com Nair Toledo, filha de Argemiro Simões de Toledo e Aurora Maria de Jesus. Nair nasceu no dia 23 de setembro de 1926 na Barrinha, zona rural de Cristina. Após o enlace matrimonial, foram residir em uma modesta casa, na realidade uma tulha, construída por Zé Mira no Canto. Ao todo o casal teve doze filhos, sendo que morreram três ainda crianças (um menino e duas meninas). Em Cristina nasceram dois, Sebastião (que faleceu criança) e Maria Inês, nascida em 06 de maio de 1948 e, que com os pais deixou a cidade mineira, com quatro meses de vida, rumo ao Vale do Paraíba. O destino foi o Município de Jambeiro.
               Segundo Lídia Bernardes, não só o casal se transferiu para Jambeiro, mas toda a família, incluindo os pais de Zé Mira, que se estabeleceram no Sítio São João Batista. No local criavam galinhas, porcos, e o gado transportado de Cristina, enquanto preparavam a terra para o plantio do café. Apesar de o solo estar exaurido há tempos, a família Mira conseguiu às duras penas cultivar a rubiácea em Jambeiro. Em terras valeparaibanas nasceram os demais filhos de Zé Mira e Dona Nair. Em Jambeiro nasceram: Marina, no dia 18 de junho de 1949; Luiz Carlos, no dia 04 de agosto de 1951; Wanderley, no dia 10 de fevereiro de 1952; João Batista, no dia 04 de julho de 1954; Maria Helena, no dia 01 de outubro de 1955. No Município de Caçapava nasceram: Benedito, no dia 27 de julho de 1958; Renato, no dia 17 de julho de 1961; Luciano, no dia 18 de abril de 1967. Nesse meio tempo, Zé Mira havia conhecido também o Município de São José dos Campos. Conforme a análise de Lídia Bernardes, o caipira “vinha aos sábados ao Mercado Municipal em companhia de sitiantes e empregados de fazendas vizinhas”, vender frangos e galinhas, além dos demais produtos rurais. A cidade de São José dos Campos, que Zé Mira visitava naquela época, ainda era a que convivia com os resquícios da fase sanatorial; não a grande metrópole que se tornaria mais tarde. Porém, mesmo com a vida tranquila em Jambeiro, a família acabou se mudando para São José, no Bairro Jardim Paulista. Um dos motivos era o estudo dos filhos, principalmente Maria Inês, que estudava em São Paulo, e Marina em Caçapava. O ano era 1969 e, inicialmente pagando aluguel, conseguiram construir a casa própria também em São José dos Campos, próximo ao Estádio Martins Pereira.
                   No entanto, o sítio continuou sendo cuidado por Zé Mira; em uma jornada diária ele saía às 6 horas da manhã de São José dos Campos, com destino para Jambeiro, onde passava o dia todo trabalhando, retornando por volta das 18 horas. Desde o período em Cristina, os onze anos diretos em Jambeiro, e os demais intercalando essa cidade com São José, Zé Mira acabou se tornando conhecido no meio cultural e folclórico, devido aos seus dons artísticos. Tocava com esmero a viola, cavaquinho, sanfona, etc. Católico fervoroso atuava com frequência nas comemorações religiosas populares mais simples e espontâneas, como a Festa de São Benedito; era Mestre de Folia de Reis, do Moçambique, dos festejos do Divino, do Jongo, da Congada, e conhecia bem o Calango. Durante muito tempo Zé Mira teve a companhia de seu pai, José Rodrigues de Mira, o Pilito, nas manifestações culturais, principalmente o Moçambique. No ano de 1987, a Fundação Cultural Cassiano Ricardo descobriu o talento de Zé Mira. Conduzido por Ângela Savastano, o mestre de várias culturas ingressou no grupo Piraquara e, em 1991, junto com outros violeiros, criou a Orquestra de Viola Caipira. A partir daí Zé Mira passa a ser ainda mais conhecido e ter o seu trabalho reconhecido em São José dos Campos e no Vale do Paraíba. Lídia Bernardes anotou o depoimento de Maria Helena, filha do violeiro, sobre a importância desse reconhecimento. Segundo ela, o Piraquara foi muito importante para o pai, porque “até então o trabalho do papai não era valorizado, não era visto. (...). Ele formou o Moçambique em Jambeiro e ninguém deu valor. Se ele conseguiu alguma coisa, como uniforme novo para o Moçambique e para a Folia do Divino, foi pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo, via Piraquara”. Conforme Maria Helena, foram pessoas, como Ângela Savastano, Helena Weiss e Ocílio Ferraz, que teve contato com a família em Jambeiro, que impulsionaram o nome de Zé Mira.
                   Além de Mestre do Moçambique e Folia de Reis, de músico de diversos instrumentos, outra faceta de Zé Mira era a de compositor. Mais uma vez recorremos à jornalista Lídia Bernardes, a qual afirma que essa fase de Zé Mira tem início no ano de 1986, “quando criou a música Minha Vida de Tropeiro. Até 1998, o seu elenco musical soma 20 composições. Entre elas estão quatro modas sobre o mesmo tema: Minha Vida de Tropeiro (1986), O Tropeiro e o Carreiro (1987), Festa do Tropeiro (1995), e O Menino e o Carro de Boi (1996)”. Em meados da década de 1990, as questões ambientais ganham espaço na mídia e, influenciado ou inspirado pelo tema, Zé Mira compõe “Garça Branca” em 1993, além de “Tributo ao Rio Paraíba” e “Lavradô Fracassado”, entre outras. Até mesmo os escândalos da política nacional inspiraram o Mestre: em 1997 ele compõe “CPI do Congresso”. Paralelamente à carreira de Zé Mira, alcançava notoriedade também no ambiente cultural caipira, Ernesto Villela, conhecido como o Mestre do Calango. Ambos só se conheciam de vista, nutrindo a admiração e simpatias recíprocas. No ano de 1993, o jornalista e escritor, Joaquim Maria Botelho, filho de outra referência cultural valeparaibana, Ruth Guimarães, levou Zé Mira e Ernesto Villela para Cachoeira Paulista, para uma apresentação em uma atividade cultural na cidade. Em 1999, os dois Mestres se apresentam em uma casa noturna badalada, frequentada por diversas pessoas de níveis diferentes, em São José dos Campos, no evento conhecido como Noite do Calango. Nesse ano falece Ernesto Villela.
                Todavia, Zé Mira se identificava mesmo e muito, era com o Moçambique. Em entrevista para a jornalista Lídia Bernardes, Zé Mira afirmou que tinha o Moçambique “como uma devoção a São Binidito. Os verso fala dele i di Nossa Sinhora do Rosário. O mestre canta primeiro i todo mundo respondi. Daí, ocê vareia na dança, na música i nos verso, sinão causa quem tá oiano ou dançano. (...). O bastão eu memo faço qui pódi sê di madera guatambu, peroba i sapuva. As ropa dos moçambiquero é carça e camisa branca c’uma fita cruzada azul ou vermeia. Azul pra Nossa Sinhora e vermeia pra São Binidito”. No dia 30 de agosto de 1997 foi realizado no Distrito de Eugênio de Melo, em São José dos Campos, o evento Encontro de Moçambique, reunindo diversos grupos. Dentre os presentes estavam a Companhia de São Benedito (do Distrito), liderada por Mestre Carlinhos; Companhia de Santa Branca, o Moçambique da Vila Tesouro e o Moçambique de Zé Mira, vindo de Jambeiro. O encerramento contou com arroz, feijão e barreado, servido aos participantes e preparados em mutirão. No ano de 1999, o Moçambique de Zé Mira se apresentou na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), para os alunos de diversas graduações, principalmente a de História. O autor deste relato estava presente, então aluno do 1º Ano do Curso de História, e foi lá que conheceu o Mestre do Moçambique. Zé Mira ainda agraciou o público estudantil com uma brilhante palestra sobre cultura popular e fez o sorteio do livro de Lídia Bernardes, “Nas Trilhas de Zé Mira”. Interessado em adquirir um exemplar, este autor o conseguiu com o saudoso amigo, Ademir Leandro Pereira (falecido em 2009), que por sua vez era conterrâneo e amigo de Zé Mira e de sua família.
                  Entrementes, nos primeiros anos 2000, o trabalho do músico caipira, e mestre de tantos ofícios culturais, ficou ainda mais reconhecido. No ano de 2004 foi inaugurado no Bairro de Santana a Casa de Cultura Zé Mira. Ele também tornou-se mais notório ainda ao participar de programas e vinhetas comerciais de uma emissora de televisão regional, afiliada a outra de alcance nacional. Contudo, o ciclo se completa e a família de Zé Mira passa pela triste e amarga experiência da perda dos entes queridos. No dia 28 de dezembro de 2007 falece Dona Nair Toledo de Mira e, menos de um ano depois, em 23 de agosto de 2008, José Alves de Mira cerra seus olhos para sempre. Para o meio artístico folclórico caipira a perda é irreparável, mas a memória de Zé Mira continua viva e presente entre seus filhos e netos, além de seus admiradores, inclusive este que ora escreve. No dia 22 de agosto de 2015, atendendo a um convite da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, indicado pela amiga Isabel Cristina, filha de Ernesto Villela, integramos o Júri de avaliação do 1º Concurso da Miss Tropeira, realizado na Casa de Cultura Rancho do Tropeiro Ernesto Villela, em Eugênio de Melo. Para nossa agradável surpresa, um dos jurados era Luiz Carlos Mira, filho do Mestre Moçambiqueiro. Até a próxima.
                                                                                                            Eddy Carlos.

Dicas para consulta.
BAUMGRATZ, Jacqueline. Cultura Popular no Vale do Paraíba. Editora Mogiana. São José dos Campos, 2011.
BERNARDES, Lídia. Nas Trilhas de Zé Mira. Um caipira mira o Vale do Paraíba. Editora Escrituras. São Paulo, 1999.
FÉLIX, Sandra Regina (Org.). Aparecida. Capital da Fé. Editora Noovha América. São Paulo, 2006.
MAIA e MAIA, Thereza Regina de Camargo e Tom. O Vale Paulista do Rio Paraíba. Guia Cultural. Vale Livros. Aparecida, 2000.
PALMA, Alcemir. Mestre Calangueiro, Ernesto Villela. Editora Mogiana. São José dos Campos, 2011.
TOLEDO, Francisco Sodero. Em Busca das Raízes. Editora Santuário. Aparecida, 1988.

Blog: redescobrindoovale.blogspot.com.br



Nenhum comentário:

Postar um comentário